“Cara de empregada doméstica”: Discursos sobre os corpos de mulheres negras no Brasil*
Mónica G. Zoppi Fontana Mariana Jafet Cestari
A publicação destas declaraçõesgerou polêmicas nas redes sociaise fora delas. Antes de apresentar as críticas às declarações dajornalista, sua repercussão e omdesdobramento do caso, discutiremos os efeitos de sentido em torno do enunciado que motiva nossa reflexão.
O que significa ter “cara de empregada doméstica” no Brasil?Como esse sintagma se inscreve nos sentidos trabalhados pelos discursos da “democracia racial”sustentados nas memórias dos discursos escravagista e da colonização,que dissimulam o racismo que organiza hipocritamente as relações sociaise raciaisno país?Que outros sentidos disputam a significação desse sintagma hoje no Brasil?
Dando uma cara à luta pelo sentido
Para iniciar nossa análise vamos descrever dois funcionamentosdiscursivosdessa expressão, ummetafóricoe outrometonímico,inspirados pelas colocações deCourtineeHaroche(1988) no seu livro sobre a história do rosto.De acordo com estes autores,há na cultura ocidental uma tradição de estudos que tomam a fisionomia como seu objeto, o que deu lugara partir da Renascençaa uma série de tratados defisiognomoniaque relacionam o rosto às emoções e a uma codificação social dacivilidade.Para nosso trabalho interessa centralmente retomar a reflexão dos autores que interpretam o nascimento de uma noção decivilidadecomo um novo dispositivo de normalização e divisão/exclusão dos indivíduos na sociedade (e seus espaços de convívio),cujo fundamentojá não se encontraem um princípio de sangue ou herança (como na ordem feudal aristocrática),masemuma “educação dalinguagem”(compreendida em sentido amplo:linguagem do corpo, do gesto, do rosto e do verbo). Nesse contexto, em que os sujeitos sociais são distribuídos no seu valor e nos seus espaços pelos sinais de seus corpos, gestos e fala, surgem os tratados que ensinam acivilidade,para o qual precisam decifrar rostos e corpos na sua linguagem.Os autores mostram comodesde o século XVIo rosto foi perscrutado,codificado e normatizadotanto na sua forma física quantoemsuas expressões, impondo-se o lema “o rosto fala”,ou seja,o corpo exprimiriaa alma, falariasua linguagem.Afisiognomoniatornou-se a “arte do conhecimento do caráter” das pessoas pelos traços da face.Analisando esse percurso,CourtineeHaroche(1988) afirmam que o rosto foiinterpretadohistoricamentea partir dosdois funcionamentosque já mencionamos:
Como metonímia:o rosto é a parteprincepsda cabeça e a cabeçaé a parteprincipaldocorpo;elaé, por contiguidade,a morada da alma. “O rosto é assim metonímia da alma, a frágil porta de sua morada, o acesso – como uma janela