Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

Em “Noite dos Mascarados” (1966), as formalidades habituais de apresentação e relacionamento entre dois pretendentes são colocadas em suspensão e o horizonte temporal é reduzido ao tempo da festividade, de modo que são abandonadas as preocupações futuras.
 
 
Mas é carnaval
Não me diga mais quem é você
Amanhã, tudo volta ao normal
Deixe a festa acabar
Deixe o barco correr
Deixe o dia raiar
Que hoje eu sou
Da maneira que você me quer
(Noite dos Mascarados - 1966)
 
Como sinaliza o verso, “amanhã tudo volta ao normal”, o carnaval aparece como um momento de suspensão momentânea da cotidianidade e a quarta-feira de cinzas é um marco da volta à esfera de ação regulada pela normalidade, pelo “dever-ser”. Assim, em “Ela desatinou” (1968), a moça é dada como insana porque “viu chegar quarta-feira / acabar brincadeira / bandeiras se desmanchando / e ela ainda está sambando”. E é assim com toda ocasião de suspensão da cotidianidade, pois não se pode prescindir do ritmo cotidiano habitual e a ele sempre retornamos nossas ocupações rotineiras – sempre as mesmas e sempre outras na dinâmica da iterância.
            Como na referência feita na canção “Ano novo” (1967), alguns historiadores e sociólogos enxergam nessas ocasiões de festa uma saída de escape para o alívio da pressão criada pelo cotidiano em certo sentido opressor, sobretudo, para as classes menos favorecidas.
 
Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E quem já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano Novo
(Ano Novo – 1967)