Memória e movimento no espaço da cidade: Para uma abordagem discursiva das ambiências urbanas


resumo resumo

Carolina Rodríguez-Alcalá



– A Praça é importante em si... porque é onde os moradores se encontram, né? (...)   – Olha, os moradores tão conversando... estão na Praça... estão usando o que é deles...

– Aqui é freqüentado pelos moradores?

Moradores... Eu estou mostrando para senhora, porque é um lugar que eu acho bonito...

 

Se partíssemos do sentido de “morador”, de “habitante” como “aquele que mora”, que “reside habitualmente num lugar”, de acordo com as definições que encontramos nos dicionários[1], deveríamos identificar a descrição acima como referente àqueles que residem habitualmente nas imediações da praça, por oposição às pessoas que circulam ocasionalmente por ela. Isso incluiria, como vimos, uma população muito variada de pessoas, entre elas, vendedores ambulantes, homossexuais dedicados à prostituição e “sem teto”, que moram nos edifícios da região, além dos próprios moradores de rua instalados na praça e nas calçadas, alguns deles dedicados à delinqüência. Não é isso, porém, o que acontece, como vemos explicitado na seguinte passagem, na fala do mesmo vendedor ambulante, onde morador exclui homossexual/travesti, ladrão, traficante, independentemente de terem ou não residência fixa no lugar:

 

D – Ahhh a Praça da República é pior, né? Porque... existe... muita droga, entendeu? (...) Muito homossexual (...) é... uma Praça que é... é... um ponto usado... (...) por travesti e traficante, entendeu? (...) Os moradores não podem usar... (...) é perigoso ... porque tem ... muito ladrão de celular, lá... bate carteira, né (...) a Praça da República não é... lugar de uma senhora passear...(...) A Vieira é... pior (...) porque a Vieira parece que tem um ladrão pra cada um viado...

 

Vemos esse mesmo procedimento na conversa de um advogado de classe média (A), morador do bairro, com a entrevistadora (E), na qual moradores se opõe também a vendedores ambulantes (camelôs), identificados à “deterioração” do bairro:

 

A – Eu esperaria que um dia a prefeitura acabasse com isso, aí o centro voltaria a ser o que era... (...) Você mal pode transitar por ali... (...) O maior problema aqui, que pode ser resolvido, é tirar os camelôs (...) com referência esses bares gays que existem na parte da noite, na Vieira de Carvalho (...) só freqüenta lá, quem quer... (...) À noite ali... (...) os moradores daqui nem tomam conhecimento daquilo...

E – Ah, o senhor acha que deteriora em que sentido?

A – Deteriora em todo sentido, porque eles ficam amontoados nas calçadas, não é?

 

Essa tensão entre “ter residência fixa” no bairro, mas “não ser morador”, é perceptível a partir das informações fornecidas pelos entrevistados, como no caso do vendedor ambulante D, que como ele mesmo conta mora no bairro mas é excluído, na fala do advogado A, da categoria de moradores:

E – (...) o senhor mora onde?

D – Eu moro na Rua do Arouche.

E – Ah, o senhor mora aqui perto...

 

 

[1] Baseamo-nos para estas e demais definições lexicográficas a serem citadas em Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição, revista e aumentada (20ª reimpressão). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.