Abandonos


Vitória Trevizan Botelho1

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5252-344X

Alessandra dos Santos Penha2

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3192-1593

Renato Salgado de Melo Oliveira3

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0060-0175

 

A palavra resistência, quando consultada no dicionário, nos leva à seguinte definição: habilidade de um corpo reagir sobre a ação de outro corpo. Quais são as intensidades e quantas as vezes um corpo consegue responder a um movimento contrário, determinam a resistência, o que também nos remete à durabilidade, à força, característica geralmente positiva quando empregada a um objeto, a uma pessoa, a um grupo de pessoas.

A força de quem resiste diariamente estimula e inspira a geração seguinte, e a seguinte, e a seguinte... A inspiração é fruto, essencialmente, da energia e do foco que algumas pessoas dedicam em determinada luta, existindo e resistindo por ela (FRANKL, 1991). Existem os debates, ideias e ideais são contestados, as modalidades corpo a corpo, técnica, força e estabilidade são disputados, os desafios diários, no trabalho, no esporte, nas relações. Também existem aqueles desafios que nos preparamos meses ou anos para enfrentar, na carreira, nas relações pessoais. Estas lutas encontram obstáculos a serem superados, nos oferecendo uma direção.

O ar nos pulmões parece fazer mais efeito quando há expectativa de propósito(s): “aquele que tem um porquê para viver, pode enfrentar quase todos os comos” (NIETZSCHE citado por FRANKLS, 1991). Na luta, há movimento, há expressão, há dores, há vida. Na ausência da luta, há perda do sentido, não há movimento, nem expressão, perde-se o meio por onde existir. Foi na ausência, na perda e no silêncio que os primeiros passos para construção da exposição “Abandonos” foram dados. Com o cenário político já caótico, no segundo semestre de 2019 foi possível existir resistindo por meio das nossas lutas diárias, mas já tínhamos notado a Universidade Pública à deriva (RODRIGUES, 2019).

O desenvolvimento da exposição que mais tarde teria como título, “Abandonos”, começou em 2018. Durante algumas aulas no Centro de Ciências Agrárias (CCA) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Araras, SP, levantávamos discussões sobre o futuro da universidade e da produção científica brasileira. Preocupação, indignação e raiva no rosto dos professores, técnicos de laboratório e alunos: os cortes das verbas eram reais. Aproveitando o edital para eventos culturais e científicos do campus, nossa proposta inicial foi a de fotografar professoras e professores relatando suas histórias e como as bolsas ofertadas durante sua formação foram essenciais na consolidação de suas carreiras profissionais.

Com o passar dos dias, a maioria optou por silenciar a indignação e seguir, resignadamente, aceitando as migalhas em silêncio, seguindo. As aulas continuaram, os laboratórios seguiram suas rotinas, mas a área acadêmica já não era mais uma opção para muitos alunos de graduação, afinal, perderam-se perspectivas.

No primeiro semestre de 2019, o incômodo da mesma dor reaparece: o contingenciamento de verbas públicas. Fomos deixados de lado, mais uma vez; estávamos esquecidos, em silêncio. Frente a um cenário político caótico, sensível, com movimentos limitados e um vazio instalado no peito, a exposição “Abandonos” começou a se desenvolver e a palavra “sucateamento” foi a tônica de uma cascata de reflexões.

Caminhamos pelo campus e registramos com nossos celulares, o que nos remetia ao descaso - obras pela metade, estufas abandonadas, janelas e portas quebradas. E em outros momentos registramos também a vida tentando respirar naqueles espaços: as salas de aulas, os laboratórios, os experimentos, a existência de alunos, professores, técnicos.

De nossos registros fotográficos, entramos em consenso das 14 imagens que melhor representavam nossos sentimentos, lhes imprimimos em papel couchê fosco no tamanho 42 cm x 59,4 cm. A ideia da intervenção manual veio como proposta em uma de nossas reuniões. As fotografias sofreriam, da mesma forma que em nós, um sucateamento.

O material usado foi bem diversificado, a cola colorida trouxe vida aos registros em alguns momentos; em outros, apagou. O estilete arranhou, envelheceu e agrediu as fotografias. Deixamos algumas fotografias expostas ao ar livre, esquecidas por alguns dias. Depois, lhes recortamos e incorporamos a outras imagens. Uma mistura de cola e terra também nos auxiliou. Por fim, a acetona reagia com a tinta da impressão, causando caos às imagens.

Os textos/poesias que compuseram a exposição “Abandonos” foram inspirados pelas nossas reflexões sobre as relações de poder e os silêncios convenientes, com a leitura do ensaio “Corpos Indóceis4”, além do álbum “O silêncio que precede o esporro”, do Rappa.

A exposição “Abandonos”, apresentada de 02 de dezembro de 2019 a 07 de janeiro de 2020, fez efeito. As fotos ficaram expostas numa parede do prédio principal de um campus silencioso, desferindo golpes a esmo, clamando por vozes, por reações, por afetos:

 

No balcão do botequim

A prosa tá parada

Não se fala da vida

Não acontece nada (ORAPPA, 2003)

 

A existência de cada fotografia invadiu a rotina dos indivíduos que passavam -

 

Agora entre o meu ser e o ser alheio a linha de fronteiras se rompeu (ORAPPA, 2003)

 

- e gerou despertares repentinos, interrompeu pesadelos, convidou a reflexões sobre as forças externas que nos desprezam e sobre as forças internas, sobre nós, nossos silêncios convenientes e, consequentemente, sobre os rumos da Universidade Pública, que todo dia esvaece um pouco mais, abandonada.


1  Aluna do curso de Bacharelado em Biotecnologia da Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Agrárias, campus Araras, SP. E-mail: penha.alessandra@gmail.com.

2  Professora da Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Agrárias, campus Araras, SP. E-mail: penha.alessandra@gmail.com.

3  Professor Professor EBTT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, campus Itaberaba, BA. E-mail: penha.alessandra@gmail.com.

 

4  Texto disponibilizado pelo autor (Renato Salgado de Melo Oliveira) uma vez publicado na plataforma zazu.li, atualmente fora do ar.



Categoria: Fotografia.

Técnicas: Fotografia digital (smartphones: iPhone 7 e Samsung J8).

Temática: Abandonos na Universidade.

Composição: 14 fotografias coloridas e modificadas manualmente, que registram espaços abandonados, salas de aula, laboratórios dentro da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Araras, SP.

Impressão: 42 cm x 59,4 cm

 

 

Referências

HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva. 2009.

FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes. 1991.

ORAPPA. Papo de surdo e mudo. ln: O silêncio que precede o esporro. Tom Capone/O Rappa/Wagner Vianna. Rio de Janeiro: Warner Music. 2003. 1 disco sonoro (1:09:58). Faixa 5.

ORAPPA. Vinheta 1. ln: O silêncio que precede o esporro. Tom Capone/O Rappa/Wagner Vianna. Rio de Janeiro: Warner Music. 2003. 1 disco sonoro (1:09:58). Faixa 1.

RODRIGUES, L. O sucateamento e o desmonte da educação pública no Brasil. É preciso resistência dos profissionais da informação e trabalhadores em geral. 21 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://biblioo.cartacapital.com.br/o-sucateamento-e-o-desmonte-da-educacao-publica-no-brasil/> Acesso em: 05. Abril. 2020.