Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

[a poesia do tango] tem o dom de promover, ainda que episodicamente, uma suspensão da cotidianidade, ou seja, daquilo que é puramente rotineiro. Se suprimi-la seria impossível, pois ‘nenhuma existência individual’ cancela a cotidianidade, a arte, e no caso em tela, o tango, seja no âmbito da criação ou no da fruição, eixo aqui aludido, é um vetor na dialética cotidianidade-suspensão.
 
            Na canção de Chico Buarque o desfile da banda pelas ruas da cidade é o que desencadeia a suspensão da rotina, o abandono temporário dos afazeres, das preocupações diárias e da consciência de cada lugar social ocupado, sendo toda a atenção concentrada na fruição do espetáculo dos músicos percorrendo as ruas da cidade. Entretanto, na seqüência, constata-se que “tudo tomou seu lugar / depois que a banda passou”.
 
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
(A Banda - 1966)

A suspensão da cotidianidade parece estar associada diretamente a uma suspensão da noção, supracitada, do “dever-ser” (TEIXEIRA, 1990). Em determinados momentos, esse “dever-ser”, que, em última instância, motiva as ações rotineiras de manutenção da ordem estabelecida, acha-se suspendido e então a cotidianidade se interrompe, dando lugar a uma dinâmica mais associada aos sentidos, à espontaneidade ou mesmo a regras ritualísticas específicas.
Nesse sentido, as festas são ocasiões típicas de suspensão da cotidianidade. As grandes festas que ganham espaço no cotidiano citadino exigem a interrupção da trivialidade e costumam arrastar multidões às ruas da cidade em feriado. No Brasil, tem grande importância e participação um evento festivo muito associado a essa suspensão: o carnaval. Várias canções do repertório de Chico Buarque trazem a idéia do carnaval diretamente relacionada à interrupção da ordem habitual. Assim, na canção “Cordão” (1971) o apelo por um evento que abale a conformação rotineira é feito pelos versos “quero ver o vendaval / quero o ver o carnaval / sair”. O carnaval aparece com muita frequência no cancioneiro de Buarque com esse mesmo sentido de interrupção da rotina.