Políticas públicas patrimoniais: O tombamento Art Déco em Goiânia (GO)


resumo resumo

Jackeline Mendes Ferreira
Adriana Mara Vaz de Oliveira



Introdução

A utilização da cultura como estratégia para a propositura de políticas públicas e para a execução de intervenções urbanas passou a ser adotada como tática de governo desde o final do século XX. Contudo, tais medidas são questionáveis quanto a sua importância social. O processo de museificação das cidades mundiais, objetivando a patrimonialização de bens ou espaços públicos, representa um problema assim como a gentrificação, característica recorrente em centros urbanos revitalizados para a promoção da cultura. Essa imposição prescrita pelos burocratas ou pelos incorporadores (ou até mesmo por ambos, quando há ocorrência das famosas Parcerias Público-Privadas) podem ser falhas quanto à escolha do que preservar não envolver àqueles que dão real significação aos espaços: a própria sociedade.

Assim, a indagação da arquiteta Paola Berenstein Jacques (2003, p. 32) sobre o que são de fato “esses patrimônios urbanos ou ambientes culturais contemporâneos a serem ou não preservados e requalificados” e “[...] o que dizer do uso contemporâneo que se faz da cultura como estratégia principal dos novos projetos de revitalização urbana aliados à interpretação das implementações de políticas públicas patrimoniais em Goiânia despontam esta pesquisa.

O presente artigo irá aplicar os questionamentos apresentados pela arquiteta urbanista dentro do contexto da cidade de Goiânia, diligenciando analisar a importância social, econômica e política do tombamento arquitetônico e urbanístico Art Déco na capital do estado de Goiás. Ainda hoje, vinte anos após o processo de tombamento de alguns edifícios públicos e do traçado urbano pioneiro central, boa parte da população não reconhece aquele espaço como parte da identidade local. Alguns edifícios e lugares tombados são desconhecidos ou passam despercebidos pela comunidade lindeira, demonstrando a limitada ou escassa memória coletiva no Centro Histórico. Poucas pessoas conhecem o processo histórico e construtivo do município ou não perfilham as características arquitetônicas do Art Déco, salientando, portanto, o questionamento: qual a importância do Art Déco em Goiânia?

A estrutura deste artigo abarca pesquisas que discorrem de críticas acerca da patrimonialização das cidades mundiais e o processo de “culturalismo de mercado”, conceito abordado por Otília Arantes (1996) quando descreve o interesse contemporâneo em culturalizar tudo: tudo virou cultura para atender o interesse de determinado público em prol da diligência econômica mundial. Também é estudado o contexto do Centro de Goiânia, com uma breve apresentação da sua composição arquitetônica e urbanística e a relação do goianiense com o bairro, entendendo se o bairro tombado pela administração pública é de fato simbólico e compreendido como representante da identidade local pela população. Para qualificar essa etapa, serão apresentados os estudos de Márcia Metran de Melo, quando, em 2006, escreveu a Cidade de Pedras e Palavras; e Angélica Azevedo (2018), que fez um estudo sobre a identidade goianiense e sua relação com o centro da capital em sua dissertação de mestrado. Essas duas pesquisas irão incorrer sobre a importância do tombamento do Art Déco em Goiânia.

Acerca dos resultados alcançados, fora percebido a desconexão entre o patrimônio edificado e o sentimento de pertencimento da população. Ainda que com a patrimonialização do núcleo pioneiro da capital goiana e seus edifícios Art Déco, o Centro Histórico exterioriza um aspecto urbano degradado, por vezes abandonado e desmoralizado pela população, resultado de políticas públicas ineficientes que foram implementadas sem o aval da comunidade, que, até os dias de hoje, não se vê representada por este estilo arquitetônico. Por fim, o estudo mostra que, essa despreocupação do indivíduo goianiense para com o espaço urbano manifesta a dessemelhança e a incongruência entre o cidadão e o local.

 

O Patrimônio Material entendido como Política Pública de Cultura

Antes de mais nada, se faz necessário definir o que é política pública e como tal ação se estende até o campo do patrimônio cultural material. O início dos estudos das políticas públicas se deu em meados da década de 1950 com as pesquisas na área da policy science de Harold Lasswell (BRASIL e CAPELA, 2016). A partir daí, os estudos na área deslancharam e definições mais precisas sobre o que seria política pública começaram a aparecer. Talvez, a definição mais propagada é a de Thomaz Dye, quando, em 1972, afirmou que a política pública é “tudo o que um governo decide fazer ou deixar de fazer” (DYE, 1972 apud HOWLLET, RAMESH e PEARL, 2013, p. 06). Ainda que uma definição simples, a descrição de Dye remete ao cerne da política pública: é uma ação emanada de um governo. Contudo, especialistas afirmam que a resolução de Dye é limitada, apesar de possuir seus devidos méritos. Para Howllet, Ramesh e Pearl (2013):

[...] essa formulação é simples demais, pois confere o mesmo tratamento de política pública a todo e qualquer comportamento governamental, desde comprar ou não clipes de papel até travar ou não uma guerra nuclear, e não oferece os meios para diferenciar os aspectos triviais daqueles que são mais importantes nas atividades do governo (HOWLLET, RAMESH e PEARL, 2013, p. 06)

A definição de Dye ainda não deixa claro quanto aos objetivos das políticas públicas, quem serão os atores envolvidos ou como serão executadas certas ações. Após Dye, inúmeros teóricos arriscaram em projetar definições mais exatas do que seria política pública, cada qual com seu devido merecimento. Como um aperfeiçoamento nas delineações de Thomas Dye, Howllet, Ramesh e Pearl (2013) afirmam que a policy-making (política pública) se resume a:

 

[...] atores cercados por restrições que tentam compatibilizar objetivos políticos (policy goals) com meios políticos (policy means) em um processo que pode ser caracterizado como “resolução aplicada de problemas”. Identificar os problemas e aplicar [...] as soluções encontradas [...] envolvem a articulação de objetivos políticos por meio de deliberações e discursos, além do uso de instrumentos políticos (policy tools), numa tentativa de atingir esses objetivos (grifo da autora) (HOWLLET, RAMESH e PEARL, 2013, p. 05-06).

 

Logo, as políticas públicas são ações elaboradas por instituições governamentais que contam com o auxílio de atores do governo, ou não, para executá-las. Essas ações podem ser positivas (fazer) ou negativas (não fazer) e buscam solucionar problemas da sociedade. O processo de “resolução aplicada do problema” é descrito pelos mesmos autores como ciclo das políticas públicas, compreendendo a montagem da agenda, a formulação de políticas, a tomada de decisões, a implementação e a avaliação delas.

A montagem da agenda é o primeiro e, provavelmente, o mais importante passo da política pública, pois é nesse momento que dado problema é visto pelo governo: “a montagem da agenda diz respeito ao reconhecimento de que algum assunto é um problema e requer mais atenção por parte do governo” (HOWLLET, RAMESH e PEARL, 2013, p. 104). A cultura produzida no Brasil, por exemplo, foi julgada digna de atenção pelo poder público no início do século XX. A montagem da agenda acerca das políticas públicas de cultura nacional se deu no início do século passado e teve o pontapé inicial durante a Semana de Arte Moderna:

Desde a segunda década do século XX uma série de iniciativas de intelectuais e do poder público despertou sensibilidades para a criação de uma instituição nacional de preservação do patrimônio cultural. A semana de arte moderna de 1922 teve importante papel nesse processo, ao promover uma crítica ao academicismo e propor uma nova síntese cultural do Brasil (IPHAN, 2012).

Foi em 1922 que artistas, escritores, políticos e intelectuais brasileiros notaram a inexistência de políticas públicas voltadas para a valorização e a preservação de todo e qualquer artefato cultural que fosse genuinamente brasileiro. Por esse motivo, o então Ministro da Educação e da Saúde, Gustavo Capanema, solicitou, em 1936, ao escritor Mário de Andrade um anteprojeto para a criação de uma instituição governamental capaz de representar, proteger e respaldar todas as produções culturais brasileiras. Apesar do anteprojeto idealizado pelo escritor não ter sido publicado, serviu de base para a criação uma legislação federal que respaldasse a cultura brasileira. Então, em 1937 nasce o SPHAN – Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN), por meio da Lei nº 378 de 13 de janeiro 1937. Em novembro do mesmo ano foi promulgado o Decreto-Lei nº 25, criado para organizar e proteger o patrimônio histórico e artístico nacional (IPHAN, 2012).

            O Artigo 1º do referido Decreto-Lei aponta que:


Constituem o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (grifo da autora) (BRASIL, 1937).


 

Portanto, aqueles bens que remetessem a fatos memoráveis da história brasileira ou apresentassem valor histórico ou artístico que contemplassem o coletivo, era passível de proteção e conservação. O Decreto-Lei nº 25 ainda estabelece quem serão os responsáveis pela manutenção do patrimônio (o proprietário da coisa ou, na ausência de recursos, a União) e possíveis penalidades para aqueles que destruírem, demolirem, mutilarem ou extraviarem bens (móveis e imóveis) que foram alvo da instituição do tombamento.

A proteção do patrimônio cultural nacional é respaldada também pela Carta Magna Nacional. O artigo 216 da Constituição Federal de 1988 descreve o que compõe a categoria de patrimônio cultural e ainda prevê a promoção e a proteção dos referidos bens por parte do Poder Público em colaboração com a comunidade envolvida:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (grifo da autora) (BRASIL, 1988).

O artigo, contudo, ainda que almejasse oficializar a inserção das pautas patrimoniais na agenda pública, foi genérico. Não apresentava meios, métodos ou entidades responsáveis pela ação. Em consequência, acrescido à Constituição, no artigo 216-A, foi redigida e promulgada a Emenda Constitucional nº 71 de 2012 que instituí o Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, instituindo um processo de gestão e promoção de políticas públicas de cultura. Ou seja, o Sistema Nacional de Cultura é a operacionalização do artigo 216 da CF/88, formulando, implantando e avaliando políticas públicas patrimoniais em âmbito nacional.

Contudo, foi em 2018 que o IPHAN disponibilizou, por meio da Portaria nº 375 de 19 de setembro de 2018, um documento normativo que consolida e organiza a atuação do Instituto, além de instituir a Política de Patrimônio Cultural Material. A Portaria se tornou um guia para a realização de ações e processos relacionados à dimensão material do Patrimônio Cultural, que estão organizadas a partir da educação patrimonial; identificação, reconhecimento e proteção dos bens tombados; bem como a normatização, autorização, avaliação de impacto, fiscalização, conservação e interpretação, promoção e difusão das formas de interação com o patrimônio cultural material.

Pode-se afirmar, portanto, que a cultura (aqui trabalhada na perspectiva patrimonial) está presente na agenda política nacional desde o início do século passado. Ainda que recente, a atuação das instituições responsáveis nesse campo é visível e, por vezes, alvo de críticas. O IPHAN, instituição suprema nacional nas políticas patrimoniais, vem agindo de ofício em vários municípios brasileiros engendrando o tombamento de bens e conjuntos históricos que a própria instituição entende como “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988), agindo, por vezes, sem a participação ou o interesse da própria comunidade.

O tombamento de bens e conjuntos historicamente importantes vem acontecendo com maior frequência desde o final do século passado. A institucionalização da proteção à cultura, que surgiu como instrumento de preservação dos modos de fazer de épocas passadas, acabou se tornando parte de um mercado complexo que atinge países do mundo inteiro. Essas políticas culturais que antes eram formuladas e implementadas para garantir a não-descaracterização de bens e artefatos socialmente relevantes para determinada comunidade converteu-se em mais uma forma de lucratividade do mercado imobiliário e financeiro internacional, ou, o que Otília Arantes caracterizou como “culturalismo de mercado” (ARANTES, 1996).

 

Contextualizando o “culturalismo de mercado”

O “culturalismo de mercado” foi um termo adotado por Otília Arantes para designar os interesses mercantis que incidem sobre determinados artefatos culturais. Essa tendência do mercado econômico emergiu após a década de 1980, durante o Pós-Modernismo, quando este movimento aspirava a valorização da cultura local em contraponto à “destruição criativa” do movimento anterior, o Modernismo. Para entender melhor o surgimento do Pós-Moderno e a cultura como interesse econômico, faz-se necessário entender a ligação entre os dois movimentos que foram a gênese para o atual modelo de negócio do mercado internacional (HARVEY, 2000).

O final do século XX deu início ao Movimento Modernista, que era focado essencialmente em criar o novo, rompendo os laços com o tradicionalismo das artes, da arquitetura e da cultura social. A Revolução Industrial e o avanço da importância das máquinas na vida urbana estimularam o movimento cultural que almejava mudanças em grandes proporções.

Até meados do século XX, o Movimento Moderno foi quem ditou as regras da sociedade mundial. Na arquitetura, o Modernismo reconstruiu as grandes cidades devastadas pela guerra: a agilidade na construção, o mimetismo na reprodução dos projetos arquitetônicos e a pouca diferenciação na fachada facilitaram a propagação desse estilo construtivo:

Mas também é possível dizer que, se desejavam encontrar soluções capitalistas para os dilemas do desenvolvimento e da estabilização político-econômica pós-guerra, era necessário algum tipo de planejamento e industrialização em larga escala na indústria da construção, aliado à exploração de técnicas de transporte de alta velocidade e de desenvolvimento de alta densidade (HARVEY, 2004, p. 42).

Na arquitetura e no planejamento, isso significava desprezar o ornamento e a personalização [...]. Significava ainda uma enorme paixão pelos espaços e perspectivas maciços, pela uniformidade e pelo poder da linha reta [...] (HARVEY, 2004, p. 43).

 

No campo das outras artes, o movimento rompeu com o saudosismo, deixando as práticas artísticas até então praticadas para trás e deu voz ao novo. O termo da vez, segundo Harvey (2004), era a “destruição criativa”, pois, para criar o novo se fazia necessário dar fim ao antigo:

O empreendedor [...] era o destruidor criativo par excellence porque estava preparado para levar a extremos vitais as consequências da inovação técnica e social. E era somente através desse heroísmo criativo que se podia garantir o progresso humano. [...] a destruição criativa era o leitmotif progressista do desenvolvimento capitalista benevolente. Para outros, era tão só a condição necessária do progresso do século XX (grifo da autora) (HARVEY, 2004 p. 26).

Ou seja, durante o Modernismo, a figura do empreendedor se tornou elementar. Isso porque o novo devia ser construído sobre a destruição do passado, e era a pessoa do empreendedor que concretizava essa ação. A destruição era a propulsora do desenvolvimento, do progresso e do próprio Movimento Moderno.

Acontece que tudo o que fora produzido durante esse movimento cultural tomou proporções globais. As singularidades que diferenciavam nações e povos entre si   eram mínimas, pouco perceptíveis. As produções desse movimento alcançaram o mundo inteiro: a arquitetura, a música, as artes plásticas e até mesmo os modos de vestir se restringiram às prescrições do Moderno.

Em dado momento, a massificação das produções culturais e a destruição criativa começaram a declinar. Foi a partir da década de 1960 que a contracultura e o movimento antimoderno surgiu com grande expressividade: “O modernismo perdeu seu atrativo de antídoto revolucionário para alguma ideologia reacionária e ‘tradicionalista’” (HARVEY, 2004, p. 44). Tendo como palco as universidades, institutos de artes e os movimentos das minorias (os negros, gays e feministas), os antimodernos afirmavam que a cultura do moderno não queria senão monumentalizar as corporações ou o governo, refletindo a ausência de afetividade às aspirações humanas:

Foi esse o contexto em que vários movimentos contraculturais e antimodernistas dos anos 60 apareceram. Antagônicas às qualidades opressivas da racionalidade técnico-burocrática de base científica manifesta na formas corporativas e estatais monolíticas e em outras formas de poder institucionalizado (incluindo as dos partidos políticos e sindicatos burocratizados), as contraculturas exploram os domínios da auto-realização individualizada por meio de uma política distintivamente “neo-esquerdista” da incorporação de gestos antiautoritários e de hábitos iconoclastas (na música, no vestuário, na linguagem e no estilo de vida) e da crítica da vida cotidiana) (grifo da autora) (HARVEY, 2004, p. 44).

Foi então que o Modernismo deu abertura para o surgimento do Pós-Modernismo. Agora, criar o novo e massificar as informações já não era a intenção da sociedade. A rigidez aplicada pelo Modernismo nas formas e condutas não cabia nessa nova fase, em que a particularidade do indivíduo era elevada ao máximo: “A ideia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter aceita essa voz como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno” (HARVEY, 2004, p. 52). Pensar e fazer para o indivíduo era a essência do novo movimento. Ficara bem claro, portanto, que as obras monumentais e as edificações padronizadas, nada mais eram que grandes complexos de concretos vazios e sem história, que ignorava a personalidade dos seus partícipes. Nesse momento, o pós-moderno demonstrava sua inclinação para a “total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico” (HARVEY, 2004, p. 49).

A cultura então passou a ser vista como particular de um povo e valorizada em proporções nunca antes vista. Talvez o medo de regressão para a destruição criativa do modernismo impulsionou ainda mais o apreço pelas produções culturais, por menores que sejam. E a partir daí o mercado viu uma oportunidade. Deduziu-se que havia mercado para as culturas, as pessoas pagavam para conhecer novos e diferentes lugares. Conhecer o que havia de diferente no outro foi a nova sacada do mercado internacional.

Ao perceberem que a valorização da cultura de determinado local era um negócio atrativo, empresários começaram cada vez mais a investir nessa nova forma de comércio: a “venda da cultura” das cidades. Em parceira com os governos locais e estaduais, o comércio da cultura tomou proporções nunca antes vistas. Otília Arantes (1996) afirma que, nesse momento, a revitalização urbana substituiu o planejamento das cidades, e, de fato, no final do século XX, o termo “revitalização urbana” proporcionou um boom nos negócios da cidade.

A venda do território urbano para um mercado interessado na comercialização da cultura local se tornou requisito para elegibilidade dos governantes (ARANTES, 1996). A revitalização urbana dos centros históricos consumada através de reforma de praças, monumentos e locais históricos e a implantação de símbolos – tais como estátuas, esculturas, fontes – seria a nova estratégia de governo da contemporaneidade. Para Arantes (1996): “[...] a cultura parece ter se transformado num ingrediente indispensável da governabilidade [...], numa nova modalidade de falso gasto público [...]”. Dessa forma, a tática internacional que prioriza gastos públicos na museificação e patrimonialização das cidades em detrimento de outros direitos sociais, demonstra a grandiosidade da nova tática de governo.

A “tese” em questão nada mais é portanto do que uma explicitação da contradição recorrente entre o valor de uso que o lugar representa para os seus habitantes e o valor de troca com que ele se apresenta para aqueles interessados em extrair dele um benefício econômico qualquer, sobretudo na forma de uma renda exclusiva (ARANTES, 2013, p. 26).

 

            Empresários e incorporadoras têm ciência da importância desse modelo de gestão e aparecem cada vez mais como promotores das novas intervenções urbanísticas. E não são somente os incentivos fiscais promovidos pelo estado que estimulam o interesse dos agentes privados nas revitalizações urbanas: as consequências decorrentes dessas reformulações do espaço urbano transformam a cidade em um grande polo econômico, que passa a atrair não só turistas de todo o mundo, mas também grandes empresas multinacionais que vêem naquele novo espaço grandes oportunidades de negociação (ARANTES, 2013). Ou seja, após a revitalização de um centro histórico, a cidade entra no mercado econômico mundial e passa a fazer parte da nova rede global de empreendimentos: “[...] um tal planejamento busca, acima de tudo, inserir a cidade-alvo em um nó da rede internacional de cidades, portanto torná-lo atraente para o capital estrangeiro, inclusive no setor imobiliário [...]” (ARANTES, 2013, p. 20).

Logo, o cenário mundial econômico transformou a memória de uma cultura local em instrumento de comercialização dos espaços urbanos. A lógica de atuação é bem simples: o poder público prescreve que dado local é um patrimônio histórico e, logo em seguida, decreta o seu tombamento. A iniciativa privada prevê o potencial turístico daquela área e passa a investir em requalificações urbanas, deixando o espaço mais atrativo para os visitantes. Nota-se que, até então, não houve consulta ou a participação da comunidade local, “responsável e guardiã das tradições culturais” (JACQUES, 2003).

A transformação de edifícios históricos em museus e o tombamento ex officio de edifícios e conjuntos urbanos (museificação e patrimonialização, respectivamente) acabou se tornando uma atividade praticada compulsoriamente pela administração pública intuindo angariar incorporadoras para aquela área, tendo em vista que, sob a lógica do capital, os investidores irão “melhorar” o espaço público. E essa “melhoria” no espaço público perpassa por entre a requalificação de áreas públicas e de edifícios históricos, a construção de novos prédios que possam atender a nova demanda internacional: hotéis luxuosos, polos gastronômicos renomados e até mesmo novos loteamentos urbanos, bairros em áreas periféricas que, assim como a área histórica, é passível da especulação imobiliária:

Essa esquizofrenia dos discursos contemporâneos sobre a cidade – preserva o antigo ou construir o novo – vem surgindo muitas vezes simultaneamente em uma mesma cidade, com propostas preservacionistas para os centros históricos, que se tornam receptáculo de turistas, e com a construção de novos bairros ex-nihilo nas áreas de expansão periféricas, que se tornam fontes para especulação imobiliária. Muitas vezes, os atores e patrocinadores dessas propostas também são os mesmos, assim como é semelhante a não participação da população em suas formulações, e a gentrificação das áreas como resultado, demonstrando que as duas correntes antagônicas são faces de uma mesma moeda: a espetacularização mercantil das cidades (grifo nosso) (JACQUES, 2003, p. 33).

 

A ausência de consulta popular, de entender as reais necessidades dos moradores e a valorização que estes dão para o local resulta na implementação de políticas públicas ineficientes para a população, mas bastante vantajosas tanto para o mercado internacional como para o poder público, visto o sucesso da política “cultural” que se implantou durante o governo. Dessa forma, a requalificação de determinadas áreas urbanas acaba promovendo a expulsão da população mais pobre e atraindo a ocupação pela classe mais abastada, ou o que estudiosos da área denominam como processo de gentrificação:

 

O termo gentrificação é atribuído originalmente à socióloga Ruth Glass, que em 1964 utilizou a expressão para descrever um processo iniciado em 1950 no centro de Londres, quando algumas áreas residenciais deterioradas, tradicionalmente ocupadas por operários, estavam sendo transformadas em áreas residenciais para grupos de status socioeconômico mais elevado (GEVEHR; BERTI, 2017).

 

Logo, a gentrificação acaba se tornando um processo inevitável nas áreas patrimonializadas e requalificadas. A população que ali reside, detentora da cultura local, se vê obrigada a renunciar seus lares ao perceberem que o estilo econômico de vida da região não condiz mais com a sua realidade.

 

E o antídoto situacionista, a participação social, também poderia ainda ser rediscutida, uma vez que essa “espetacularização” do espaço urbano tende a ocorrer quando não há uma apropriação efetiva desses espaços preservados pela população local, principalmente por causa do processo de gentrificaçao (JACQUES, 2003, p. 36).

 

Logo, é imprescindível a inclusão, por parte dos burocratas, da população diretamente envolvida nas ações de requalificação dos espaços públicos. Se são essas pessoas que dão significâncias ao espaço público, elas deveriam ser as primeiras a participar do processo de elaboração e implementação das políticas públicas urbanas. Mas não é isso o que acontece.

 

A participação da sociedade civil nas decisões preservacionistas

As cidades são reflexos do comportamento urbano e, por isso, portadoras da identidade daquela comunidade. As imagens de uma cidade são impressões diretas de como seus moradores a ocupam, a veem e a imaginam. Para Pesavento (2007):

[...] a cidade foi, desde cedo, reduto de uma nova sensibilidade. Ser citadino, portar um ethos urbano, pertencer a uma cidade implicou formas, sempre renovadas ao longo do tempo, de representar essa cidade, fosse pela palavra [...], fosse pela música [...], fosse pelas imagens [...], fosse ainda pelas práticas cotidianas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade presentes naqueles que a habitavam (PESAVENTO, 2007).

Contudo, quando os bairros passam a ser preservados por uma mera decisão governamental, sem o aval e a participação da comunidade, a manutenção daquele espaço passa a ser inexistente, pois há a falta de vínculos que a comunidade tem para com a área tombada.

A decisão imposta pelos gestores à linha de frente, ou o que Howllet, Ramesh e Perl (2013) definem como políticas top-down (de cima para baixo), que não vê necessidade em ouvir e agregar os valores da comunidade nos processos de tomada de decisão, interfere diretamente na eficácia desses espaços tombados. Jacques (2003) afirma que, quando a própria população se vê representada por algum espaço urbano ou algum edifício em específico, a preservação patrimonial do bem ou conjunto surge naturalmente pela própria comunidade, sem a necessidade da instituição do tombamento:

 

Se o patrimônio cultural urbano se tornou, de fato, um simples espetáculo contemporâneo, poderíamos tentar nos servir do principal antídoto situacionista contra o espetáculo, ou seja, o seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente no da cultura. Podemos até sugerir a existência de uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e participação, ou seja, quanto mais espetacular for o uso da cultura nos processos de revitalização urbana, menor será a participação da população nesses processos e vice-versa. E quanto mais passivo (menos participativo) for o espetáculo, mais a cidade se torna um cenário, e o cidadão um mero figurante; e, no sentido inverso, quanto mais ativo for o espetáculo (que no limite deixa de ser um espetáculo no sentido debordiano), mais a cidade se torna um palco e, o cidadão (antes simples espectador), um ator protagonista (grifo nosso) (JACQUES, 2003, p. 38).

 

Randolph (2018) aponta uma sensível necessidade de pensar sobre a participação mais efetiva da população nas políticas de estado. O autor critica a não-participação e a grande passividade da sociedade nas decisões políticas, o que gera uma maior autonomia para os governantes. Esse poder de decisão unilateral acarreta em políticas públicas ineficientes que, em grande parte, não atendem as demandas e necessidades dos cidadãos. A burocracia instaurada no seio do Estado interfere substancialmente na participação social diante das atividades de cunho público. O autor afirma que as políticas públicas em um modo geral (aqui apresentadas no contexto de políticas públicas culturais) devem emanar a voz dos ocupantes dos espaços de representação do cotidiano (o povo), convergindo para um municipalismo libertário com políticas aplicadas em microescala (localmente).

Muitos são os locais que, mesmo após o tombamento arbitrário, continuaram sem sentidos e significâncias para a comunidade, sendo todo o processo de tombamento ineficiente. É, por exemplo, o caso de Goiânia. O Centro Histórico da cidade foi tombado de ofício pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) sem a participação dos goianienses. Símbolos foram impostos aos moradores como representantes da identidade da cidade, mas que, contudo, não representam de fato a cultura, o cotidiano, os sonhos e costumes de seus moradores.  As edificações Art déco do centro de Goiânia passam despercebidas aos olhos da comunidade e, por isso, quando não são demolidas e/ou descaracterizadas, são degradadas e/ou malcuidadas. Reflexo este da não-participação da comunidade no processo de tombamento desses edifícios que representam a história política do município.

 

O tombamento do Art Déco em Goiânia

O dossiê de tombamento federal do Art déco em Goiânia foi redigido em 2004 por agentes do IPHAN e discorre sobre a necessidade de preservar o centro histórico da capital como patrimônio histórico e artístico nacional. Em 2003, o tombamento foi efetivado pela instituição nacional e abarca o acervo arquitetônico e urbanístico do centro de Goiânia e Campinas, além de 22 edifícios e monumentos públicos[1] (IPHAN, s.d.).

Contudo, o próprio dossiê é um tanto quanto incongruente acerca dessa importância. A relatora do documento afirma que os estudos que nortearam a iniciativa do tombamento foram pautados em reuniões entre técnicos representantes de instituições governamentais, educacionais e consultores do IPHAN (MANSO, 2004). Percebe-se, portanto, a ausência daqueles que deveriam sentir-se representados e que dariam significância ao centro histórico na forma das suas edificações: a sociedade civil. A importância do Art déco foi decretada e institucionalizada pelos burocratas, alguns inclusive atuantes fora do município, e sem o consentimento e o aval da comunidade.

A justificativa para a importância do tombamento do Art Déco que consta no dossiê também não é suficiente: alegam que o estilo arquitetônico era dominante à época da construção e que o traçado projetado por Attílio Corrêa Lima, o arquiteto urbanista projetista de Goiânia, referenciava a cultura e os símbolos da cidade:

Daí a convicção de que efetivamente o sistema de vias que compõem o desenho urbano de Attílio Corrêa Lima vincula-se às referências cultural e simbólica da história da cidade – o que, por isso, justifica a proposição de tombamento do traçado viário dos núcleos pioneiros da antiga cidade de Campinas e da cidade de Goiânia na área descrita no polígono de preservação (grifo nosso) (MANSO, 2004 p. 07).

 

Na tentativa de romper com o tradicionalismo da antiga capital goiana (a Cidade de Goiás) e edificar uma capital moderna em uma região até então inóspita, o traçado urbano da nova capital bem como as novas edificações sugeriam o novo: a construção de um novo centro cívico e a alternância dos métodos construtivos (o tijolo de barro cozido em substituição ao adobe ou a taipa, bem como a fachada reta e geométrica em oposição aos extensos telhados da antiga capital) são alguns dos exemplos (MANSO, 2004). O Art Déco surgiu como a materialização da nova política que emergia no estado, rompendo com o tradicionalismo e as oligarquias marcadas desde sempre na história goiana.

Porém, ainda que o rompimento para com o tradicionalismo goiano marcasse o novo momento do Estado (e quiçá do Brasil, visto a proporção histórica que tomou a Marcha para o Oeste), a implantação de uma cidade moderna dentro do sertão foi uma iniciativa governamental, que, desde o começo, não abarcou as vontades do povo. Ou seja, as “referências cultural e simbólica da história da cidade” apontada por Manso (2004) diz respeito a decisão burocrática dos agentes públicos, e o projeto de Atílio Corrêa Lima foi a materialização de uma vontade política. 

Ainda que o estilo tivesse sido amplamente divulgado e construído em instituições públicas por todo o país no início do século passado, o Art Déco não obteve aderência suficiente diante da comunidade civil. No próprio Dossiê de Tombamento (2004), é relatado que à época dos primeiros anos de Goiânia, o Art Déco se instaurava entre os prédios públicos e alguns prédios privados de habitação coletiva e/ou comerciais, mas não era popular entre as residências unifamiliares:

 

De fato, uma olhada nas edificações da época pioneira em Goiânia nos mostra que, enquanto as residências privilegiavam estilos neocoloniais, normandos, enxaimel, entre outros, os edifícios multipavimentares (geralmente com o máximo de três pavimentos), comerciais, institucionais ou mesmo multifuncionais se deixavam guiar pela tendência déco. Embora haja também residências déco – menção seja feita à residência do fundador da capital, Pedro Ludovico -, pouquíssimas resistem até hoje, e, pelo reduzido número, constituem-se mais em exceção que em regra (MANSO, 2004, p. 11).

 

Percebe-se, portanto, que não houve adesão entre os moradores pioneiros em aderir a tendência Art Déco. Demais estilos arquitetônicos como as residências neocoloniais e normandas prevalecem como estilo normativo construtivo à época. Essa preferência por outros estilos construtivos demonstra que, desde o início da cidade, o Art Déco não foi reconhecido pelos moradores e segue com essa tendência até os dias de hoje.

Justifica, possivelmente, essa imposição do tombamento do acervo arquitetônico e urbanístico do Art Déco em Goiânia para a promoção do município em uma cidade patrimonializada, tendo em vista que os argumentos apresentados não conseguem defender com veemência o porquê do tombamento de alguns edifícios públicos e do traçado original do Centro. Têm-se a impressão de que produziram razões superficiais para inserir a cidade em um catálogo de cidades tombadas e, por isso, turísticas.

O mesmo documento entende que Goiânia não possui uma memória coletiva própria e por isso não há o sentimento de continuidade a construção do habitat e das instituições urbanas. Isso mostra que é perceptível o não reconhecimento do Art Déco como representante da história do município. Mesmo assim, o tombamento federal foi efetivado, ainda que ausentes as justificativas que amparam o procedimento.

A incongruência do dossiê de tombamento de Goiânia não levou em conta a participação civil dentro dos espaços públicos da cidade. A impressão que fica é que o tombamento do Art Déco em Goiânia se deu em razão da inserção da Cidade de Goiás como Patrimônio Mundial pela Unesco, fato consumado pouco tempo antes do tombamento de Goiânia. Possivelmente, a elevação do status da Cidade de Goiás à Patrimônio Mundial iria atrair turistas do Brasil e do mundo que, para chegar ao ponto turístico precisariam passar por Goiânia. Ou seja, para atrair a atenção desses mesmos turistas, o poder público local viu uma chance econômica no tombamento, uma vez que o Art Déco seria o bem cultural representativo da nova capital e, por isso, passível de visitação.

            Todavia, adotando a validez de tal hipótese, sabe-se que ela foi ineficiente. O Art Déco seguiu esquecido e desconhecido pelos moradores da cidade e, consequentemente, para os estrangeiros. Como manifestado, sem a participação e a eleição da população de quais bens, conjuntos ou artefatos representam de fato o símbolo, a cultura e a história de um povo, o tombamento se torna um mero ato administrativo, sem efeitos reais.

A crítica apontada aqui, todavia, não desmerece o feito político, que, ao executar uma cidade planejada em pleno sertão brasileiro, superou grandes dificuldades (distância até grandes centros, materiais construtivos, mão de obra qualificada) e transferiu uma capital secular para um local totalmente inédito. Pontua-se ainda a visibilidade nacional que Goiânia alcançou, considerando que a matriarca na capital fora a própria Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas e serviu de amparo para a construção da capital federal, Brasília. A crítica apontada aqui é a imposição das características arquitetônicas adotadas pelos burocratas como sendo referência à cultura goiana e, como tal, passível de proteção institucional. Todavia, o Art Déco era estranho à população goianiense, que, até então, estivera habituado às construções coloniais e traçados íngremes da antiga capital. O Art Déco era então um estilo arquitetônico estrangeiro, importado, e, como conseguinte, inaceito.

A eficácia de um símbolo que represente lealmente determinada localidade – entendendo símbolo como as materializações de determinado espaço que contam a história e as transformações econômicas e sociais da cidade (FERRARA, 1999) - é de suma importância para reafirmar a memória coletiva, que, segundo Candau: “[...] é uma corrente de pensamento contínuo, [...]que retém do passado somente, aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (CANDAU, 1990, p. 81). Ou seja, os símbolos de certo espaço devem remeter a ações passadas que podem ser e são lembradas pelo grupo.  Acontece que, quando a escolha do símbolo é manifestada de maneira top-down, as possibilidades deste se tornar ineficaz e incondizente são altas. Isso porque os símbolos que caracterizam determinada localidade e consequentemente, seus moradores, podem ser adotados nas mais variadas formas. Ruas, objetos, espaços ou pessoas são exemplos do que podem ser esses símbolos urbanos. A Avenida Paulista em São Paulo, o Cristo Redentor no Rio de Janeiro ou o Pelourinho em Salvador são objetos que evocam uma imagem ao observador. Essa imagem é logo associada à cidade, ao seu local de implantação. E, quanto maior essa associação da imagem ao observador, mais alvo de especulação ela será, pois entende-se que ali existe uma cultura forte, passível de investimentos e atrativas ao mercado internacional. Goiânia, contudo, ainda é imaginada como a capital do sertanejo, terra do pequi e grandes fazendas. Há ainda pouca menção ao patrimônio Art Déco da capital.

Em Goiânia, porém, os símbolos propagados pela grande mídia ou pelos burocratas não são de fato reconhecidos pela comunidade como representantes da imagem urbana.

A capital hoje tem alguns pequenos monumentos dispersos ao longo do Centro Histórico que são veiculados como cartões-postais da cidade: como o Monumento às Três Raças (Praça Cívica) e a Estátua ao Bandeirante (congruência da Avenida Goiás com a Avenida Anhanguera). Porém, como diz Mello (2006), estes se apresentam como “bibelôs espalhados” na cidade, sem representatividade alguma diante da população e, portanto, ausentes do que Kevin Lynch (2010) denomina imaginabilidade:

 

Imaginabilidade: a característica, num objeto físico, que lhe confere uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador dado. É aquela forma, cor ou disposição que facilita a criação de imagens mentais claramente identificadas, poderosamente estruturadas e extremamente úteis do ambiente (LYNCH, 2010, p. 11).

 

A imaginabilidade remete-se aos símbolos e expressões que identificam determinado espaço urbano diante de seus moradores. Toda localidade possui seus próprios símbolos e expressões, ainda que estes sejam de conhecimento exclusivo de seus habitantes. Contudo, os “bibelôs” espalhados em Goiânia não fazem alusão ao que a comunidade visualiza de sua cidade. Isso porque esses símbolos de Goiânia foram imposições burocráticas, resultados das políticas top-down que não deram certo. Supõe-se que esses objetos que deveriam caracterizar a imagem da cidade foram sugeridos pelos burocratas como uma isca para o mercado internacional. Afinal, como já explicado, a lógica é: se determinada localidade possui potencial turístico cultural (ou do que é divulgado sobre a cultura), grandes investidores irão se apropriar da área e promover então as requalificações urbanas.

Mas o que os goianienses tem firmado como imaginário? Exempli gratia, Mello (2006) narrou sobre o “tirador de calos”, que, há alguns anos, esteve marcado no imaginário dos antigos moradores. Hoje, contudo, a figura do “tirador de calos” perdeu o status de símbolo do Centro da Capital. Outro símbolo que perdurou desde a construção da cidade foi o manto de Nossa Senhora. Na cultura popular, o traçado urbano da capital foi inspirado no Manto de Nossa Senhora, sendo a Praça Cívica a cabeça da Santa, enquanto as Avenidas Tocantins, Araguaia e Paranaíba compunham o corpo. Esse mito percorre a cidade desde o início. Foi passado de geração a geração, como um fato consumado. O Centro Cívico da capital sendo uma representação de Nossa Senhora é muito mais significante e marcante do que a inspiração em Versalhes, Karlsruhe e Washington de Atílio.

Mello (2006) também aponta a importância dos parques, consolidados como imagem e Goiânia pela população. Em uma consulta popular promovida por um banco privado, almejava-se descobrir quais os locais das capitais brasileiras que os seus moradores se identificavam. Em Goiânia, o local vencedor foi o Bosque dos Buritis, no Setor Oeste. Ainda que a pesquisa complete quase duas décadas, é possível aplicá-la a contemporaneidade, tendo em vista que até hoje a população goianiense se refere aos parques como pontos turísticos e de encontro.

Azevedo (2018), em sua dissertação de mestrado, buscou descobrir onde estava a identidade do goianiense. A autora fez pesquisas de campo entrevistando 32 moradores da capital e concluiu que os símbolos da cidade que mais possuem a imaginabilidade de seus habitantes se concentram fora do Centro Histórico. Percebeu-se que o Centro Cultural Oscar Niemeyer, uma das Trincheiras da Avenida 85 (nomeado pela população goianiense como “Trincheiras”), o Shopping Flamboyant e o Estádio Serra Dourada foram os ícones da capital mais lembrados pelos moradores. O Setor Central fora mencionado como espaço de permanência e lazer pelos entrevistados mais idosos, na faixa dos 70 anos de idade. Dentre os outros entrevistados, o bairro era visto como degradado e perigoso.

Azevedo (2018) pontua que a poluição visual nas edificações do Centro contribui para a ausência do sentimento de pertencimento, visto que não há um padrão na paisagem urbana do bairro:

[...]a instalação de letreiros informativos nas fachadas, que destacam a marca do comércio, confunde na percepção dos passantes e dificulta a permanência de sentimentos de pertencimento relacionados com a paisagem urbana, que, sem unicidade entre as demais regiões, oferece um visual igualmente distribuído pela cidade (AZEVEDO, p. 106, 2018).

[...] pode-se considerar também que as fachadas “limpas” apresentam maiores chances de estabelecer uma relação de reconhecimento, pertencimento e de identificação pelo cidadão, ao passo que as fachadas “poluídas” conformam dificuldades de estabelecer uma relação duradoura de pertencimento, pois o que auxilia a percepção, nesse caso, são os letreiros informativos de um determinado comércio, e não as feições estilísticas da edificação (AZEVEDO, p. 107, 2018)

 

Outro fator importante apresentado pela autora foram as edificações citadas pelos entrevistados como possíveis representantes do estilo Art Déco em Goiânia. Descartando aqueles edifícios divulgados em massa pela administração local como símbolos da cidade – como a Estação Ferroviária, o Coreto e o Teatro Goiânia -, as construções citadas pelos partícipes eram construções de caráter privado, como a Casag, o Goiânia Palace Hotel e a Farmácia Artesanal (destes, somente o Palace Hotel fora alvo do tombamento nacional). Vale ressaltar que estas construções foram alvo de reformas físicas na fachada e hoje apresentam aspecto visual verossímil à arquitetura Art Déco da época, o que pôde contribuir para a fixação desses edifícios na percepção dos entrevistados.

A antiga Estação Ferroviária, o clímax dos símbolos implantados pela administração local como imagem de Goiânia, é ausente das percepções dos moradores goianienses, conforme averiguou Azevedo (2018). Isso confirma o pressuposto apresentado ao longo do trabalho: ainda que determinado bem ou construção seja apadrinhada pelos burocratas como símbolo de uma cidade, sem o aval da comunidade ele se torna um espaço estranho. E completa:

A antiga Estação Ferroviária, diante de sua relevância histórica e monumental, não estabelece uma relação duradoura e prioritária na memória do goianiense, principalmente devido às sensações negativas ocasionadas pela depredação e insegurança da região. Esse cenário estende-se por diversas regiões do Setor Central, colaborando para um estado de insegurança pública generalizada e relacionada com a depredação da paisagem urbana local, desprovida de referenciais imagéticos agradáveis que contribuíssem para o sentimento de pertencimento (AZEVEDO, 2018, p. 109-110).

Assim, percebe-se que as edificações impostas pelos burocratas não estão no imaginário popular, até porque muitas delas (como é o caso específico da Estação Ferroviária citado acima) estão (ou estiveram por muito tempo) em estado deplorável de conservação, indicando que, ainda que protegidas legalmente pela instituição do tombado, essa por si só não é capaz de garantir a conservação e ocupação dos edifícios. Essa afirmação confirma a colocação de Jacques (2003), quando ela afirma que, quando os edifícios tombados são reconhecidos como símbolos pela própria comunidade, a figura do tombamento se torna desnecessária, visto que a população se encarrega de, automaticamente, preservar aquele bem.

 

Considerações finais

De um modo geral, pode-se afirmar que Goiânia é uma miscigenação de povos e culturas vindas de toda parte do Brasil. Edificada a partir do zero, Goiânia era/é diferente das demais cidades. Tradicionalmente, as cidades se consolidam após a aglomeração de pessoas em um determinado local, e que, após certo tempo, começam a construir edificações, monumentos e, por fim, criam-se os laços afetivos entre si. Em Goiânia foi o inverso, quando motivações políticas decidiram transferir a capital do Estado de Goiás de local e, para isso, construíram uma cidade inteira do zero para abrigar os servidores públicos da antiga capital e a nova população que iria residir na nova cidade.

A ocupação do espaço urbano de Goiânia foi realizada mediante a propaganda divulgada nacionalmente pelo governo do estado, almejando a venda de lotes e assim angariando migrantes para a cidade. Goiânia, então, não é o resultado da união de um grupo comum, com os mesmos hábitos, mas sim a junção de diferentes povos, diferentes costumes e diferentes estilos de vida, tendo em comum somente a vontade de crescer na vida em um lugar novo, repleto de novas oportunidades.

Destarte, a miscigenação de povos dentro do novo território, bem como a rápida edificação de uma cidade até então não existente contribuiu para a ausência de símbolos que refletissem a identidade daqueles que ocupavam o espaço urbano. O projeto arquitetônico fundamentado no estilo francês Art déco, ainda que adaptado com características vernáculas da região, como vitrais representando tamanduás e bandeirantes, não fazia alusão aos costumes dos povos que habitaram Goiânia, muitos com uma cultura interiorana e voltados para o sertanejo.

Em nenhum momento o Art déco esteve consolidado na memória da população. Praças, pessoas e mitos são mais representativos para a capital do que o centro histórico tombado. As pessoas não reconhecem e não se veem nos prédios baixos, de fachadas retas e pouco ornamentadas, tendo em vista que esse estilo importado e recém-chegado lhes era estranho quando comparado às edificações “[...] coladas umas às outras, com extensos e vistosos telhados que se uniam uns aos outros” (MANSO, 2004, p. 120). Os goianienses se veem nas ruas calorosas, nos objetos comercializados, nos ambulantes, na vida que alimenta as ruas goianienses. Então, diante da resumida análise, pode-se dizer que todo o processo de tombamento do acerto arquitetônico e urbanístico Art Déco em Goiânia é incondizente com a realidade cultural da população e, por isso, pode ser classificado como errôneo. Essa classificação se fundamenta no modo como a comunidade vê os bens tombados e como eles se encontram em atual estado físico. Não representa a população e por isso não é visto como um fato e um bem importante. Ainda que tombado, o objetivo em nenhuma das esferas fora alcançado: Goiânia não conseguiu o reconhecimento de sua população e não atraiu investidores particulares internacionais.

Em suma, o tombamento das edificações Art Déco em Goiânia não representou o verdadeiro patrimônio goianiense, a imagem que população tem da cidade, visto que essa não reconhece o Centro da capital como representante da cultura local. Os símbolos que foram apresentados pelas duas pesquisas citadas ressaltam a ausência de imaginabilidade que o Centro de Goiânia possui pelos moradores, apontando que os símbolos que a população goiana tem da cidade destoam das edificações existentes no Centro Histórico.

Todavia, é possível reverter a ineficiência do tombamento Art Déco em Goiânia com uma política de educação patrimonial, que, embora prevista na Legislação Federal e no próprio Dossiê de Tombamento, nunca fora executada.

 

Referências

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AZEVEDO, Angélica. Memória Art Déco em Goiânia: a busca por uma identidade. Dissertação (Mestrado) - Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte-MG, 2018.

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Data de Recebimento: 05/01/2020
Data de Aprovação: 10/03/2020

 

[1] Compõem os edifícios e monumentos tombados a antiga Estação Ferroviária de Goiânia, a mureta e o trampolim do Lago das Rosas, o antigo Palace Hotel, o antigo Grande Hotel, a antiga Subprefeitura e Fórum de Campinas, antiga Escola Técnica de Goiânia, o Colégio Estadual Lyceu de Goiânia, Teatro de Goiânia e o Conjunto da Praça Cívica, composto pelo Coreto, fontes luminosas, obeliscos com luminárias, Fórum e Tribunal de Justiça (atual Procuradoria Geral do Estado), Departamento Estadual de Informação (atual Museu Zoroastro Artiaga), Palácio das Esmeraldas, Delegacia Fiscal (futura sede do Iphan/GO), Chefatura de Polícia (atual Subsecretaria Estadual de Cultura), Secretaria Geral (atual Centro Cultural Marieta Telles) e Tribunal Regional Eleitoral, Residência de Pedro Ludovico (atual Museu Pedro Ludovico) e a Torre do Relógio (IPHAN, s.d.).