Ética e argumentação abolicionista: (anotações a um texto de José do Patrocínio)


resumo resumo

Eduardo Guimarães



Introdução

O objetivo deste texto é analisar alguns movimentos de designação e argumentação em um texto de José do Patrocínio[1]. Trata-se de encontrar o funcionamento semântico de palavras e enunciados que fundamenta a argumentação do texto analisado. Esta análise visa criar condições para refletir sobre a consideração de valores éticos, a partir de análises semânticas específicas. Para isso vamos analisar o acontecimento do texto Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro na conjuntura urbana da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX, enquanto capital do império do Brasil regulado pela constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I.

Vou analisar recortes de um texto específico, o Manifesto, buscando, na análise de sua significação, como ele significa princípios éticos, mesmo que o texto não trate disso, não discuta a questão da ética. Deste modo espero poder considerar a espessura histórica na qual estes princípios se constituem mesmo que, o que é comum, não formulados explicitamente[2]. O que analiso são textos e o que significam e como. O resultado desta análise é que será meu elemento de reflexão para a consideração de princípios éticos em condições históricas específicas.

Para as análises, além da consideração da argumentação enquanto significação produzida pelo acontecimento da enunciação, e da designação, como produzida pelas relações de elementos do texto (nomes, por exemplo), vamos considerar o funcionamento polissêmico dos conceitos, que se apresentam pelas palavras no funcionamento do texto. Para este estudo serão tomados três pontos fundamentais: 1.o espaço urbano do Rio de Janeiro como um cenário da luta pela abolição; 2.a argumentação sobre a abolição a partir do argumento da liberdade natural. 3.a relação do modo de estabelecimento do conceito de liberdade, no texto, e a questão dos valores éticos.

 

  1. O Rio de Janeiro como espaço de luta pela abolição

O texto em análise (Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro) é apresentado numa reunião da Confederação Abolicionista dessa cidade, em 11 de agosto de 1883. Significa-se, assim, o espaço do Manifesto como a cidade do Rio de Janeiro, tal como consta do nome do manifesto e da data do documento. Interessa analisar, quanto a isso, como o Manifesto significa este espaço[3].

O documento em questão é assinado por um conjunto de entidades abolicionistas[4]. Por outro lado é um texto cujo vocativo inicial (Augustos e Digníssimos Representantes da Nação Brasileira), enquanto elemento da constituição da relação de alocução do texto (alocutor – alocutário), significa o espaço do Manifesto enquanto relacionado ao espaço das províncias do Império: assinam o documento entidades do Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, da cidade de Niteroi, assim como entidades diversas da cidade do Rio de Janeiro. Ao lado disso o alocutário constituído pelo vocativo coloca no centro da questão a nação brasileira (...representantes da nação brasileira). O espaço não se significa simplesmente como o espaço da cidade do Rio de janeiro, mas o espaço da capital do império.

Este espaço é nesta medida significado como o espaço que abrigava as instituições brasileiras, incluindo as de governo, no século XIX: a residência do Rei, o palácio de governo, o congresso, instituições que lutavam pela abolição, a sede de órgãos de imprensa do reino[5], a sede da Biblioteca Nacional[6] e o primeiro colégio público do Brasil: o Colégio Imperial de Pedro I, cuja fundação é de 1837, entre outros.

Este espaço é também o espaço que centraliza tantos outros espaços, como as propriedades dos grandes fazendeiros que cultivavam, por exemplo, a cana de açúcar e que se valiam da mão de obra escrava no trabalho da lavoura, como se pode claramente encontrar em passagens como:

 


“O governo, porem, escudou-se n’um falso pundonor nacional para satisfazer aos interesses de uma política sem horizontes, alem do eito da fazenda.” (p. 14)

           

Ao mesmo tempo é o espaço que centraliza todo o jogo de poder relativo às províncias do império e as relações com reinos amigos, como a Inglaterra, marcado inclusive pela questão da abolição:

 


“A Inglaterra aproveitou-se tanto quanto poude das nossas difficuldades, para impor-nos como condição do reconhecimento da nossa independência um tratado, abolindo o commercio de Africanos, e uma promessa de abolição total da escravidão.” (p.5)


 


“Nâo é desconhecido do parlamento brazileiro o trabalho inglório do novo governo brazileiro para conseguir da Inglaterra separar ao menos as questões do reconhecimento da nossa independência e da abollição do trafico.” (p. 5)


 

A cidade do Rio de Janeiro, assim significada no texto. é um espaço que propicia o embate pela abolição, ao reunir e opor os interessados no que está em jogo, do ponto de vista institucional, político e econômico. Trata-se de um espaço que não só torna possível o embate, mas dá a ele um modus operandi impossível de se dar se se tratasse de um espaço significado como disperso. E não é significado como disperso porque é o espaço que reúne os interessados (de um ou de outro lado) e as instituições, e dá sentido ao que se organiza em torno dele: as propriedades rurais, a organização da produção e sua configuração econômica e de política interna e internacional.

           

  1. O argumento da liberdade natural

Tal como a análise busca mostrar no que segue, o texto que tomamos para análise, em síntese, sustenta, pelo que diz, que não haveria, naquele momento, como se manter a escravidão no Brasil, embora ela ainda se mantivesse. Assim é um texto[7] de um alocutor que se opõe à escravidão, “injusta” e “ilegal”.

Como se mostrou na seção anterior, pela relação do alocutor com o lugar das associações abolicionistas, a alocução do texto coloca em relação um alocutor-abolicionista, significado pelas entidades que assinam o documento e um alocutário-parlamento, constituído pelo vocativo inicial.

Esta relação de alocução, que se constitui pelo alocutor-abolicionista e alocutário-parlamento, se dá correlatamente a como se constitui uma relação entre Locutor – Locutário[8], pelo agenciamento da língua do império português no espaço de enunciação do Brasil daquele momento.

Ou seja, O Locutor, aquele que diz, diz em língua nacional do Brasil (para usar uma denominação do período do império) a um Locutário. De outra parte, tal como já dito antes, o alocutor, o lugar social do dizer, diz do lugar da representação abolicionista para os representantes do povo (representantes da nação), a Câmara de deputados.

O texto do Manifesto apresenta inicialmente o “fato” da escravidão instalado desde o período colonial. Faz uma apresentação histórica da escravidão de índios e africanos no Brasil. Em outros momentos do texto há também o relato de outros aspectos da história dos avanços e recuos feitos no plano do Império em direção à abolição. Nesta apresentação do fato da escravidão instalada, ela é significada como uma fatalidade (“a da civilização americana”) que “fez com que a escravidão se tornasse um fato, e, o que é mais, obtivesse tolerância universal” (Patrocínio, 1883, p. 4).

É contra esta escravidão instalada que o texto vai argumentar. Para a análise de um elemento central desta argumentação analisaremos o recorte que segue, que contém a afirmação acima citada.

 

  1. Não obstante a fatalidade da civilisação americana, confiada a duas nações pobres de população e demais disso ainda quentes de uma cruzada tremenda, em que haviam embotado em vinganças obsecantes os sentimentos altruístas, gerado pelo christianismo; essa fatalidade fez com que a escravidão se tornasse um facto, e, o que é mais, obtivesse tolerância universal.

Bastará esta sancção para legitimar a chamada propriedade escrava?

Não!

Primeiro, a liberdade natural do homem é um direito imprescriptivel.

Segundo, a causa não era das que se findassem com a primeira sentença. A civilisação appellou do facto brutal de mal comprehendidos interesses da industria para os direitos da humanidade e nunca deixou o feito correr à revelia.(p. 4)

Primeiro aspecto a se levar em conta é que, segundo o texto, por “fatalidade” se constitui o fato da escravidão no Brasil agravada por que ela obteve “tolerância universal”. A parte central do recorte acima se dá a seguir num movimento duplo. De um lado o texto questiona a “tolerância universal” por meio de uma pergunta total:

 

(1a) Bastará esta sancção para legitimar a chamada propriedade escrava?

 

Antes de analisar a pergunta registre-se que sanção reescritura por substituição, signficando-a de modo específico, tolerância universal. Assim (1a) pode ser parafraseado por


(1a’) Bastará esta tolerância universal para legitimar a chamada propriedade escrava?


 

Analisemos agora o funcionamento desta pergunta do ponto de vista da argumentação, considerada como significação[9]. Segundo Anscombre e Ducrot (1983) uma pergunta total significa uma orientação argumentativa que pode ser caracterizada como segue: a pergunta total “orienta argumentativamente” na mesma direção do enunciado negativo correspondente. Ou seja, a pergunta Bastará esta sancão para legitimar a chamada propriedade escrava? orienta argumentativamente para a mesma conclusão que Não basta esta sanção para legitimar a chamada propriedade escrava. Nessa medida a agenciamento do Locutor pela língua (o funcionamento da pergunta) na enunciação sustenta a conclusão a propriedade escrava não é legítima. Ou nos termos do próprio texto, a pergunta (1a) sustenta como conclusão “a chamada propriedade escrava não é legítima”. Assim, o enunciado negativo (1b) Não! decorre necessariamente daquilo mesmo que a pergunta significa.

E a sustentação dessa conclusão se apresentará não só como o sentido da pergunta aqui analisada. Como se vê no recorte acima, o movimento da pergunta é seguido por uma afirmação que se articula na direção da negativa que a pergunta sustenta.

Por outro lado, e mais importante, é que neste ponto do texto encontramos, na exata sequência do que acabamos de citar, uma razão que mantém relação com a mesma conclusão a que a pergunta leva. Trata-se do enunciado:

(1c) Primeiro, a liberdade natural do homem é um direito imprescriptível.

 

Este enunciado é seguido por outros introduzidos por segundo:

 


(1d) Segundo, a causa não era das que se findassem com a primeira sentença. A civilisação appellou do facto brutal de mal comprehendidos interesses da industria para os direitos da humanidade e nunca deixou o feito correr à revelia.

 

Ou seja, a sequência do texto não se dirige simplesmente pela imposição do sentido próprio da pergunta, mas produz a orientação da argumentação pela pergunta e busca sustentá-la por dois outros argumentos, marcando a importância central do primeiro.

E este argumento é uma sustentação muito particular, que procuraremos em seguida analisar. Além disso o argumento do direito natural à liberdade aparece mais à frente na seguinte formulação:

 


(2)é impossível contestar o princípio do direito à imprescritibilidade da liberdade natural. (p.7)


 

A reescrituração e repetição do argumento sustenta a conclusão ao articulá-la à expressão da modalidade do impossível. (2) pode ser parafraseado por

 


(2’) é impossível contestar o princípio do direito à imprescritibilidade da liberdade natural, PORTANTO o princípio do direito natural à liberdade é imprescritível[10].

 

Façamos uma análise mais detida destas relações de argumentação.

O movimento geral da sustentação argumentativa pode ser apresentado como se dando:


1) pela pergunta (1a) que apresenta como sentido do enunciado a conclusão “Não basta esta sanção para legitimar a chamada propriedade escrava”.

2) Esta conclusão é sustentada na continuidade do texto por

(1c) A liberdade natural do homem é um direito imprescritível.

 

E por

 


(1d) Segundo, a causa não era das que se findassem com a primeira sentença. A civilisação appellou do facto brutal de mal comprehendidos interesses da industria para os direitos da humanidade e nunca deixou o feito correr à revelia.

 

A seguir procuraremos mostrar a força e o modo de constituição desta força argumentativa do argumento (1c). Esta força já está marcada enunciativamente pelo fato de a articulação argumentativa introduzir (1c) por primeiro e (1d) por segundo, que podemos paráfrasear por em primeiro lugar porque e em segundo lugar porque. Trata-se de uma articulação de dois argumentos que se somam, por razões diferentes. O primeiro argumento sustenta a necessidade da abolição num argumento que significa o caráter natural da liberdade, o ser humano tem, por natureza, liberdade. Voltaremos a isso a seguir. O segundo argumento coloca um outro lado do problema. Se a história colocou a fato da escravidão e a chancelou pela “tolerância universal”, isto não foi aceito, e se manteve a luta pelo direito inequívoco, imprescritível, da liberdade. Estes dois argumentos movimentam uma significação produzida como contingente (a do segundo argumento) e uma significação apresentada como valor natural (a do primeiro argumento) E ambos na direção do que a pergunta total (1a) estabeleceu como direção argumentativa.

Dado o caráter particular do argumento (1c), introduzido por primeiro, e que apresenta um argumento que sustenta o direito à liberdade como imprescritível, atenhamo-nos especialmente na análise da constituição enunciativa do seu sentido, ou melhor, como este sentido significa na relação argumento-conclusão que o constitui.

O argumento (1c) (a liberdade natural do homem é um direito imprescritível) é um enunciado com uma relação predicativa específica. De um lado a formação nominal[11] sujeito a liberdade natural do homem e de outro a predicação é um direito imprescriptível. Nesta relação pode-se observar que, no enunciado (1c), a FN (formação nominal) sujeito[12], a liberdade natural do homem, significa tal como a paráfrase (1c’) indica e como relativa ao que pode ser parafraseado por (1c’’). Este conjunto de paráfrases significa a precedência de sentido de liberdade e como este sentido é predicado no enunciado.

 

(1c’) Há a liberdade natural do homem

(1c’’) Esta liberdade é um direito imprescritível

 

A afirmação de existência da liberdade natural se apresenta como um acontecimento precedente à afirmação de (1c), a liberdade natural é um direito imprescritível.

Por outro lado, esta relação predicativa traz uma relação de reescrituração por definição que atribui direito à formação nominal sujeito a liberdade natural do homem. Um outro aspecto a considerar é que a formação nominal sujeito se apresenta também como uma nominalização (a liberdade natural do homem) que condensa numa formação nominal a relação predicativa a liberdade do homem é natural. Não se pode deixar de considerar que a FN a liberdade natural do homem pode significar no enunciado considerado também algo que se pode parafrasear por

 

(1c’’’) Aquela liberdade do homem que é natural é imprescritível

 

Ou seja, natural pode ser um determinante (um especificador) de liberdade ou um predicado que está condensado numa nominalização. De qualquer modo o que é preciso considerar é o que se pode parafrasear por

 

(1c’’’’) a liberdade natural é um direito do homem.

 

O que estas análises mostram é que (1c) é um argumento que funciona na sustentação da conclusão “a chamada propriedade escrava não é legítima” em virtude dos sentidos que este enunciado tem na relação com a conclusão[13].

 

  1. A designação de Liberdade

A análise das relações internas do enunciado (1c) leva à consideração da designação do nome-conceito liberdade, no texto de Patrocínio. Como vimos tanto direito quanto natural se relacionam com o nome liberdade atribuindo-lhe sentidos. Nesta medida podemos considerar que a designação de liberdade neste texto, tal como aparece neste argumento é:

            DSD -1[14]

 

direito ┤liberdade ├ natural

 

 

Ou seja, o sentido de liberdade é determinado semanticamente (é predicado) por direito e por natural.

Trata-se neste caso da designação de liberdade no Manifesto que analisamos. Ou seja, o que temos no caso é a designação num texto específico, que pode eventualmente ser correspondente à designação em outros textos, ou não. Este movimento enunciativo na configuração da designação de nomes num texto está diretamente relacionado com o que Koselleck (1979) considera como a polissemia própria dos conceitos, diferentemente da posição de unicidade do conceito da lógica.

Só para pôr em relevo a especificidade de uma designação, observemos, por exemplo, o que se encontra sobre a palavra liberdade, num texto atual, o Dictionnaire des Sciences Sociales:

 

“A liberdade, pelo menos nas discussões que têm sido feitas em filosofia política, tende a designar uma propriedade que possui ou não as pessoas que vivem em sociedade. (p. 705)

 

Sem me deter em uma análise específica, o que vemos é que o sentido de liberdade significa algo que as pessoas podem ou não ter em sociedade. Não se trata, necessariamente de uma propriedade natural, diferentemente da designação no Manifesto.

Um outro registro comparativo pode ser visto, por exemplo, no verbete de um dicionário da língua portuguesa (Dicionário Aurélio);

 

Liberdade. Sf. 1. Faculdade de cada um de decidir ou agir segundo sua própria determinação. 2. Estado ou condição de homem livre. 3. Confiança, intimidade (às vezes abusiva) Liberdade condicional jur. Liberdade, com algumas condições restritivas, que se dá a certos condenados, antes do fim da pena (p. 515  Mini Aurélio, 6ª. Edição. Positivo)

 

A designação, constituída no acontecimento de enunciação, dá sentido às coisas existentes. A enunciação toma o existente, enquanto significado (por ser significado). Não se trata, no caso da designação de liberdade no DSD-1, de uma relação referencial, mas de uma relação de significação sem a qual não há linguagem e não é possível falar das coisas.

O funcionamento da designação se constitui na relação da enunciação com aquilo de que ela fala, que se apresenta na linguagem enquanto a linguagem o significa.

Considerando a designação de liberdade constituída pelo texto, observemos mais de perto o funcionamento da formação nominal sujeito em relação a sua predicação. Observe-se que esta formação nominal significa em virtude da predicação que recebe, e vice-versa.

O enunciado (1c) pode ser parafraseado por

 

a – (1c’) Há a liberdade natural do homem

        [(1c.1) o homem tem liberdade natural]

 b – (1c’’) Esta liberdade é um direito imprescritível

 

Não há, tal como este enunciado se apresenta no texto, como pensar a predicação é um direito imprescritível sem considerar tal direito como direito natural, como precedente à própria predicação. Assim, quando o enunciado refere à liberdade natural do homem, isto só é possível na medida em que se considera que uma afirmação precedente (não necessariamente existente) teria estabelecido, no texto, o sentido de o homem tem liberdade natural[15].

Tomando esta questão na cena enunciativa, há que se considerar uma referência produzida pelo Enunciador que alude à posição do alocutor-abolicionista que apresenta a afirmação precedente, sustentando assim o que está na referência (a referência do enunciador à liberdade natural do homem só é possível pela apresentação da afirmação que se mostra como de um acontecimento precedente, pela enunciação do alocutor-abolicionista). O enunciador se refere, pela formação nominal sujeito (a liberdade natural do homem) à liberdade natural do homem, significando sua precedência em relação ao próprio enunciado em que está. No entanto, como vimos, o sentido de liberdade tem a designação que configuramos acima no DSD – 1, ou seja, há um sentido de liberdade que o próprio texto do Manifesto estabelece e apresenta. A cena enunciativa significa assim que o alocutor-abolicionista apresenta o sentido de o homem tem liberdade natural, e assim o enunciador se refere a ela aludindo a este alocutor, que apresenta o homem tem liberdade natural. Isto se pode representar como segue:

 

(onde a seta simples significa alude, a seta espessa significa apresenta e a seta quebrada significa refere)

Esta análise significa que o alocutor apresenta a existência deste direito natural, ou seja, um direito predicado como natural, tal como já indicamos acima, e é esta apresenta que torna inevitável o que se predica da formação sujeito, ser um direito imprescritível.

Um aspecto interessante a se observar ainda é que o enunciado (1c) pode ser parafraseado por

 

(1c.2) O direito natural do homem à liberdade é imprescritível.

 

Podemos considerar que isto decorre de o predicado de (1c) apresentar-se concomitantemente com uma reescrituração por definição. É um direito é uma reescrituração por definição da FN sujeito e é concomitante à predição é um direito imprescritível.

A referência que a formação nominal sujeito (a liberdade natural do homem) faz, pelo enunciador, alude à designação da palavra-conceito liberdade. Nesta medida, a predicação é um direito imprescritível, tem como sustentação a liberdade é um direito natural. A enunciação do argumento o apresenta por uma construção que se mostra verdadeira por aquilo que significa. Isto faz com que a naturalidade da liberdade faça do argumento (1c) um argumento decisivo (como se fosse inquestionável) na relação argumentativa estabelecida pelo lugar do alocutor-abolicionista.

É isto que torna possível a retomada do argumento (2) na relação argumentativa

 

  1. é impossível contestar o princípio do direito de imprescriptibilidade da liberdade natural. (p. 7)

que, como dissemos, pode ser parafraseado por (2’), é impossível contestar o princípio do direito de imprescriptibilidade da liberdade natural POR ISSO a imprescriptibilidde do direito à liberdade é incontestável. Podemos considerar para (2) uma relação de argumentatividade diretiva que se pode representar por (onde PT descreve o que estamos chamando de relação diretiva)[16]:

 


(2a) é impossível contestar o princípio do direito de imprescriptibilidade da liberdade natural PT a imprescriptibilidade do direito à liberdade é incontestável


 

Estes argumentos, que podemos encontrar nas relações de articulação destes enunciados, podem ser pensados na relação com seu modo de integração ao texto, que é o que lhes dá sentido. Nessa medida eles são argumentos que, ao sustentar a conclusão a chamada propriedade escrava não é legítima, sustentam a conclusão não pode mais haver escravidão no Brasil, que aparece na conclusão final do texto:

 

  1. A escravidão e a pena de morte já estão condemnadas pela sciencia e sem appello. Só falta que a legislação arranque-as do seu código para inhumal-as nas misérias do passado. A redempção do homem, primeiro marco milliario da humanidade, que caminha incessante para a perfeição, está consumada na razão universal, no mundo das idades.

Augustos e Dignissimos Senhores Representantes da Nação Brasiliera: Consumai-a na lei(p. 21)

 

Na cena enunciativa do texto o alocutor-abolicionista sustenta a impossibilidade da contestação na medida em que o Manifesto constituiu uma designação para liberdade tal como apresentada no DSD-1.

A esta sustentação argumentativa que pudemos mostrar pela análise do recorte (1), alia-se, por exemplo, um outro argumento, que de algum modo dá continuidade tanto ao argumento (1c), quanto ao argumento (1d).

Como elemento do argumento (1c), constitui-se uma designação de liberdade: é um direito, é natural. O próprio sentido da naturalidade do conceito sustenta a impossibilidade formal da contestação. Trata-se do que em certas Retóricas chamariam de um argumento quase-lógico[17]. A conclusão a que se relaciona (1c) está no próprio sentido de (1c). O que liberdade designa correlaciona no caso o argumento e a conclusão. Consideremos, por outro lado, um outro recorte que retoma o caráter histórico do argumento (1d):

 

  1. Quando, porém, esta liberdade é decretada por lei, ou por sentença, manda o direito a sua irrevogabilidade.

Semel pro libertate dictam sententiam rectratari non oportet.

[Uma vez dada uma sentença a favor da liberdade não convém modificá-la]

 

O que este argumento coloca se relaciona com uma luta histórica já significada em (2d), onde se diz que os defensores da liberdade dos escravos não se calaram à tolerância universal que aceita o fato da escravidão. E junta a este argumento o argumento (4).

Este argumento do Manifesto é enunciado para sustentar que a lei já decretara a abolição da escravidão indígena, e que isto é irrevogável. Portanto, toda forma de escravizar descendentes indígenas colide com o argumento (4). Os descendentes de índios não são mais escravos, já que a abolição da escravidão indígena já fora decretada. O argumento (4) funciona ao modo do enunciado (2), é impossível contestar o princípio do direito de imprescriptibilidade da liberdade natural, exatamente na medida em que a relação argumentativa de (2), assim como de (1c) garantem a liberdade de todos. (4), no entanto, opera no interior não mais do direito natural, embora em vista dele: afirmar o direito natural sustenta a liberdade é imprescritível POR ISSO quando uma lei decreta a liberdade ela é irrevogável, para sustentar que mesmo que se desconsidere (2), o que é impossível fazer, o argumento (4), ancorado por um argumento de autoridade do enunciado em latim, sustenta a liberdade de grande parte dos que ainda são mantidos na escravidão.

Se, mais uma vez, consideramos a relação de integração desta relação argumentativa ao texto, intensifica-se a relação do conjunto das relações de argumentação encontradas como argumentos para não pode mais haver escravidão no Brasil, na medida em que estas relações de argumentação sustentam a conclusão “a chamada propriedade escrava não é legitima”. Esta conclusão pode ser prarafraseada por

(2.1) A chamada propriedade escrava não é legítima POR ISSO não pode mais haver escravidão no Brasil.

 

que sugere a relação diretiva

 

(2.1a) A chamada propriedade escrava não é legítima PT não pode mais haver escravidão no Brasil.

 

  1. O conceito de Liberdade no Texto de Patrocínio e a Questão dos Valores Éticos.

As análises acima são um conjunto de sondagens a propósito de um texto específico, que se constitui como um acontecimento na capital do império do Brasil. Seus sentidos significam e operam nas relações do Império, direta ou indiretamente, tendo as pessoas o sentimento direto de seu impacto ou não. Assim, na tentativa de refletir sobre questões éticas, o que posso retirar delas são algumas reflexões preliminares nesta direção, a partir de uma posição científica específica, a da semântica da enunciação, que me possibilitou as análises do funcionamento enunciativo desenvolvidas nas seções anteriores.

Estas sondagens, no texto em questão, nos levaram a aspectos como:


1) A argumentação do texto se constitui como um embate, na capital do império, sobre a necessidade da libertação dos escravos no Brasil.


2) A liberdade é um direito natural, segundo a posição teórica que sustenta a argumentação de Patrocínio. Isto significa uma certa concepção do ser humano.


3) Alguns dos fatos caracterizam, segundo José do Patrocínio, a escravidão no Brasil: ela se estabelece pela “civilização americana” e é aceita universalmente. Há uma tolerância que a chancela e a garante.


4) A construção argumentativa do texto constitui correlatamente, na história polissêmica das palavras-conceito, a designação do nome liberdade.

Observados os aspectos da análise acima sintetizados, detenhamo-nos especificamente em alguns detalhes.


1) As análises aqui apresentadas não são sobre comportamentos pessoais ou sociais. São análises sobre sentidos de um texto particular.


2) O enunciado a liberdade natural do homem é um direito imprescritível é uma verdade, é a descrição de um fato, de um estado de coisas? Sabe-se que há teorias diversas em torno do conceito de liberdade. Os estudos sobre o funcionamento social e político da sociedade mostram que a liberdade é algo que define, ou não, este funcionamento. No caso em questão o que está em discussão é a falta de liberdade. Nem o enunciado acima é uma descrição inequívoca e universalmente aceita para a condição humana (ser humano é ser livre), nem a posição que a sustenta desautoriza necessariamente qualquer outra posição teoricamente diversa.


3) O que se observa é que o Manifesto opera o enunciado a liberdade natural do homem é um direito imprescritível mais como a afirmação de um valor social e politicamente necessário, nas condições históricas especificas, e menos como descrição das condições da escravidão do funcionamento social, ou da sustentação de uma teoria científica da liberdade. Haja vista o que o próprio texto apresenta, como “desvio” da liberdade, na manutenção da escravidão pelo funcionamento do modo de produção do império do Brasil naquele momento.

Pelas análises e considerações acima, como relacionar o conceito de liberdade à questão ética, à consideração de valores que uma sociedade assume, deve assumir, como seus e como modos de orientar as relações e práticas sociais?[18]

Os valores são constituídos na história das sociedades, e sua constituição coloca a questão de como do deve ser, que um valor significa, chega-se ao como uma sociedade é ou poderá ser. O “valor da liberdade” no Manifesto significa todos devem ser livres. O texto sustenta nem todos são mas devem ser. E, pelo embate que a argumentação do texto atesta, a constituição de um valor de uma sociedade enquanto valor de toda ela, e não só de grupos sociais específicos, é resultado de um embate político do funcionamento das sociedades humanas[19]. As análises científicas, semânticas no caso, permitem observar que sentidos estão na luta política daquele momento, naquelas condições: a liberdade é um valor para todos versus não é um valor para todos.

 

Considerações Finais

 Pela análise realizada a liberdade, segundo o que o Manifesto significa, deve ser um princípio fundamental decisivo na organização de uma sociedade. No texto do Manifesto não se trata de uma descrição (mesmo que ela seja feita) do funcionamento social: tem liberdade, não tem liberdade. Trata-se de reivindicar que esta sociedade considera que tal valor deve orientar as relações sociais. Ou seja, há um dever ser que significa o será (o é). Neste embate político o Manifesto sustenta fundamentalmente que todos devem ser livres. Ou seja, sustenta que se deve considerar a igualdade de todos quanto ao direito à liberdade. E não se pode deixar de registrar que até hoje a luta pela liberdade no Brasil permanece, e continua sendo um valor que é exigido enquanto tal para todos pelo valor da igualdade. Até hoje permanece no Brasil a defesa daqueles que trabalham em regimes homólogos ao da escravidão.

A análise do Manifesto, enquanto texto que foi parte, no  século XIX, de uma luta pela liberdade, nos coloca diante da questão de que se argumenta para sustentar a abolição da escravatura no Brasil, ou seja para a extensão do direito à liberdade para  todos: Os nascidos livres, os libertos e os escravos, não libertados ainda, para que sejam como os demais. O embate que observamos nesta análise semântica era o embate para que o Brasil garantisse a todos os mesmos direitos: liberdade para todos.

Nesta medida a análise da argumentação do texto e a designação de nomes como liberdade, fazem significar a necessidade, pelo menos para parte da sociedade brasileira naquele momento, de garantia deste direito. E na medida em que ele fosse de todos, sem distinção. Este aspecto pode ser encontrado em outro texto daquela época, o Hino da República, no qual encontramos:

(5) Seja um hino de glória que fale

De esperanças de um novo porvir!

Com visões de triunfos, embale

Quem, por ele, lutando surgir!

 

Liberdade! Liberdade!

Abre as asas sobre nós

Das lutas na tempestade

Dá que ouçamos tua voz

 

Nós nem cremos que escravos outrora

Tenha havido em tão nobre País

Hoje o rubro lampejo da aurora

Acha irmãos, não tiranos hostis

 

Somos todos iguais! Ao futuro

Saberemos, unidos, levar

Nosso augusto estandarte que, puro

Brilha, ovante, da Pátria no altar!

 

Neste recorte do Hino temos

 

(5a) Liberdade! Liberdade!

Abre as asas sobre nós

Das lutas na tempestade

Dá que ouçamos tua voz

 

Aqui, a personificação da liberdade pede que ela seja de todos: “abre as asas sobre nós”(todos). Tanto que logo a seguir encontramos

 

(5b) Somos todos iguais! Ao futuro

Saberemos, unidos, levar

Nosso augusto estandarte que, puro

Brilha, ovante, da Pátria no altar! (Grifamos)

 

que expressa diretamente, quanto à liberdade, a igualdade de todos. O enunciado somos todos iguais, cujo predicado é somos iguais, aparece como significando integrado a um texto que diz Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre País.

Esta breve análise nos possibilitou compreender o sentido da sustentação da liberdade no texto do Manifesto, no século XIX e como a observação deste modo de sustentação nos leva à questão dos valores éticos, da historicidade da constituição do que deve ser. Ao mesmo tempo a análise semântica possibilitou encontrar, como um princípio mais geral no conjunto dos valores éticos, o valor da igualdade. Este valor exige a garantia do valor da liberdade. E isto considerado não como algo da natureza biológica humana, mas como a construção histórica de sentidos a partir dos quais é possível dizer que valores uma sociedade significa nos seus embates políticos em geral.

A liberdade aparece menos como uma característica que descreve a sociedade da época, e mais como um valor, como do plano do deve ser, e enquanto tal um valor que projeta um ser, um é, futuro. E a consideração do valor da liberdade significa a igualdade como um valor que garante o valor da liberdade para todos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIAS, Luiz Francisco; ZATTAR, N. Enunciação e relações linguísticas. Campinas, SP: Pontes, 2018.

DUCROT, Oswald; ANSCOMBRE, Jean-Claude. L’argumentation dans la langue. Mardaga, Bruxelles, 1983.

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Data de Recebimento:05/01/2020
Data de Aprovação: 10/03/2020

 

 

[1] José do Patrocínio, como se sabe, era descendente de escravos e jornalista.

[2] As análises empíricas, diferentemente, Hume (1777), Harris (2010), por exemplo, se colocam na posição de observar o que consideram fatos do comportamento humano para retirar disso a formulação dos princípios éticos, como generalizações.

[3] Sobre o sentido do espaço ver, entre outros, Orlandi (1999, 2001).

[4]Club dos Libertos de Nitherohy; Gazeta da Tarde (Patrocínio e João F. Serpa Junior); Sociedade Brazileira Contra a Escravidão; Representantes da Libertadora da Escola Militar; Libertadora da Escola de Medicina; Libertadora José do Patrocínio; Abolicionista Cearense; Centro Abolicionista Ferreira de Menezes; Club Abolicionista Gutenberg; Club Tiradentes; Club Abolicionista dos Empregados do Commercio; Caixa Abolicionista Joaquim Nabuco; Libertadora Pernambucana; Abolicionista Espirito Santense; Sociedade Libertadora Sul Rio-Grandense.

[5] A criação da imprensa no Brasil é de 1808.

[6] Cuja história se inicia também em 1808.

[7] Aspectos desta análise foram apresentados em Guimarães (2018) (“O Argumento da Liberdade. Sondagens em um Manifesto Abolicionista no Século XIX”, Congresso de Retórica, UFMG), que aqui retomo com modificações e acréscimos.

[8] A cena enunciativa se constitui pelas relações entre os lugares de enunciação: Locutor, aquele que diz, e seu Locutário, a quem se diz; alocutor, lugar social de dizer e alocutário, lugar social daquele a quem se diz; enunciador, o lugar de dizer, cuja relação se dá com os outros lugares de enunciação e com aquilo que se fala e como (Guimarães, 2002, 2018).

[9] Considera-se a argumentação como significação, como sentido, tendo em vista a tese da argumentação na língua de Ducrot (1973), modificada por uma concepção da semântica da enunciação que toma a enunciação como acontecimento (Guimarães, 2002, 2018).

[10] Sobre a orientação da articulação argumentativa das modalidades ver Guimarães (1979).

[11] No sentido dado a este termo por Dias (2018).

[12] Sobre o funcionamento dos enunciados com relação predicativa ver Guimarães (2018).

[13] A sua força argumentativa não se constitui por uma referência a algo, mas pelo que a enunciação significa.

[14] O Domínio Semântico de Determinação é a representação da análise da designação de um termo, de uma palavra, tal como está em “Domínio Semântico de Determinação” (Guimarães, 2007). No diagrama ┤e├ são lidos como atribui sentido a.

[15] Sobre o funcionamento da formação nominal sujeito nos enunciados predicativos ver Guimarães (2018).

[16] Tal como considerada em Guimarães (2018).

[17] Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958, p. 258), o argumento que se baseia no princípio o que vale para todos vale para a parte.

[18] Pensando na diferença entre ética e ciência, comumente posta em muitas discussões na história do conhecimento, lembro aqui a posição de Hume (1777) para quem é impossível inferir do é o deve. E isto afasta as considerações éticas das considerações científicas. Sem entrar nesta discussão que já tem sito feita por muitos filósofos, como atualmente Harris (2010), tomei nesta reflexão uma perspectiva diferente da desses autores, de cunho pragmático.

[19] Tomo aqui o sentido de político tal como venho considerando, tanto em relação ao sentido do político como confronto (Orlandi, 1990) e como desentendimento (Rancière, 1995). Para pensar a constituição de valores nesta perspectiva, para os interesses específicos deste texto, lembro uma colocação de Rancière, segundo à qual, “há pelo menos um campo em que a simples ordem do mais e do menos foi suspensa, sendo substituída por uma ordem, por uma proporção específica, Esse campo se chama política. A política existe devido a uma grandeza que escapa à medida ordinária, essa parcela dos sem-parcela (o povo) que é nada e é tudo” (...) “Há política simplesmente porque nenhuma ordem social está fundada na natureza, porque nenhuma lei divina ordena as sociedades humanas.” (Rancière, 1995, p. 30).