Forma sujeito histórica e sujeito de direito: as bases da sociedade capitalista e os gestos de interpretação


resumo resumo

Eni Puccinelli Orlandi



Somos muitos Severinos/iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras/suando-se muito em cima,

a de tentar despertar/terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar/algum roçado da cinza.

(João Cabral de Mello Neto)

 

Introdução

Não há sentido sem interpretação. Não há sujeito sem interpretação. E interpretação e ideologia se articulam na constituição dos processos de significação.

Por seu lado, a forma sujeito histórica, que é a nossa, é a forma sujeito capitalista. E o sistema capitalista, em que vivemos, se estrutura pela falha e pela divisão. A divisão fundamental é, assim, a que se estabelece pelo jurídico: sujeito livre e responsável, sujeito de direitos e deveres. Capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas (HAROCHE, 1992).

O discurso do direito traz nele as formas dessa divisão. Em várias de suas instâncias: a dos gestos de interpretação, a da própria constituição do sujeito capitalista, a da sociedade dividida. Em que as relações de poder são simbolizadas e se materializam nessas divisões da formação social. E nada está no social que não esteja no político e no jurídico. O Estado sustenta-se no jurídico.

Para esclarecer a posição da análise de discurso face a questão do Direito, e pensando os processos de significação e interpretação, vamos começar pelo que temos chamado de processo de constituição do sujeito e dos sentidos. A figura abaixo pode dar uma ideia geral deste processo.

Vale ressaltar que, face a necessidade de pensar o sujeito e os processos de individuação, o processo se inicia pela interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, afetado pelo simbólico, constituindo a forma-sujeito-histórica (E. Orlandi, 2003). Como dissemos, esta forma é a do sujeito capitalista, sustentada no jurídico (direitos e deveres). Com esta forma-sujeito constituída, teríamos, então, os modos de individuação do sujeito pelo Estado (instituições e discursos). A forma-histórica do sujeito moderno é a forma capitalista caracterizada como sujeito jurídico, com seus direitos e deveres e sua livre circulação social. As formas de individuação do sujeito, pelo Estado, estabelecidas pelas instituições e discursividades, resultam, assim, em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de sua vontade, com direitos e deveres e direito de ir e vir. Esse indivíduo funciona, por assim dizer, como um pré-requisito nos processos de identificação do sujeito, ou seja, uma vez individuado, este indivíduo (sujeito individuado) é que vai estabelecer uma relação de identificação com uma ou outra formação discursiva. E assim se constitui em uma posição-sujeito na sociedade.

Se pensarmos a materialidade do sujeito na história, introduzimos a relação sujeito, corpo e sentidos, lembrando que o corpo, afetado, como o sujeito, pela ideologia, está vinculado ao corpo social. O modo como isso se dá, deriva de seus modos de individuação pelo Estado (ou pela falha do Estado), pela articulação simbólico-política através das instituições e discursos, daí resultando sua identificação com uma formação discursiva e sua posição sujeito que se insere então na formação social (posição-sujeito patrão, traficante, falcão etc) com os sentidos que o identificam em sua posição sujeito na sociedade, em sua dimensão corpo-memória (cf. Orlandi, 2017). Este é o sujeito sociopolítico que somos.

Em uma paráfrase à Simone de Beauvoir, eu diria, “não se nasce traficante, ou operário, ou professor etc, torna-se traficante, operário, professor etc”. Para a perspectiva da análise de discurso a que nos filiamos, não há uma essência, mas modos de existência, práticas e experiências. Essa é a posição materialista e não essencialista ou metafísica. Há um processo de constituição do sujeito, há modos de individuação produzidos pelo Estado, há simbolização do corpo na relação corpo/sujeito em sua materialidade, atravessados pela ideologia, e por uma teoria psicanalítica do sujeito. Dessa forma ligamos materialmente inconsciente e ideologia, quando consideramos o sujeito discursivo.

Essas considerações nos levam a afirmar que a sociedade não é inerte. Ou melhor, por estas razões, a noção de formação social nos é mais significativa, já que estas posições-sujeito se constituem em um movimento contínuo de processos de identificação a partir do modo como o sujeito é individuado e identifica-se. Isto assim é no imaginário do sistema capitalista. É esse sujeito que se identifica com formações discursivas, sujeito gerido pelo jurídico, na forma sujeito capitalista, desde sua individuação pelo Estado.

Como sabemos, as formações discursivas são o reflexo das formações ideológicas no discurso. São aquilo que o sujeito pode e deve dizer a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada (PÊCHEUX, 1975). E não é o lugar social empírico ou físico que determina, mas o imaginário, ou seja, há uma projeção, em cuja base estão as formações imaginárias, que projetam o sujeito de sua situação, lugar social, para sua posição no discurso: posição sujeito patrão, posição sujeito empregado, posição sujeito professor etc. Em outras palavras: a imagem social que se faz de um patrão, a imagem social que se faz de um empregado etc. estão sempre sendo constituídas pelos processos de identificação dos sujeitos e produção dos sentidos, que circulam na formação social.

Assim, o que funciona no discurso não é o professor em seu lugar social empírico, descritível, por exemplo, pelo sociólogo, mas sua posição discursiva, juridicamente constituída: a imagem que a sociedade projeta de um professor na instituição escola e que se sustenta em relações de força (de que posição ele fala: de aluno ou de professor?), relações de sentido (o que diz tem relação com o que já foi dito e/ou aponta para o que virá a ser dito), dentro da formação social, na história. Sujeito corporificado, sóciopoliticamente.

Além disso, há um mecanismo de antecipação que faz com que todo sujeito seja capaz de imaginar o que o outro vai pensar do que ele diz, ou espera que ele diga e, portanto, antecipar-se em seu dizer: ou porque o vê como um parceiro ou um opositor. O que orienta a direção de sua argumentação. Funcionam, pois, no discurso a imagem que eu faço de um advogado, a imagem que ele faz de um seu cliente, a de um culpado, a de um inocente etc. E a imagem que ele faz da imagem que seu cliente faz dele etc. Há, pois, um conjunto de relações imaginárias complexas que fazem parte do funcionamento do discurso jurídico.

É assim, pois, que se estrutura e funciona o discurso jurídico, constituindo sujeitos e sentidos, no domínio da lei, no quadro social do Direito.

 

O Jurídico em suas condições de produção

As condições de produção de um discurso são os elementos que referimos acima – sujeitos e situação compreendidos na conjuntura sócio-histórica, ideológica, circunstâncias da formulação projetadas por formações imaginárias – e sobretudo o que chamamos interdiscurso ou memória discursiva: aquilo que fala antes, em outro lugar e independentemente (PÊCHEUX, 1975). Ou seja, o saber discursivo, o já dito que faz parte do mecanismo do dizer. O já dito, mas não sabido: porque a memória se estrutura pelo esquecimento e é justamente porque esquecemos a primeira vez que ouvimos a palavra “lei” é que nos imaginamos (ilusão do sujeito) como origem de seus sentidos, quando na realidade retomamos sentidos pré-existentes. Lei significa, e me significa, porque já significa. Mas retomar não é apenas reproduzir; na retomada há deslocamentos, há singularização dos sentidos em relação aos sujeitos. E é nesta tensa relação de sentidos, de sujeitos, e de efeitos da memória que nos “comunicamos”. Daí M. Pêcheux (1975) afirmar que a linguagem serve para comunicar e para não comunicar.

Com isso, podemos afirmar que vivemos, ao mesmo tempo, sentidos estabilizados e sujeitos a equívoco. Vivemos a ordem do discurso como inacabamento, movimento e processo de produção. Ao mesmo tempo vivemos a organização do dizer em sua estabilização, repetição, ilusão de transparência e completude: lei é lei. E pensamos que sabemos o que estamos dizendo quando dizemos isto. Historicidade da memória, que joga o duplo jogo: da paráfrase (a repetição do mesmo) e a polissemia (os múltiplos sentidos possíveis). Porque sentidos e sujeitos são seres históricos e simbólicos, eles mudam, porque são simbólicos e históricos, permanecem.

Dado o jogo da memória, todo dizer se encontra na confluência do eixo vertical – o do interdiscurso, da constituição dos sentidos (e dos sujeitos) - e no eixo horizontal – o do eu/aqui/agora da formulação, intradiscurso. O acontecimento discursivo é o ponto de encontro da memória e da atualidade. Espaço de decisão, onde os gestos de interpretação se apresentam com sua materialidade, sua historicidade: quem diz, para quem diz, onde, quando etc. Elementos do que chamamos dêixis discursiva.

A dêixis define as coordenadas espaço-temporais (eu/aqui/agora) implicadas na prática da enunciação, eu diria, formulação. Distingue-se, na dêixis discursiva, o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a topografia (MAINGUENEAU, 1987). É pelo estabelecimento de uma cena – e não por um espaço objetivamente determinado do exterior – que os enunciados se inscrevem nas formações discursivas. A dêixis fundadora, segundo o autor, deve ser compreendida como a situação de enunciação anterior que a dêixis atual utiliza para a repetição, de onde ela tira, em grande medida, sua legitimidade. A hermenêutica do discurso jurídico capitalista situa sua dêixis no Direito Romano, por exemplo, em relação a seu universo, digamos, próprio, ou construído como próprio. E isto lhe dá validade.

Há mecanismos que permitem a desliteralização do discurso jurídico, sua textualização, historicização pelo político. Um deles, certamente, é a divisão, já que toda sistematização jurídica é incompleta porque as fronteiras entre a elaboração (o direito concebido, o legislador), a interpretação (o direito posto, os tribunais) e a aplicação do direito (o direito vivido, o executivo) são indeterminadas (ORLANDI,1985). A articulação entre as três instâncias cria as possibilidades de indeterminação: no direito concebido, há escolha de uma lei entre todas as que se podem fazer sobre a questão que pareceu necessário regular; no posto, uma vez estabelecida uma regra, os juristas têm de tomar conhecimento dela, analisá-la etc; o discurso do direito vivido é uma “fenomenologia” do trabalho, instância da jurisprudência. Dada esta indeterminação, as diferentes instâncias jurídicas, correspondentes, dão origem a uma proliferação imensa de discursos distintos (cf. hoje a relação do Supremo e da Polícia Federal; as discussões da Comissão da verdade etc1).

 

Um exemplo e algumas considerações

Se do ponto de vista da memória constitutiva da forma sujeito capitalista o jurídico é central e dominante, sua prática tanto serve, como se presta à divisão e ao equívoco, na ilusão, entretanto, da transparência.

Aqui farei um retorno no tempo e, para exemplificar, vou tomar um exemplo que analisei há já algum tempo (ORLANDI, 1985), o do Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA), da Nova República. Isto para explicitar como a estrutura do discurso jurídico sustenta a discussão sobre e da terra. Veremos como se aliam o jurídico, o democrático e o liberalismo em função da posse da terra.

Tal como tem se colocado nestas condições, o discurso sobre a Reforma Agrária (RA) é um discurso liberal, que propõe uma sociedade democrática e se legitima pelo jurídico. Há uma mistura entre juridismo e tecnicismo – este talhado nos moldes de economia, da administração e da agronomia – de que se beneficiam os expositores oficiais da questão da terra de forma a não a tingir de cores políticas, dando-lhe, como pretendem, objetividade.

Pensando esta estrutura/funcionamento discursiva pautada pelo jurídico, é que procurei analisar os diferentes textos da Reforma Agrária proposta então: de um lado, o Estatuto da Terra, o PNRA, o documento CNA, o relatório do INCRA, e, de outro, os comentaristas (opositores ou defensores). Todos passam pelas características que encontramos então: generalidade, fluidez dos conceitos, multiplicação de instâncias, indeterminação, tecnicidade etc.

Do ponto de vista dos comentadores, criticam-se os meandros burocráticos de inúmeros organismos executores (GETAT, GEBASM, PROTERRA etc) e critica-se a generalidade do INCRA (“organismo genérico e feito para tudo”). Diferentes setores da sociedade sentem-se excluídos e reivindicam sua presença pois sabem que o sentido de cada termo da Reforma Agrária será definido neste processo, já que a “lei é uma lei complicada, confusa, dirigida para defender os mais variados interesses, como é o estatuto da terra” (CPT, Goiânia).

Se são essas as críticas, o PNRA, por seu lado, se reclama a ação executiva e toma a si a definição de termos que procura “explicitar e evitar equívocos”. E, para que seja possível “o entendimento claro do que e como fazer a mudança da estrutura agrária brasileira”, procura aclarar “alguns conceitos e definições básicas que não poderão nem deverão ser confundidos, ora em diante”. Tornar claro, não confundir, esclarecer, significa justamente fixar um sentido e o fazer de tal modo que não haja uma mudança da estrutura agrária brasileira, além do desejado pela “Nova República”, ainda sob os olhares vigilantes dos militares2.

O tal “entendimento claro” é tanto mais crucial quanto no próprio PNRA pode-se ler:

...cabe salientar a total identidade dos conceitos essenciais que informam a identidade da Reforma Agrária constante no Estatuto da Terra com o conceito de democracia implícito no mandamento constitucional imperativa de promover justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos [grifos nossos].

 

É a própria definição de democracia que está em jogo3. No entanto, a referência a ela não esclarece o que é “justa distribuição” e “igual oportunidade para todos”. Aí está uma clara aplicação do que dissemos a respeito das características do jurídico. Como dar especificidade a um conjunto de medidas se falam em “justo”, em “igual” de forma geral, e definem como fim “atender aos princípios da justiça social e o aumento de produtividade”?

Os termos em que se sustenta – o justo, o racional, o mais produtivo – têm a mesma especificidade do “bom pai de família”. É tudo e não é coisa alguma. São palavras para uso estratégico. A história tem nos mostrado que o deslocamento da discussão para a questão do que é socialmente justo serve antes à multiplicação das disputas retórico-partidárias do que a uma efetiva prática social. Além disso, o deslocamento para a noção de produtividade não se dá em condições concretas. De um lado, sempre se pode questionar como definir produtividade, assim como quem vai defini-la etc. De outro, pode-se observar que este critério não se sustenta nem mesmo em uma perspectiva economicista estrita, já que, pelo capitalismo financeiro, como a atividade agrícola é muito cara, a propriedade como reserva de valor pode render muito mais do que a atividade agrícola4. Assim, o desenvolvimento do capitalismo não está ameaçado, no Brasil, pela não distribuição da terra.

A generalidade do formalismo também aí está presente, quando se pensa a articulação da lei com sua execução: que são medidas complementares para se implementar a Reforma Agrária? E fica por decidir a forma da relação entre a reforma Agrária, a Política Agrícola e outras políticas governamentais: fiscal, cambial. De crédito, energética, de preços etc. Alia-se a isto a linguagem técnica: o sentido do político não deixa o campo do tecnicismo econômico (efeito de cientificidade). Pelo jurídico, instala-se um mecanismo discursivo em que se desloca a discussão do político (o que é “interesse social?”) e ao mesmo tempo se nega, se deslegitima sua validade.

Da falta de legitimidade também se ressentem argumentos que se referem à ideia de que os trabalhadores rurais estão organizados para se representarem na discussão da terra. Quais trabalhadores o estão? Quais não estão? E, certamente, não são tampouco os diferentes grupos organizados do campesinato que estão representados. Aliás, neste plano, a palavra “camponês” cede seu espaço de significação para “trabalhador rural”. É silenciada em sua historicidade e suas determinações concretas. E os que não conseguirem legitimidade não serão reconhecidos como “trabalhadores rurais”. Mais uma vez o formalismo descaracteriza o substantivo: não basta ser um lavrador da terra, tem-se que pertencer à categoria legítima “trabalhador rural”. Apaga-se desse discurso o camponês. E isto, segundo o discurso dominante, não é política, é objetividade pautada pela lei. A lei nomeia e legitima. O que não aparece é que são sempre gestos de interpretação, feitos em condições de produção determinadas, e não sentidos que brotam por si, que emanam “naturalmente” de um lugar qualquer. Enquanto se diz “trabalhador rural” se silencia o “camponês”5.

Como sempre, a discussão se desloca de quem tem a terra para quem não a tem: este é que tem de legitimar-se. Discute-se, então, quem vai ser assentado, seus direitos, os custos do assentamento. Custo caro e complicado. Como não está voltada para quem a tem, não se discute quanto tem custado em miséria, fome e luta do povo esta terra guardada em seus documentos legais. E o pretendido trabalhador rural (o sem-terra) tem uma imagem desqualificada: nele o legal e ilegal se roçam. Os que precisam da terra – sem-terra, posseiros, parceiros, pequenos arrendatários, colonos, índios, etc – não possuem, no discurso, o estatuto de cidadãos. Os que têm terra – são os “proprietários”, empresários - têm nome constituído e têm, também, essa sua legitimidade garantida, pré-construída. Os que não têm terra são uma parcela estranha da população, em vias de ser, e sua necessidade (de ser) os desqualifica. A Reforma Agrária, desse modo, sem um estatuto jurídico calçado de determinações mais postas é uma forma de administrar os conflitos da terra e não se dirige realmente aos que não a têm. Proposta para controlar as consequências dos conflitos no campo. Propõe-se a Reforma Agrária, no PNRA, e ao mesmo tempo se colocam seus limites, antecipa-se o esvaziamento de suas condições mais amplas.

 

Efeitos de silenciamento

Como tenho teorizado, dizer pode ser silenciar. Silêncio e palavras andam juntos. E uma forma de fazer isso, ou seja, produzir silenciamento, é dividir. Ao propor o estatuto da terra, Castelo Branco refreou o conceito de Reforma Agrária. Apagou sua incandescência. Tirou das mãos de João Goulart algo explosivo e silenciou o estopim do discurso do dia 13. O silêncio do passado – Estatuto da Terra, em vez de Reforma Agrária – retorna quando se volta a falar de Reforma Agrária, agora referida ao Estatuto da Terra. Ninguém se coloca contra o Estatuto da Terra, mas a Reforma Agrária deve, dizem, ser posta em prática com cautelas. O que se silencia, se evita é a possibilidade de uma ruptura, a transformação dos sentidos das relações de trabalho e de propriedade. E isto concerne ao jurídico enquanto pilar do Estado Capitalista e que tem nas mãos o poder de definir, estabelecer os sentidos para que sejam executados.

Outra forma de silêncio presente neste discurso é o da fala dos liberais. De diferentes modos. Em um dos casos, apaga-se o lugar de que se está falando. Desse modo, a palavra boia-fria, por exemplo, aparece como se tivesse o mesmo sentido para o sem-terra e o latifundiário. Com esse discurso apoiado no jurídico, o liberal – apagando os lugares e suas imagens discursivas – se pretende o lugar da igualdade, o da objetividade. Do sistema. No entanto é destas diferenças, silenciadas, que se constituem os diferentes sentidos. Ao apagar-se o lugar do locutor, também se apaga o interlocutor específico e isto inviabiliza qualquer outro discurso. Não há, pois, possibilidade de resposta. Outra forma de silenciamento, que apaga a possibilidade de sentidos outros. Mas, sobretudo, apaga os direitos do camponês, ou melhor, do trabalhador, ainda não proprietário.

 

Conclusão

Mas iniciamos essa reflexão falando do jurídico como constitutivo da forma sujeito histórica, indivíduo interpelado pela ideologia e afetado pelo simbólico. Esta é a forma que o jurídico sustenta na instituição do estado capitalista: sujeito de sua vontade e responsável, com pleno direito de ir e vir. Nesse processo de constituição do sujeito, como dissemos, há, pela articulação simbólico-política da Sociedade pelo Estado, um processo de individuação dessa forma sujeito: pelas instituições e pelos discursos. Tudo isso administrado pela constituição jurídica desse sujeito de direitos e deveres. Mas a ideologia é um ritual com falhas e o Estado capitalista é estruturado pela falha: há os que estão dentro e os que ficam segregados. É bastante desigual e há muita falta funcionando no modo como os sujeitos, individuados, se encontram com, se encontram nas instituições e discursos. E é já individuado, que o sujeito se identifica com uma formação discursiva e não outra e é nessa medida que uma palavra ou formulação, ao se inscrever em uma ou outra formação discursiva, adquire este ou aquele sentido. E é, identificando-se e fazendo este ou aquele sentido que este sujeito individuado, tem sua posição na formação social de que faz parte. Juridicamente constituído. Com ou sem direitos. Como dissemos, o Estado capitalista é o Estado da divisão: sujeito dividido em si, sujeitos divididos entre si. A formação social é dividida e constituída por relações de poder. O poder é simbolizado e nesta divisão também está investido o jurídico.

Daí que, em nossa conclusão, o que queremos mostrar é que, no caso da Reforma Agrária que mencionamos, em particular em nossa pequena análise (ORLANDI, 1985), o formalismo jurídico do discurso liberal que preside a discussão da Reforma silencia aspectos fundamentais. Por isso, buscar um efeito mais real do jurídico seria substantivar as questões, especificar, trazer à tona a realidade contida no formalismo; atingir a sustentação desse discurso, questionando o estado de divisão, de “desigualdade originária” que vem pressuposta como natural(izada) e sobre a qual se constrói o Estado de Direito.

Mas, em um sentido bem mais abrangente – e explorei isto em um texto sobre educação em direitos humanos (ORLANDI, 2007) – em uma sociedade como a nossa, em que o Estado falha e, na sua falta, funciona na divisão e na segregação, como funciona o jurídico? Como faz sentido? Ou como não faz?

Tomemos um exemplo na história: na Revolução Francesa, a relação com o jurídico foi tratada em suas relações de sentido, de forças e constituição do sujeito cidadão: explicitamente, como elemento da forma sujeito histórica, da formação social capitalista. Isto faz com que a memória discursiva francesa de cada cidadão esteja afetada por este processo de significação constitutivamente. Já em nosso caso, “importamos” a declaração dos Direitos do Homem, e nossa memória histórica é feita de colonização, escravidão e sistemas autoritários, ditatoriais, etc. Esta é nossa memória discursiva e é assim que nos individuamos como sujeitos do capitalismo, por sentidos que fazem sentido. Como fazer um sentido outro em uma memória já significada, em que certos sentidos não fazem sentido? Há, em consequência, sentidos não incorporados em nossa memória social e política.

Tenho estabelecida uma distinção útil para pensar este fato: a distinção entre o que chamo sem sentido e o não sentido. O não sentido (non sens) é o irrealizado, aquilo que ainda não faz sentido, mas pode vir a fazer. Já o sem sentido, ao contrário, resulta de silenciamento, de processos pelos quais as coisas perdem o sentido, ou, simplesmente, por estarem saturados, não fazem sentido.

Para muitos sujeitos de nossa sociedade, a palavra “igualdade” não faz nenhum sentido, é uma palavra sem sentido; em sua memória discursiva, esse sujeito não foi afetado por este processo de significação, em que o jurídico seria nuclear. Os sentidos resultam, entre outros, da filiação à memória. Para estes sujeitos, constituídos por relações de segregação produzidas pelo capitalismo, na experiência da desigualdade, da diferença, da divisão, isto se agrega tão fundamente em seu ser social que a palavra igualdade é sem sentido. Mas o sentido sempre pode vir a ser outro e do irrealizado, do non sens, podem brotar os germens da realização possível.

No entanto isto não se dá por meras manobras argumentativas, retóricas, mas por uma ruptura em que o real dos sentidos ressoa na memória e ecoa na história, fazendo sentido do interior do sem sentido. E aí, sentidos surdos e emudecidos, silenciados, podem atravessar a algazarra do processo dominante da produção de sentidos e encontrarão voz, podendo significar no coro dos Direitos Humanos, no do Sistema Jurídico, tão silenciados, embora tão ditos em nosso cotidiano.

Gostaria de observar que apresentei uma versão desse texto, em aula, para alunos da Faculdade de Direito de Pouso Alegre (2013). Não foi publicado, então. Mas, revisto e aumentado, decidi publicá-lo, agora, pelo fato de que o tema do estudo continua a necessitar de atenção e reflexão. Porque é um tema que abrange acontecimentos que são muito significativos em nossa história. A questão jurídica, a questão política, a questão da terra, da propriedade são permanentes. Questão dos direitos e deveres do cidadão e do Estado.

A sempre necessidade de definir – e manter – não só o direito da posse da terra, mas também ao trabalho, à autodeterminação dos sujeitos, etc. Nesses dias, foi morta uma criança, um menino, no interior de Pernambuco, cujo pai estava envolvido na luta pela terra. Mataram o filho. Não o pai. Essa crueldade mostra o tamanho da questão jurídica e da terra. Vida Severina. E de outras mais. Questão de direitos e deveres. Em uma sociedade capitalista mal construída. Julguei importante trazer para a leitura este texto sobre discurso jurídico, sobre liberalismo, que fala (também) da questão da propriedade, nos exemplos que analisa. Pareceu-me atual, embora o discurso que analisei, do PNRA, seja da época da Nova República, dos anos 1980.

Esta permanência da maneira como funciona o jurídico, o silenciamento que o acompanha, a questão da terra6 sempre significada na esquina do equívoco, que se mantêm, com todas as consequências que produzem, no confronto do simbólico com o político, para o sujeito social. Nas amplas dimensões que atinge – é para se dizer agrotóxico ou pesticida? – merece que não só os analistas de discurso se debrucem sobre esses acontecimentos, mas as autoridades e o poder público prestem atenção. Diz Simone Weil que a atenção é a mais pura forma de generosidade. Há ainda tempo e espaço para a generosidade? Espero estar contribuindo ao produzir, com este texto, as condições – mínimas – para que isto se dê efetivamente. Ainda penso que, como analista, posso contribuir para a luta social e histórica, apontando para o real dos processos de significação.

 

Bibliografia

HAROCHE, Cl. Fazer Dizer, Querer Dizer, São Paulo: Hucitec, 1992.

MAINGUENEAU, D. Nouvelles tendances em Analyse du discours, Paris: Hachette, 1987.

ORLANDI, E. P. Terra à Vista, São Paulo: Cortez/Unicamp, 1990.

ORLANDI, E. “O estatuto do liberal e a reforma da terra”, in revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro: ISER, 1985.

ORLANDI, E. Educação em direitos humanos – um discurso”, in Dias, A. A. et al (org.), Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos, João Pessoa: editora Universitária/UFPB, 2007.

ORLANDI, E. Discurso em Análise, Campinas: Pontes, 2003.

PÊCHEUX, M. Les Vérités de la Palice, Paris: Maspero, 1975.

 

Data de Recebimento: 03/07/2022
Data de Aprovação: 22/08/2022


1  O que me leva a dizer que o jurídico e o político são inseparáveis.

2  Não esqueçamos que a queda de Goulart teve como peça móvel a Reforma Agrária.

3  Este é um movimento interessante: para significar a Reforma Agrária é preciso saber o que é Democracia, e os sentidos de Democracia são função de como se define Reforma Agrária.

4  Atualmente, na Amazônia, se desmata e se fazem extensos pastos com pastagem de baixa qualidade, onde se colocam alguns bois apenas para marcar a propriedade. O que vale aí não é a atividade agropecuária, mas a propriedade. Isso é juridicamente aceitável?

5  E hoje, para distinguir, se fala em “agricultura familiar” para os que cultivam a terra sem destruí-la e o empresário agrícola é o grande produtor.

6  Tantas vezes travestida de ecologia. De seres culturais e não históricos (E. Orlandi, 1990) os índios reaparecem como seres ecológicos e não sócio-políticos, ditos na preservação das florestas, planetariamente, quando, na perspectiva do real, se trata da terra concretamente.