As doses homeopáticas do jornalismo: um discurso contra as fake News


resumo resumo

Eduardo Santos de Oliveira



Apresentação

Nos últimos anos, as questões e discussões sobre as fake news e a pós-verdade têm ganhado espaço, seja na imprensa e nos demais canais midiáticos, seja nas pesquisas acadêmicas, no Congresso Nacional ou no STF. No campo dos estudos da linguagem, tais questões têm suscitado reflexões, como demonstram os trabalhos de Mónica Zoppi-Fontana (2018) sobre a pós-verdade; o de Silmara Dela Silva (no prelo) sobre o funcionamento do discurso sobre jornalismo, a partir dos serviços de checagens; e o de minha autoria (OLIVEIRA, 2020) sobre a argumentação do jornalismo como um lugar de verdade e de certezas. É a partir dessa perspectiva que proponho esta reflexão, que visa também questionar o discurso jornalístico contra as fake news: Como esse posicionamento contrário às fake news constitui e faz circular sentidos sobre a credibilidade do jornalismo e sobre a apresentação e consolidação das agências de checagem de fatos?

Neste artigo, meu objetivo é analisar o funcionamento do discurso sobre essas agências de checagens, observando os modos como esse discurso se constitui e se afirma a partir de uma evocação ao discurso do “jornalismo tradicional”, mas também de um afastamento deste. Para isso, eu constituo um corpus de análise com base em recortes do artigo “Desconstruindo as fake news: o trabalho das agências de fact-checking”, que faz parte do livro “Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas”, uma coletânea de artigos organizada pela jornalista Mariana Barbosa (2019).

Com relação às fake news e pós-verdade é preciso discorrer brevemente sobre as características de ambas. No geral, a pós-verdade é entendida a partir da definição do Dicionário Oxford, que em 2016 a elegeu como “palavra do ano”. Essa definição aponta para a pós-verdade como as condições, as circunstâncias nas quais o caráter subjetivo (“emocional”) tem mais força que o caráter objetivo (“racional”), ou seja, uma “era” em que o senso comum prevalece contra o senso crítico, a opinião contra os fatos (PICCININ, 2020), a emoção contra a racionalidade (SANTAELLA, 2018). Por sua vez, as fake news dizem respeito às informações e notícias não produzidas pelos “canais oficiais” (a imprensa) e compartilhadas nas redes sociais (BUCCI, 2019). Assim, as fake news surgem justamente dentro dessas condições possibilitadas pela predominância do que se chama pós-verdade.

Conforme Carlos Vogt (2017, online), a pós-verdade é um conceito-coringa, que “diz tudo e diz nada, porque é feito da confusão entre o que se transforma, por conhecer, e a transformação do conhecimento na banalidade de receitas de autoajuda epistemológica”. Partindo de uma posição que considera as lutas de classes, eu considero que a pós-verdade e as fake news dizem respeito à disputa pelos modos de dizer, em que a imprensa reivindica para si o lugar de porteiro, de guardião da verdade, que determina a si mesma como autoridade única e reguladora desses modos de dizer, e que delimita o que seja verdadeiro ou falso (OLIVEIRA, 2020).

Para as reflexões aqui propostas, tomo como base teórico-analítica a Análise de Discurso (AD) da perspectiva materialista de Michel Pêcheux, que considera a linguagem não como transparente, mas como opaca, e que propõe procedimentos analíticos com vistas a ir além dos aspectos “evidentes” na materialidade linguística e que considera o sujeito na relação com a língua, mas não o coloca como autor, origem ou dono do dizer, como aquele que faria a língua “funcionar”, e sim como interpelado (afetado) pela ideologia e pelo inconsciente, a partir de sua relação com a língua (PÊCHEUX, 1969, 1975, 1988).

Nas linhas a seguir, apresento as bases teórico-analíticas que discutem algumas questões levantadas por essa teoria do discurso, além de destacar conceitos que fazem parte do percurso de investigação deste trabalho, constituindo, assim, seu dispositivo teórico-analítico. Em seguida, passo à análise de recortes do corpus, confrontando-os a partir de um gesto de interpretação baseado na AD, o que levará a discorrer sobre o funcionamento do discurso sobre as agências de checagem.

 

1. Desfazendo as evidências

Os estudos de Michel Pêcheux sobre o discurso surgem na França, num contexto em que o estruturalismo é predominante e em que o conteudismo e a lexicologia estrutural ditavam os estudos linguísticos. Conforme Gadet e colaboradores (2010), a AD, a partir do método do distribucionalismo de Harris, se sustenta como oposição aos modelos vigentes, com os quais se buscava responder, objetivamente, à questão acerca de “o que esse texto está dizendo”.

Logo no início do texto “Análise automática do discurso” (1969), Pêcheux destaca o fato de, na linguística, haver a predominância dos estudos sobre a língua como relacionados ao estudo de textos, isto é, à compreensão do texto. Com isso, Pêcheux aponta o deslocamento que os estudos realizados por Ferdinand de Saussure (reunidos no “Curso de Linguística Geral”) produziram nos estudos da linguagem: pensar a língua como um sistema e compreendê-la não por sua função, mas por seu funcionamento relacional. E isso desloca o objetivo do trabalho linguístico: não mais “procurar o que cada parte significa, mas quais são as regras que tornam possível qualquer parte, quer se realize ou não” (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 60). Assim, o autor aponta que

 

O “texto”, de modo algum, pode ser o objeto pertinente para a ciência linguística pois ele não funciona; o que funciona é a língua, isto é, um conjunto de sistemas que autorizam combinações e substituições reguladas por elementos definidos, cujos mecanismos colocados em causa são de dimensão inferior ao texto: a língua, como objeto de ciência, se opõe à fala, como resíduo não científico da análise (PÊCHEUX, [1969] 2010 p. 60, itálico do autor).

 

A partir desse deslocamento, Pêcheux critica o que chamou de “análise de conteúdo” ou “análise de texto”, cuja prática se baseava numa atividade descritiva e normativa, e que buscava responder a perguntas como “sobre o que este texto fala?”, “quais as ideias principais deste texto?”, “o texto está de acordo com as normas da língua?” – ainda presentes e dominantes atualmente. Assim, Pêcheux apresenta um novo instrumento, um novo dispositivo de investigação nas ciências humanas e sociais: a análise de discurso.

No texto “A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas”, publicado em 1975, Pêcheux e Catherine Fuchs apresentam o quadro teórico dessa nova proposta:

 

Ele [o quadro teórico] reside, a nosso ver, na articulação de três regiões do conhecimento científico: 1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. a linguística, como teoria dos mecanismo sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que essas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (PÊCHEUX; FUCHS, [1975] 2010, p. 160).

 

Assim, a partir dos estudos saussureanos, das concepções althusserianas e da teoria do discurso1, a perspectiva de Pêcheux instaura um novo quadro teórico que lastreará os estudos discursivos, dados segundo uma articulação de saberes da qual a linguística faz parte. Com isso, a observação está não mais na função da língua, mas em seu funcionamento, sendo essa o “lugar material” onde são realizados os efeitos de sentido dos processos discursivos, ou seja, é na língua que o discurso apresenta sua materialidade específica (PECHEUX; FUCHS, [1975] 2010). E isso leva a questionar o homem como “autor” da própria história, e considerar as condições materiais como determinantes dos processos históricos humanos.

Aqui, vale trazer o que Marx, em 1852, já dizia sobre isso: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX [1852] 2011, p. 25).

Com isso, entendo que as relações sociais humanas se dão a partir das relações materiais, e não a partir do mundo das ideias, da imaginação, da “força do pensamento”. Ou seja, não se toma o mundo real como produto ou como o espelhamento de um mundo imaginário superior que o precede:

 

A produção de ideias, de representações, da consciência, está em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio dos homens, com a linguagem da vida real. […] Não é a consciência que determina a vida, mas vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, [1846] 2007, p. 93-94).

 

Assim, Pêcheux ([1969] 2010) observa o discurso não de forma isolada, “desconectado” do real que o afeta, discorrendo sobre as condições de produção do discurso – as “circunstâncias” nas quais um discurso acontece. Porém, não se trata apenas do “contexto” imediato (o sujeito e seu dizer), mas também, e acima de tudo, das condições históricas e ideológicas de produção de sentidos do discurso.

Para apresentar esse conceito, Pêcheux ([1969] 2010, p. 78) destaca dois esquemas daquela época que trabalhavam a questão da “descrição extrínseca do comportamento linguístico em geral”, ou seja, que consideravam o exterior à língua em seus estudos: o behaviorista, a partir do modelo “estímulo-resposta” ou “estímulo-organismo-resposta”, modelo que não considerava o lugar ocupado pelos dois lados envolvidos; e o comunicacional, o qual colocava a língua como instrumento comunicacional, tal como no famoso esquema de Jakobson (1963) das “funções da linguagem”, presente e predominante tanto na educação básica (mais precisamente no ensino médio), quanto na educação acadêmica.

O esquema comunicacional jakobsoniano apresenta um emissor (ou destinador) que envia uma mensagem ao seu destinatário; por sua vez, essa mensagem precisa de um contexto (ou referente) que pode ser apreendido pelo destinatário, de um código comum entre os dois participantes e de um canal para estabelecer o envio da mensagem. Com isso, esse modelo apresenta um aspecto linear e lógico da comunicação: para haver uma “boa” comunicação, é preciso que sejam seguidos os “passos” e que os elementos desse esquema sejam observados.

A partir disso, Pêcheux ([1969] 2010, p. 81) afirma que a mensagem não é uma transmissão de informação de um lado para o outro, e sim que apresenta o “caráter discursivo”, e o discurso é o “efeito de sentidos” entre os “dois lados” desse processo. Esses “lados”, conforme Pêcheux, não correspondem a pessoas, a indivíduos com suas características físicas e psíquicas, mas a lugares, a posições discursivas (mãe, pai, filho, patrão, empregado, professor, aluno, artista etc.). No caso do jornalismo, não é simplesmente uma pessoa que escreve o texto, mas é a posição de jornalista, o lugar do jornalismo que sustenta e faz a notícia significar. É isso que faz um mesmo assunto ter diferentes efeitos quando produzido por diferentes posições discursivas.

É aqui que aparece o trabalho sobre a ideologia. Para Pêcheux, a ideologia não diz respeito a um conjunto de ideias, uma mentalidade dominante de determinado tempo imposta de forma contínua e homogênea e que anteceda a luta de classes. Ou seja, não é como se cada classe tivesse a sua própria ideologia e a luta de classes fosse o embate entre elas, de tal forma que aquela que tivesse mais “força” venceria, dominaria. Não se trata de dicotomias excludentes, ou de uma oposição simétrica.

Aqui, a ideologia é pensada como um mecanismo de produção de evidências e de transparência, que apaga (ou tenta apagar) o caráter interpretativo – como se os sujeitos, os discursos e os sentidos fossem tais como são apresentados. Para Pêcheux (conforme sua leitura de Althusser), a ideologia interpela o indivíduo como sujeito e este produz um dizer como se fosse a própria origem desse dizer e como se o sentido já estivesse dado previamente. A ideologia é o que possibilita o efeito de evidência sobre os fatos, sobre o mundo: “todo mundo sabe” o que é notícia, “todo mundo sabe” o que é verdade, fake news etc.

Esse funcionamento ideológico mascara, apaga o “caráter material do sentido” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p.146), ou seja, coloca como transparente aquilo que tem uma materialidade e que é constituído dentro de uma formação discursiva, isto é, “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, minada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX,[1975] 2014, p. 147, grifos do autor). Essas formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso, são regionalizações de sentido, uma vez que o interdiscurso “designa o espaço discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações discursivas em função de relações de dominação, subordinação, contradição” (MALDIDIER, 2003, p. 51).

Com isso, Pêcheux contesta que uma palavra tenha um sentido literal e intrínseco e afirma que o sentido de uma palavra ou expressão é determinado a partir das formações discursivas nas quais são produzidas. Assim, uma palavra não surge “do nada”, mas já foi dita antes, mesmo que isso não seja sabido pelo locutor na enunciação, no momento em se que diz algo, e isso determina os sentidos de um discurso – é que se chama de interdiscurso: o conjunto de discursos, de dizeres, tudo aquilo que já foi dito (ou silenciado) que possibilita um “novo” dizer significar (ORLANDI, 2013) fornece os dizeres para uma determinada formação discursiva.

E um elemento com o qual se pode observar o interdiscurso é o pré-construído, noção trazida por Paul Henry ([1975] 1990) e assumida por Pêcheux ([1975] 2014) para discorrer sobre a relação entre os discursos, ou seja, entre o que é dito com o que já foi dito. O pré-construído é o “efeito subjetivo de anterioridade, de implicitamento admitido” (HENRY, [1975] 1990), é “uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 89), é o “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade (o ‘mundo das coisas’)” (PÊCHEUX, [1975] 2014, p. 151). Assim, um discurso não tem sentido próprio e não funciona por si mesmo, de forma isolada, mas sim a partir da relação com outros discursos, pelos quais é atravessado.

Com isso, Henry faz uma crítica à noção de pressuposição (a partir de uma análise sobre os estudos de Frege e Ducrot), propondo algo para além dela. Dentro dessa perspectiva da pressuposição, para aquilo que é posto, que aparece no enunciado, há sempre um pressuposto que o determina, sem o qual o que está sendo dito não significa. Isso implica dizer que há uma dependência do posto para com o pressuposto, e também implica em assumir que haja um posicionamento que reconhece, de forma consciente, a literalidade do pressuposto no enunciado (posto).

De fato, assume-se que há discursos que aparecem num dizer, fazendo este significar, mas esse “aparecimento” não se dá de forma explícita e consciente: o pré-construído irrompe num enunciado como se não tivesse aparecido antes, produzindo a ilusão de um dizer original e próprio. Trata-se de um dizer, um discurso já dito em outra situação, que aparece como se não tivesse sido dito, como se fosse próprio da enunciação, ou seja, do momento em que se diz. É o efeito do esquecimento nº 1: ao ser afetado pela ideologia, o sujeito tem a ilusão de ser a própria origem daquilo que diz, de ser o autor do que é dito e do dizer (ORLANDI, 2013).

Assim, para além de apontar para um pressuposto que autoriza o posto a significar, é preciso observar como esse enunciado (o posto) aparece como se fosse único e pertencente à enunciação e àquele que enuncia, e não como parte de discursos que já foram ditos anteriormente e de forma independente.

 

2. Análise

Para discorrer sobre o funcionamento do discurso sobre as agências de checagens, o corpus deste trabalho é constituído a partir sequências discursivas do texto “Desconstruindo as fake news: o trabalho das agências de fact-checking”, que faz parte do livro “Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas”, uma coletânea de artigos organizada pela jornalista Mariana Barbosa, cuja temática se baseia em dois temas atuais: a pós-verdade e as fake news. Conforme a organizadora aponta na apresentação do livro, a proposta é “ajudar a compreender o fenômeno da pós-verdade em suas dimensões política, tecnológica, filosófica, jurídica e jornalística”, como forma de possibilitar “uma reflexão mais detida e, também, uma tentativa de apontar caminhos para uma atuação mais consciente nas redes” (BARBOSA, 2019, p. 07) para enfrentar as consequências desse fenômeno.

O livro é produzido e publicado em 2019, no primeiro ano de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, após um processo eleitoral, em 2018, marcado pela ampla produção e pelo volumoso compartilhamento de fake news nas redes sociais. É um momento no qual instituições tais como o judiciário, a universidade, a ciência, a imprensa têm suas práticas e autoridade questionadas, desprezadas e/ou desqualificadas.

Quem assina o artigo é Gilberto Scofield Jr., jornalista por formação, que trabalhou no jornal O Globo, na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e prestou consultoria na Secretaria de Comunicação da Presidência da República no governo da presidenta Dilma Rousseff. Entretanto, nesse momento, o que traz força e garantia a seu dizer é o cargo que ocupa atualmente: diretor de estratégia e negócios da Agência Lupa2, à qual ele vai citar e apresentar.

Sobre isso, vale ressaltar a crítica de Pêcheux ao modelo comunicacional: não se trata do indivíduo “Gilberto”, dono e origem do dizer, que transmite uma informação a outro indivíduo; trata-se de posições-sujeito (sustentadas segundo) formações imaginárias, “lugares determinados na estrutura de uma formação social [...], a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 81). Ou seja, é preciso observar que o discurso é produzido a partir de uma posição-sujeito3 de um diretor de agência de checagem, de um especialista em checagem de fatos, que fala a uma posição-sujeito de leitor que pesquisa sobre o assunto,4 apresentando um dizer sobre o trabalho das agências de checagem de fatos.

Sigamos então para a primeira sequência discursiva (SD):

 

SD 1: Desconstruindo as fake news: o trabalho das agências de fact-checking

 

Essa sequência discursiva diz respeito ao título do artigo. Assim, nesse primeiro momento, há uma projeção sobre o que será tratado, e há também uma predicação que aponta para “o trabalho das agências de fact-checking é desconstruir as fake news”. Todavia, como será apresentado a seguir, a generalização “agências” é reduzida a um exemplo – no caso, ao da agência na qual o autor do texto é diretor.

Aqui, serão observados quatro movimentos no discurso sobre as agências de checagem: o que aponta a “crise” do “jornalismo tradicional” e sua respectiva perda de credibilidade; o que destaca a consolidação das agências de checagem de fatos como uma resposta a essa crise; o que discorre sobre como essas agências “desconstroem” as fake news (como proposto no título do artigo analisado); e o que sustenta uma contradição no interior do funcionamento dessa consolidação. Não são movimentos que seguem um plano sequencial e que ocorrem de forma separada, mas sim movimentos que se encontram uns nos outros e que direcionarão as análises.

 

2.1. O diagnóstico da crise e as doses homeopáticas

Para tratar sobre essa primeira observação, vejamos a seguinte sequência discursiva:

 

SD 2: [...] A passagem pelo Planalto me revelou o aprofundamento da crise que se abateu sobre o jornalismo tradicional e que só pioraria dali em diante. Trata-se de uma crise de forma e de conteúdo que muito contribuiu para a perda gigantesca de credibilidade da mídia como um todo (negritos meus).

 

Nessa sequência, vale observar como a posição-sujeito sustenta uma “revelação” possibilitada pelo período no qual trabalhou no Planalto: não a crise do jornalismo, mas o aprofundamento desta. Assim, há um não-dito que sustenta que já existe uma crise, e que esse estágio “revelado” se trata de um avanço na crise, de um nível mais intenso na crise (que já existia).

Aqui, é importante observar o funcionamento restritivo da oração subordinada adjetiva “que se abateu sobre o jornalismo tradicional”. Distanciando-se do que as gramáticas tradicionais dizem sobre a oração adjetiva,5 considero que, do ponto de vista discursivo, elas identificam e determinam o antecedente do pronome relativo “que” de tal forma que as duas partes são tomadas como se fossem uma só, como numa relação intrassequencial (a relação de uma sequência discursiva consigo mesma), quando na verdade se trata de uma relação intersequencial (duas sequências discursivas distintas se encontram numa mesma), tal como considera Henry ([1975] 1990).

Assim, “crise que se abateu...” funciona como sendo uma sequência discursiva única e relacionada ao próprio dizer, quando se trata de uma outra sequência (independente) que irrompe nesse enunciado, como forma de especificar o antecedente (“crise”), com a ilusão de que esse enunciado é “novo” e que tem origem no sujeito que o enuncia. É o efeito do pré-construído, que irrompe um dizer como se este fosse “novo” e sem relação com algo que “fala antes”, e do esquecimento nº 1, que produz a ilusão de o sujeito ser a própria origem do dizer – tal como já fora discorrido na seção anterior.

E qual seria essa “crise”? Conforme afirma a posição-sujeito, é “uma crise de forma e de conteúdo que muito contribuiu para a perda gigantesca de credibilidade da mídia como um todo”. Aqui, afirma o tipo de crise (de forma e de conteúdo), rememorando sentidos e discursos que atravessam a história do jornalismo brasileiro que, em outros momentos, já lidou com esse tipo de crise, como diante do surgimento da televisão no Brasil6 ou da consolidação da internet. Todavia, não há uma mínima discussão sobre como se daria essa crise de forma e conteúdo, ou seja, em que consistiria, quais os aspectos dela etc.

Também é interessante observar o funcionamento restritivo da oração adjetiva e de como o pronome “que” produz o efeito de ser uma coisa só, determinando o sintagma nominal (“uma crise de forma e de conteúdo”). Note que há uma afirmação categórica, que apresenta algo como inquestionável, não apenas como um dizer conhecido por todos, mas como verdadeiro, como um saber universal: a crise de forma e de conteúdo é a mesma que contribuiu para a perda gigantesca da credibilidade da mídia como um todo. Repare que, mais uma vez, não há um detalhamento ou explicação, uma discussão – dessa vez, sobre por que e como essa crise é responsável pela perda de credibilidade da mídia. Além disso, é importante observar como é feita a mobilização de como essa crise do “jornalismo tradicional” afeta a mídia – que diz respeito a diversos e diferentes meios (ou suportes) de comunicação, tais como televisão, rádio, internet, imprensa, publicidade etc. Assim, afirma que o jornalismo é responsável pela perda de credibilidade da mídia.

Para finalizar esse primeiro movimento, observe mais esta sequência:

 

SD 3: Há muito que a cobertura jornalística vem se reduzindo ao declaratório – que serve mais para apaziguar a consciência dos executivos de redação a respeito da “isenção” do conteúdo produzido do que propriamente servir ao interesse público. Basta ouvir um lado, ouvir o outro e a tese da reportagem fica “redonda”.

O jornalismo declaratório esquece uma regra básica da profissão, expressa de forma bastante didática por Jonathan Foster, professor do curso de jornalismo da Universidade de Sheffield: “Se uma pessoa diz que está chovendo e outra diz que não está, o trabalho do jornalista não é simplesmente publicar as aspas de ambos. É botar a cabeça para fora da droga da janela e descobrir quem está falando a verdade” (negritos meus).

 

Observe como um já-dito aparece para sustentar que há uma regra básica (conhecida pelos profissionais da área), mas que ela é “esquecida” pelo jornalismo, o que possibilita a crítica da posição-sujeito ao fazer jornalístico, qualificado como “declaratório”. E isso ressoa numa crítica ao mito da imparcialidade: não basta ouvir dois lados e usá-los como fontes da notícia, é preciso checar se o que cada um fala é “verdade” ou não. Mas esse processo de checagem se baseia numa função veritativa e empírica, em que o checador usa a lógica para decidir se algo dito é verdadeiro ou falso, sem se importar com a significação e com quais os efeitos de uma informação ser verdadeira ou não.

Aqui nesse primeiro movimento, foi possível observar como funciona o efeito de pré-construído, que aparece como sendo dito na própria enunciação, como se fosse original e próprio daquele que fala naquele momento. Outrossim, ele faz irromper outros discursos que são exteriores à posição-sujeito e ao enunciado no qual aparecem, de tal forma que produz a ilusão de ser algo novo e pertencente ao próprio momento do dizer, sendo também um efeito do esquecimento nº 1.

 

2.2. O “efeito Münchhausen”: a checagem como resposta à crise

Barão de Münchhausen é um personagem de Rudolf Erich Raspe (1902), cuja história data do final do século 18. Um dos precursores da literatura fantástica, Barão narra aventuras que fogem ao real, tais como ir à lua (duas vezes), matar mais de 50 aves com apenas um tiro e um dos casos mais intrigantes: afundando com seu cavalo num pântano, segura as rédeas com os dentes e, puxando o próprio cabelo, consegue escapar com o animal. Uso esse exemplo para indicar como a checagem de fatos é apresentada: o jornalismo como “causa de si” (PÊCHEUX [1975] 2014, p. 143), como aquele responsável por salvar a si mesmo. Vejamos isso a partir da seguinte sequência discursiva:

 

SD 4: O trabalho de checagem de fatos sempre existiu na mídia tradicional. O checador era o sujeito pago pelos veículos para verificar as declarações e informações e não deixar que erros e imprecisões chegassem ao leitor/espectador/ouvinte. Em parceria com os redatores, o trabalho refinava a apuração jornalística para que nada além dos fatos comprováveis e verificáveis – embalados em textos bem escritos – fosse servido ao consumidor de conteúdo. Com a consolidação da internet como plataforma de consumo de notícias – em particular por meio das mídias sociais, a partir de 2004 –, o modelo de negócios das empresas de comunicação, baseado em publicidade, ruiu (negritos meus).

 

De início, observa-se que a checagem de fatos é colocada não como algo novo, mas como um trabalho que “sempre existiu na mídia tradicional”. Aqui, a posição-sujeito, inscrita numa formação discursiva jornalística, enuncia um dizer como verdadeiro e evidente, sustentando isso a partir da posição do jornalista como checador e com discursos que atravessam o funcionamento do discurso jornalístico: sobre a objetividade (“nada além dos fatos comprováveis e verificáveis”) e a clareza e concisão (evitar os “erros e imprecisões” e fazer “textos bem escritos”). Aqui, esses outros discursos atravessam o atual discurso, de tal forma que não há uma demarcação entre a evocação daqueles e a presentificação deles como “originais” e próprios desse “novo” dizer. Essa ausência de demarcação é o efeito de pré-construído.

Assim, ao retomar esse discurso da objetividade e da clareza e concisão, há uma formação imaginária sobre o que seja o trabalho jornalístico de verificação de fatos, baseado num modelo comunicacional – sustentado por um já-dito, de um interdiscurso, sobre a prática jornalística. Esse funcionamento do discurso jornalístico faz o que Mariani (1998, p. 64) chama de “institucionalização social dos sentidos”, ou seja, que a prática com esse discurso constitua o imaginário social, tanto a partir de uma “cristalização” ou evidencialidade de uma memória de passado, quanto da projeção de uma memória de futuro.

Ainda nessa sequência, é preciso atentar para algumas projeções de sentidos. A primeira é a que coloca o jornalismo (e a mídia) como um negócio – cujo modelo “ruiu” a partir da ascensão das “mídias sociais”, a partir de 2004. A segunda é a que apresenta a relação consumidor-produto (ou conteúdo), ou seja, uma relação econômica e não apenas social. Ou seja, o leitor/espectador/ouvinte é alçado ao nível comercial: ele não lê, não assiste e não ouve uma notícia; ele consome um produto transmitido (vendido) por empresas no jornal impresso, na internet, na TV ou no rádio. Além disso, esse consumidor também consome (“por tabela”) as propagandas veiculadas nesses meios de comunicação.

Assim, a “crise” do jornalismo é colocada como relacionada ao não acompanhamento da mudança do modelo de negócios, o que apaga outra relação que é decisiva para essa crise: a crise do trabalho, dentro do funcionamento do modelo capitalista. Trata-se de uma crise do trabalho social do jornalismo, cuja característica básica está na precarização da mão de obra, sistêmica do capitalismo atual: o “enxugamento” das redações, o aumento de estagiários para fazer o mesmo trabalho de um profissional formado, mas ganhando apenas uma bolsa ou mesmo nem ganhando.

A partir desse apontamento da crise do modelo de negócio da imprensa, apresenta-se um outro modelo, como pode ser visto na sequência discursiva a seguir:

 

SD 5: A checagem de fatos como prática jornalística demorou para entrar no radar dos veículos de imprensa no Brasil. Esse movimento começa a partir da campanha eleitoral de 2014, quando, por iniciativa da jornalista Cristina Tardáguila, o jornal O Globo põe no ar um blog de checagem chamado Preto no Branco, inspirado no modelo argentino do Chequeado.

Apesar de altos índices de audiência, o Preto no Branco sai do ar no ano seguinte – confirmando uma certa incapacidade do jornalismo brasileiro em enxergar na checagem um nicho de negócio. Felizmente, a jornalista não desistiu: montou um plano de negócios e resolveu empreender. Em 2015, com investimento do empresário, produtor e documentarista João Moreira Salles, nasce a startup Agência Lupa, a primeira agência de notícias especializada em checagem de dados do país […] (negritos meus).

 

Nessa sequência discursiva, há um apontamento para como teria surgido o trabalho das agências de checagens de fatos no Brasil; “teria” porque há controvérsias sobre quem seria a pioneira, e por causa da contradição sobre o que foi falado no início da SD3 – o que será discutido mais à frente. Neste momento, o interesse aqui é observar o discurso sobre a “alternativa” para enfrentar a “crise” do “jornalismo tradicional”, isto é, a crise institucional sem um “modelo de negócio” definido.

Assim, o trabalho de checagem de fatos é colocado como um negócio, em que a posição-sujeito se alinha ao discurso de mercado que apresenta não uma nova proposta de prestação de serviços, mas um modelo de negócio; isso porque a posição-sujeito apresenta duas palavras que fazem parte do discurso capitalista em sua fase atual: “empreender” e “startup”. A primeira mobiliza dizeres que se inscrevem em uma formação discursiva que relaciona “empreender” a uma perspectiva de criatividade, autonomia, comprometimento, competência, dedicação – fatores que, se unidos e seguidos à risca, possibilitariam o sucesso e o lucro do “empreendedor”. A segunda anda junto com a primeira, mobilizando sentidos aproximados e se caracterizando pelo fato de ser uma empresa “repetível” (que entrega um produto em larga escala, de forma uniformizada) e “escalável” (com amplo crescimento nas receitas, gerando alto índice de lucros cada vez mais).

Vale ressaltar que essa formação discursiva faz parte das atuais relações de trabalho, em que, cada vez mais, trabalhadoras e trabalhadores têm os direitos e garantias trabalhistas suprimidas, haja vista os constantes ataques por meio das “reformas” trabalhista e previdenciária; e esse novo modelo de negócios se sustenta dentro dessa formação discursiva. Conforme Pêcheux ([1975] 2014), é pela formação discursiva que o indivíduo é interpelado em sujeito, de tal forma que essa formação dissimula tanto o fato de o sujeito ser a origem/fonte do próprio discurso, quanto o fato de esse discurso estar ligado ao interdiscurso, isto é, ao conjunto de todos os discursos (algo já fora dito antes).

 

2.3. A “desconstrução” das fake news

Uma vez que já foi discorrido sobre como a posição-sujeito apresenta a crise do “jornalismo tradicional” e as agências de checagem como resposta (como proposta ao enfrentamento dessa crise), o terceiro movimento diz respeito a como esse enfrentamento pode ser feito. Vejamos isso a partir da seguinte sequência discursiva:

 

SD 6: E este é o grande desafio dos checadores de fatos hoje: desconstruir os discursos maniqueístas e manipuladores com dados objetivos e aumentar o custo da mentira, valorizando a verdade. (negritos meus).

 

Em SD 6, a posição-sujeito assume o objetivo da prática de checagem e o modo como ela é feita: apresentar “dados objetivos” é a forma de desconstruir as fake news. Aqui há uma questão quanto ao discurso sobre a checagem de fatos: a posição assume que as fake news são discursos maniqueístas e manipuladores, mas o trabalho de checagem não seria, também, maniqueísta? Ora, se o maniqueísmo diz respeito a uma avaliação em que uma questão é definida a partir de duas características que se opõem, é justamente isso que as agências de checagem fazem quando declaram que um fato é verdadeiro ou falso. Ainda sobre os dados objetivos, observe a sequência a seguir:

 

SD 7: O esclarecimento da população é importantíssimo. Afinal, nem tudo que se vê nas redes e na mídia é checável. O que define isso são os dados usados para bancar determinada afirmação, que precisam ser verificáveis, como estatísticas, dados históricos, comparações ou legalidades. Geralmente, são bancos de dados que trazem o debate para o terreno da objetividade (negritos meus).

 

Nessa sequência, os “dados objetivos” são o modo de enfrentar as fake news: os dados, aquilo que já existe, são o que define não apenas se algo pode ser checado (ou não), como também define se ele é verdadeiro ou falso. E esse processo referencial e empírico é o que fornece a ilusão de que o trabalho de checagem “esclareça” a população, produzindo um efeito de sentido de que o trabalho da checagem é de esclarecer a população sobre os fatos – no caso, sobre as fake news.

Observe como o discurso sobre a objetividade, um dos princípios básicos do “jornalismo tradicional”, aparece aqui como característica para sustentar o trabalho de checagem. Há uma retomada do discurso jornalístico, uma repetição que se mostra como novidade, como algo evidente e independente – também o efeito do pré-construído. Assim, ao mesmo tempo em que a agência de checagem busca se distanciar do “jornalismo tradicional” – como numa tentativa de descontinuidade desse modelo (de negócios) –, também se mantém próxima e faz uso do discurso jornalístico como forma de sustentar a própria credibilidade.

Ainda sobre o modo de “desconstruir” as fake news, observe mais uma sequência discursiva:

 

SD 8: Em 2017, a agência criou o braço Lupa Educação, dedicado a treinar jornalistas e não jornalistas sobre ferramentas básicas de checagem de fatos e aumentar o pensamento crítico e a conscientização sobre o que os americanos chamam de media literacy – a habilidade de consumir notícias de verdade sabendo separar o que é falso do que é verdadeiro (grifos do autor).

SD 9: Como agência de notícias, a Lupa possui entre seus principais clientes veículos da imprensa: Folha de São Paulo, o portal UOL, Yahoo!, entre outros. Há ainda parcerias com redes sociais, garantindo a verificação em plataformas onde o anonimato e bolhas turbinam a desinformação.

 

Além de apresentar “dados objetivos”, a checagem de fatos – no caso, da agência Lupa – também tem como método o treinamento de jornalistas (e de “não jornalistas”). O interessante é que esse treinamento de “aumento” da criticidade traz consigo um modelo dos Estados Unidos, com o qual uma pessoa (ao distinguir o que seja verdadeiro ou falso) consiga consumir “notícias de verdade”. Vale questionar esse modelo dentro do jornalismo estadunidense e seu funcionamento, visto a enxurrada de notícias sobre a (falsa) existência de armas químicas no Iraque, além de pensar em como se deu a eleição de Donald Trump em 2016 (marcada pelas fake news sobre a oponente Hillary Clinton).

No Brasil, apesar do “treinamento” do modelo estadunidense, alguns jornais demonstram as contradições do discurso da checagem. Em abril de 2020, o jornal O Globo divulgou vários boatos sobre “problemas de saúde”7, “ausência”8 e “morte”9 de Kim Jong-sun, presidente da República Popular da Coreia. Boatos também compartilhados pelos jornais Folha de São Paulo10 e O Tempo11, entre outros, e que apresentam duas características importantes: terem origem na imprensa estrangeira e não serem checados nem por esses jornais nem pela Agência Lupa, por exemplo. Aqui, trago o que Zoppi Fontanta (2018, p. 160) fala sobre a relação entre a imprensa e pós-verdade, e de um debate sobre a “ética da enunciação”:

 

A polêmica sobre a pós-verdade traz para o debate, além das questões de uma suposta “cultura política” fundada no engodo, as relações perigosas e camufladas desta com o jornalismo e a mídia tradicional, que participam do jogo da mentira deliberadamente e de forma potencializada pelas novas tecnologias.

 

Por fim, observe nessas duas sequências uma formação discursiva (“consumir notícias”) que sustenta a forma como é apresentada a frente de trabalho da agência: como toda empresa, possui clientes (a quem vende seu produto, a checagem), entre os quais estão empresas de mídia e de jornalismo (UOL, Yahoo!, Folha de São Paulo, Época), Facebook (que praticamente monopoliza as redes sociais) e Google. Assim, o discurso de mercado coloca a notícia como uma mercadoria, como Marcondes Filho (2009, p. 78) já apontava:

 

Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação do subjetivismo.

 

Assim, tal como o “jornalismo tradicional” transforma informação em mercadoria, vendendo-a ao público de leitores e aos anunciantes, a Lupa transforma a checagem de uma informação em mercadoria, vendendo-a a outras empresas que vendem notícias e disponibilizando-as no site próprio da agência.

 

2.4. Nem isso, nem aquilo: muito pelo contrário!

Como já foi dito, o quarto movimento observado diz respeito à contradição no funcionamento da consolidação das agências de checagem. Como parte da argumentação sobre a crise do jornalismo (e como isso implica no trabalho das agências de checagem), a posição-sujeito sustenta que aquele “esqueceu a regra básica da profissão” (a checagem dos fatos). Para falar sobre essa “regra básica”, a posição-sujeito se baseia em uma fala exterior a sua, cuja característica veritativa é o argumento principal: não basta “ouvir” os dois lados, pois é preciso “botar a cabeça para fora” e conferir se o que fora dito é verdadeiro ou não.

Todavia, é uma relação díspar, uma vez que são duas situações diferentes: enquanto o “jornalismo declaratório” trabalha com a produção de notícias sobre os fatos, as agências trabalham com a checagem de declarações que circulam nas redes sociais ou mesmo de figuras públicas na mídia (conferir se algo que foi dito é verdadeiro ou falso). Assim, para colocar as agências de checagem como um novo negócio (que dá conta do nicho “esquecido” pelo jornalismo), a posição-sujeito apaga a disparidade entre os dois trabalhos, apresentando o último como a opção viável.

Observe também aquilo que a posição-sujeito diz sobre a checagem de fatos no Brasil: enquanto em SD 4 há uma afirmação de que o trabalho de checagem sempre existiu, em SD 5 esse trabalho “demorou para entrar no radar” da imprensa, sendo apontado como iniciado a partir do processo que deu início à agência Lupa.

Esse discurso aponta para a crise (de forma e de conteúdo) do “jornalismo tradicional” e apresenta as dificuldades, as falhas, as “fraquezas” desse: perdeu a exclusividade na mediação do debate público e a “autoridade para definir o que é notícia”, está reduzido ao declaratório e não mais dá conta das demandas sociais. Ao fazer isso, a posição-sujeito coloca as agências de checagem, isto é, a empresa à qual faz parte, como uma outra opção, como um novo que “entende do negócio”. Todavia, para isso, faz-se valer dos mesmos discursos presentes no “jornalismo tradicional”: uma prática objetiva, veritativa e imparcial.

Por fim, não se trata de retomar uma “regra” apagada pela reorganização do modelo de negócio jornalístico, isto é, a checagem, a verificação dos que é dito pelas fontes entrevistadas. Trata-se, antes de tudo, de apresentar um novo modelo de negócio baseado nessa “regra” e que faça frente ao modelo (lucrativo) de produção e compartilhamento de “fatos não comprovados” pelo rigor jornalístico, ou seja, das chamadas fake news.

 

3. Alguns apontamentos

No decorrer deste trabalho, foi observado como o funcionamento do discurso sobre as agências de checagem, de como esse produz sentidos sobre a (não) credibilidade do assim chamado “jornalismo tradicional” e como isso sustenta o discurso de legitimação dessas agências; discurso este que retoma formações discursivas que atravessam a história do “jornalismo tradicional”.

Recorre-se a um modelo, a uma forma que garantiria a classificação de um fato como verdadeiro ou falso – no caso, o modelo próprio estabelecido pela agência. Trata-se de um processo minucioso de regulação, de controle que proporcionaria credibilidade às agências de checagem. Credibilidade que a “imprensa tradicional” já não mais teria.

E isso vai ao encontro do que Dela-Silva (no prelo) diz sobre a (re)afirmação da imprensa (para si mesma) de uma “imagem de uma instância de poder capaz de estabelecer os limites entre a notícia, de um lado, e os boatos, as notícias falsas e as mentiras, de outro”, de forma que as agências de checagem, em seus discursos e práticas, “seguem assumindo esse trabalho de afirmação do jornalismo como associado à isenção, objetividade e transparência”.

Contra a crise do “jornalismo tradicional”, a posição-sujeito aponta a mudança da forma e do conteúdo. A “solução” está na relação referencial e veritativa: se o que for dito puder ser comprovado com fatos já existentes, esse dito é verdadeiro; se não puder ser comprovado, é falso ou mesmo duvidoso. Não há interesse em pensar, discutir, apontar como esse dito significa – com ou sem fatos que o comprovem; não importa como esses fatos significam. A preocupação está em encontrar a referência para o fato checado. Existe aí, mesmo que inconscientemente, efeitos da “conceitografia” de Frege ([1879] 2009). O caráter investigativo está no fato de conferir se aquilo que circula, principalmente, nas redes sociais existe, isto é, se foi dito em outro momento, se tem um correspondente no mundo e se pode ser atestado com provas factuais.

Esse processo de averiguação e atestação de frases como verdadeiras ou falsas evocam o discurso da objetividade jornalística: a descrição de um fato (um objeto) sem as marcas da subjetividade, apenas com o “olhar objetivo” do sujeito compromissado com a “verdade”. No caso das agências de checagem, o trabalho é verificar se o que foi dito tem referência no mundo, classificando-o como verdadeiro ou falso. Esse funcionamento atesta (ou não) o grau de veracidade da informação de acordo com um método que proíbe a interpretação, condicionando a checagem a um processo observacional “neutro” – tal como sustenta o discurso jornalístico. É a busca pela literalidade das palavras e frases – a língua como instrumento de comunicação e verificação.

Com as análises, foi identificado que não se trata de estancar o “sangramento” causado pelo mercado das fake news, mas de remediá-lo com as doses homeopáticas do jornalismo. O discurso sobre as agências de checagem não aponta para a “destruição” desse processo de compartilhamento de fake news; há, sim, um plano de enfrentamento, mas sem o “golpe final”, pois sem esse mercado das fake news, não há o mercado da checagem de fake news: todos os dias, sempre há uma checagem sobre algo que circula nas redes, para dizer se aquilo que foi dito e que circula está mais para o espectro do “verdadeiro” ou do “falso”.

Por fim, é preciso atentar para a passagem (não marcada) de um discurso corporativo, um discurso sobre o jornalismo, para um discurso econômico, sobre o capital. Dessa forma, a checagem de fatos é o processo de produção de uma mercadoria12: a notícia que traz a informação se algo é verdadeiro ou falso, feita para ser vendida, consumida – tal como a notícia produzida pelo “jornalismo declaratório”; é um produto do trabalho humano (MARX [1867] 2017), realizado sob determinadas condições dentro de uma formação econômica capitalista, cujo caráter fetichista faz a notícia se apresentar como se tivesse vida própria, algo independente, quando na verdade é o resultado da relação social entre sujeitos.

Essa passagem se dá como evidente, como transparente, como se os dois discursos fossem um só – é o efeito da ideologia. Esta, por sua vez, tem seu funcionamento a partir de duas formas, conforme destacam Maldidier, Normand e Robin (2014): uma que aponta para um problema real existente e outra que oculta esse problema – apresentando soluções falsas para resolução desse problema. Não é assim que acontece com o posicionamento a respeito das agências de checagem de fatos?

 

Referências

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BUCCI, Eugênio. News não são fake – e fake news não são news. In: Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas. BARBOSA, Mariana (Org.). Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, pp. 37-48.

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Data de Recebimento: 19/04/2021
Data de Aprovação: 04/05/2021


1  Embora Pêcheux e Fuchs não discorram sobre a teoria do discurso e não façam uma discussão sobre algumas questões dessa terceira “região” que compõe o quadro teórico da AD, vale ressaltar que os estudos de Michel Foucault sobre o discurso estão em destaque na França – inclusive alguns conceitos que são trabalhados por Foucault como “formações discursivas”, “enunciado” etc.

2  A Agência Lupa é uma empresa brasileira criada em 2015, e que produz e divulga checagens de informações, além de vender checagens a outras empresas de comunicação.

3  Aqui, o sujeito não é se dá pela perspectiva psicológica e/ou empírica, mas é uma posição ideológica, discursiva, e que se define pelo processo de identificação (PÊCHEUX, [1975] 2014). Conforme Orlandi (2001, p. 99) “o sujeito, na análise de discurso, é posição entre outras, subjetivando-se na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso” (ORLANDI, 2001, p. 99).

4  Tal como apontei em outro trabalho (OLIVEIRA, 2020), é possível pensar que, para além de um leitor “desinteressado” e que apenas quer conhecer mais sobre o assunto, o livro é voltado para aqueles que pesquisam sobre o tema e que têm neste seus objetos de investigação.

5  As gramáticas tradicionais costumam classificar as orações subordinadas adjetivas em dois tipos: as restritivas, isto é, aquelas que restringem, que delimitam o significado da oração principal; e as explicativas, que acrescentam algo (mas não decisivo, segundo essas gramáticas) à oração principal. Essas gramáticas apontam que a diferença dessas duas adjetivas está marcada gramaticalmente pelo uso da vírgula: ausente na restritiva e presente na explicativa.

6  Sobre isso, vale a pena ver o trabalho de Silmara Dela Silva sobre o discurso da imprensa sobre o aparecimento da TV: DELA SILVA, Silmara. O acontecimento discurso da televisão no Brasil: a imprensa na constituição da TV como grande mídia. 2008. 237 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

7  Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/2273-china-envia-equipe-medica-coreia-do-norte-para-ajudar-na-assistencia-kim-jong-un-diz-agencia-24393205. Acesso em: 25 abr. 2020.

8  Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/guga-chacra/post/o-que-houve-com-o-ditador-da-coreia-do-norte.html. Acesso em: 25 abr. 2020.

9  Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/boatos-sobre-morte-de-kim-jong-un-repetem-historias-ocorridas-com-pai-avo-dele-24399024. Acesso em: 30 abr. 2020.

10  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/sumico-de-kim-jong-un-e-silencio-da-coreia-do-norte-alimentam-rumores.shtml. Acesso em 30: abr. 2020.

11  Disponível em: https://www.otempo.com.br/mundo/site-tmz-afirma-que-kim-jong-un-esta-morto-1.2329188. Acesso em: 30 abr. 2020.

12  Conforme aponta Marx ([1867] 2017, p. 113), “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer”.