“Cara de empregada doméstica”: Discursos sobre os corpos de mulheres negras no Brasil*


resumo resumo

Mónica G. Zoppi Fontana
Mariana Jafet Cestari



mesmo tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir como uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito conjuntural, politicamente sobredeterminado (idem:157).

 

Este funcionamento paradoxal dos objetos discursivos, atravessados pela luta social e política que produz os sentidos e os modos de interpretação, será objeto de nossas análises. Deste modo compreendemos, ainda com o mesmo autor, que:

 

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante) mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas [e transformadas]). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições etc. mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam, o que quer dizer que elas tomam seus sentidos em referência a essas posições. (PÊCHEUX, 1975:160)

 

 

Acontecimentos discursivos

 

Pêcheux (1983:17) define o acontecimento discursivo como o "ponto de encontro de uma atualidade e uma memória". É um elemento histórico descontínuo e exterior que afeta a memória produzindo ruptura e deslocamentos. Assim, pelo funcionamento da memória no acontecimento discursivo, os sentidos produzidos ao mesmo tempo repetem e deslocam o já-dito, produzindo uma projeção e um retorno dos processos discursivos sobre si mesmos, reconfigurando e desestabilizando as séries de repetição, dando lugar a novas interpretações. Consideramos a aprovação da chamada “PEC das domésticas”[4] como um acontecimento discursivo que afeta a rede de memórias dos discursos escravagista, da colonização e da democracia racial, dando lugar a tomadas de posição e deslocamentos ideológicos, tanto por parte do movimento de mulheres negras e do movimento sindical das trabalhadoras domésticas, quanto das posições patronais representadas massivamente na mídia conservadora. A polêmica em torno da aprovação da lei e sua análise tomariam mais espaço do que o disponível neste artigo[5], porém, a publicação das declarações da jornalista brasileira sobre as médicas

Essas questões são objeto das pesquisas desenvolvidas pelas autoras sobre o surgimento e desenvolvimento do movimento de mulheres negras no Brasil (CESTARI, M. “Olhar o próprio umbigo e enegrecer o feminismo brasileiro ou feministas e antirracistas graças às Yabás”, FAPESP, 2014/03111-0) e sobre a polêmica em torno da PEC 66-2012 (ZOPPI FONTANA, M. “PEC das Empregadas Domésticas”. Contradições de classe, gênero e cor nos discursos sobre “as relações cordiais no lar brasileiro”, Bolsa PQ-CNPq, 308973/2013-5).



[4] A PEC 66/2012 foi aprovada no Senado em 26/3/13 e publicada no Diário Oficial da União como ementa constitucional EMC 72 em 3/4/13; ela amplia os direitos trabalhistas dos empregados domésticos embora não os equipare por completo, dado que alguns precisam ainda de regulamentação para serem efetivamente obrigatórios.

[5] Essas questões são objeto das pesquisas desenvolvidas pelas autoras sobre o surgimento e desenvolvimento do movimento de mulheres negras no Brasil (CESTARI, M. “Olhar o próprio umbigo e enegrecer o feminismo brasileiro ou feministas e antirracistas graças às Yabás”, FAPESP, 2014/03111-0) e sobre a polêmica em torno da PEC 66-2012 (ZOPPI FONTANA, M. “PEC das Empregadas Domésticas”. Contradições de classe, gênero e cor nos discursos sobre “as relações cordiais no lar brasileiro”, Bolsa PQ-CNPq, 308973/2013-5).