Memória e movimento no espaço da cidade: Para uma abordagem discursiva das ambiências urbanas


resumo resumo

Carolina Rodríguez-Alcalá



Foi a racionalização posterior do impacto imediato produzido por essa imagem aquilo que me levou a formular a referida hipótese[1]: o que chocou minha sensibilidade foi a exposição à observação pública, em plena calçada, da intimidade de uma cama desfeita, já abandonada por seu dono após uma noite de sono, como na privacidade de um quarto de dormir de uma casa. O mesmo sentimento foi confirmado a partir de outra imagem, onde vemos roupas jogadas (um casaco e um short) no meio de uma praça pública, como no chão de um dormitório desarrumado, deixadas por alguém que acabou de trocar-se de roupa:

 

Imagem 2

 

A explicação desse estranhamento está na percepção desses vestígios de pessoas que se fixam em lugares públicos, de circulação e encontro, realizando neles atividades íntimas (como dormir numa “cama” ou trocar-se de roupa), fato conflitante em relação a uma determinada memória de ocupação do espaço na qual eu mesma, pesquisadora, enquanto membro dessa sociedade, não deixo de estar inscrita.

A questão que se coloca nesse espaço é que a praça pública, assim como as ruas e as calçadas, de lugares de encontro e de circulação passam a ser, contemporaneamente, lugares de moradia, de habitação, com a tensão que isso produz em relação tanto à concepção arquitetônica do espaço como às normas de sociabilidade estabelecidas. Essas imagens são, nesse sentido, um sintoma da desagregação de fronteiras entre público e privado, resultado de problemas políticos e econômicos mais amplos, que institui a estética, a tonalidade (THIBAUD, 2004) particular desse espaço, qualificado como “decadente” e “deteriorado”. De um lado, no que diz respeito aos equipamentos urbanos, os bancos públicos passam a funcionar como “camas”; as calçadas e outros espaços públicos onde é possível encontrar alguma proteção contra as

 

[1] Não se trata estritamente, portanto, de uma hipótese, entendida como suposição abstrata que se antecipa à análise, conforme definições clássicas; nesse sentido, na AD não trabalhamos com hipóteses, mas com perguntas surgidas no contato com a materialidade do corpus, no ir-e-vir entre teoria e análise que caracteriza os procedimentos discursivos.