Revista Rua


A periferia de São Paulo: revendo discursos, atualizando o debate
The periphery of São Paulo: resells discourses, updating the debate

Érica Peçanha do Nascimento

Para efeitos de análise, ao menos os coletivos autogestionários que tenho acompanhado nas periferias paulistanas serão abordados como “projetos de ação cultural”. Com isso, não pretendo homogeneizar categorias nativas, que julgo necessário investigar em cada caso estudado, mas chamar a atenção para o fato de que, embora sejam ações culturais de caráter coletivo, cuja finalidade é transformar (mesmo que simbolicamente) o espaço social onde estão sediados, assim como a vida dos sujeitos com menos acesso a oportunidades educacionais, profissionais e culturais, são também projetos pessoais[13] de seus idealizadores. E, desta maneira, estão intrinsecamente ligados às suas trajetórias, militância, redes de contatos, etc.
Além disso, tenho como hipótese que esses sujeitos vêm ganhando espaço na cena política ao apresentar questões e demandas que se sofisticaram com relação àquelas comumente associadas aos moradores de periferias (como infra-estrutura e serviços básicos), reivindicar políticas culturais específicas e estabelecer conexões entre sujeitos periféricos, bem como entre estes e representantes dos centros geográfico, político e cultural. Do mesmo modo, considero que, ao produzir a própria imagem por meio de produtos artísticos, ou “falar com voz própria”, os artistas periféricos, especialmente aqueles organizados coletivamente, tornam-se sujeitos de discursos sobre periferia e cultura.
Os artistas periféricos que protagonizam projetos de ação cultural merecem destaque, portanto, por serem também atores do espaço e da cultura que estão se esforçando para construir, em uma conjuntura de múltiplos discursos sobre periferia e sua cultura singular. Sendo assim, a pergunta que se torna chave é: como e por que artistas e iniciativas organizadas assumiram como principal característica o papel de produtores e amplificadores da cultura da periferia? A resposta parece indicar que em meio aos diversos discursos esses sujeitos individuais e coletivos articularam uma nova diferença[14], passando a significar seus produtos e atuações manipulados na periferia como cultura ou arte da periferia.


[13] Nos termos de Gilberto Velho (2000), projetos “são expressão nítida, produto e causa de uma sociedade onde indivíduos são as unidades significativas[1]”; “que ao transitar entre diferentes mundos fortalecem suas identidades singulares e alimentam estratégias de ação para atingir seus objetivos. Assim, a identidade individual é constituída retrospectivamente pela memória e prospectivamente pelos seus projetos; sendo que nesse processo estão envolvidas deliberações e escolhas a partir do quadro sociocultural disponível e de um campo de possibilidades com limites nem sempre evidentes.
[14] Este argumento é baseado nas contribuições de autores pós-coloniais, como Stuart Hall, para quem o período pós-colonial é marcado pela proliferação da diferença, dada a nova estrutura de globalização e de reformulação da modernidade, cujo centro está nas periferias dispersas pelo mundo. É neste contexto que o autor se debruça sobre a administração dos problemas da diversidade gerados pelas sociedades multiculturais, direcionando seus estudos às questões de identidade e sujeito. A noção de “diferença” de Hall é inspirada no conceito de différance de Derrida, isto é, uma idéia de diferença que não se traduz em polaridades identitárias do modelo ocidental, tampouco em formulações que a concebem como fixas, mas que a entende como parte de um jogo que está sempre emprocesso. No caso do conceito de identidade, Hall enfoca sua centralidade para pensar a questão da agência (ação individual) e da influência de movimentos sociais sob a emergência de novos sujeitos políticos que o torna pertinente. Nesse sentido, novas identidades coletivas são resultados não apenas de políticas culturais de diferença, mas de lutas travadas em torno delas. É nesta direção que se insere o interesse do autor por estratégias culturais que produzem diferenças e deslocam as disposições de poder, como movimentos em torno da valorização da identidade ou da cultura negra frente ao racismo. Aqui, a leitura de Hall sobre a idéia de “cultura negra”, como representação de tradições e comunidades negras que se manifestam na cultura popular, ajuda-nos a pensar o valor estratégico da versão de uma “cultura da periferia” como representação de práticas, valores e produções artísticas de membros das classes populares que habitam bairros periféricos paulistanos.