Memória e movimento no espaço da cidade: Para uma abordagem discursiva das ambiências urbanas


resumo resumo

Carolina Rodríguez-Alcalá



Diremos assim, dialogando com as palavras de Dewey referidas no início, que os sujeitos percebem os objetos e acontecimentos do mundo ao redor não a partir de um gesto individual, determinado por estímulos neuropsicológicos, mas de sentidos que estão previamente atribuídos na história, de acordo com as condições políticas, econômicas e culturais das sociedades em que vivem, sentidos esses, nós acrescentamos, que são produzidos em e pela materialidade lingüística. É a esse trabalho de interpretação, afetado pelo político e pelo esquecimento, que chamamos memória discursiva, ou interdiscurso, enquanto conjunto de dizeres estabilizados historicamente numa sociedade dada, que instituem, nas palavras de Pêcheux, um sistema de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas por todos (cf. Pêcheux /1975/ 1988: 162). A percepção sensível não seria, nesse sentido específico, um fenômeno direto, imediato, mas sim mediado por uma interpretação particular, estabilizada numa memória discursiva, na qual os sujeitos se inscrevem de modo não consciente através da língua. A memória discursiva apresenta-se assim, em nosso entender, como uma noção pertinente para operacionalizar teórica e analiticamente o reconhecimento do caráter histórico e sócio-político dos fenômenos perceptivos, tal como é pressuposto nos estudos sobre as ambiências:

 

(...) nossas maneiras de sentir e de qualificar uma situação estariam filtradas pelas injunções sociais relativas ao funcionamento de uma sociedade em seu conjunto.

[(...) nos façons de sentir et de qualifier une situation seraient filtrées par les injunctions sociales relatives au fonctionnement d’une société dans son ensemble.] (THIBAUD 2004, p. 249).

 

Esses dizeres que conformam a memória, entretanto, não representam um conjunto homogêneo, e sim uma unidade contraditória, na expressão de Pêcheux (ibidem, p. 91), constituída por gestos de interpretação (ORLANDI, 2001) heterogêneos, realizados de posições desiguais, assimétricas, antagônicas, chamadas de formações discursivas (FD)[1] (PÊCHEUX, ibidem). Assim sendo, se os sujeitos numa determinada situação conferem sentidos a partir de uma memória comum, partilhada, eles não o fazem (necessariamente) a partir de uma mesma posição, mas de FD

 

[1] Pêcheux se inspira na noção proposta por Foucault, que define as formações discursivas como conjuntos “de regras anônimas, históricas, determinadas no tempo e no espaço, que definem em uma época e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault 1969: 153).