Memória e movimento no espaço da cidade: Para uma abordagem discursiva das ambiências urbanas


resumo resumo

Carolina Rodríguez-Alcalá



Sennett, a palavra “público”, além de designar aquilo que está “sujeito à observação pública” e, também, o “bem público”, enquanto “bem comum” da sociedade,

 

na época em que havia já adquirido sua significação moderna (...) significava não somente uma região da vida social localizada à parte do quadro da família e dos amigos íntimos, mas igualmente que esse domínio público incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas.

[à l’époque où il avait déjà acqui sa signification moderne (...) signifiait non seulement une région de la vie sociale localisée à l’écart du cadre de la famille et des amis intimes, mais également que ce domaine public incluait une diversité relativement grande de personnes.] (SENNETT, 1988: 31).

 

“Público” foi constituindo-se, dessa forma, por oposição às noções de intimidade e de família formuladas no interior da ideologia burguesa cristã, que foram delimitando o domínio privado, vinculado, com a emergência do capitalismo, à questão econômica da propriedade (cf. SENNETT, 1988; ARIÈS, 1981, 1991; ARENDT, 1958). Esses sentidos estão na base dos mecanismos políticos, jurídicos e administrativos que incidem na constituição e regulamentação do bem público e da propriedade privada, bem como nas normas culturais, estéticas e morais de civilidade, que ditam quais são os comportamentos adequados em público, no encontro com estranhos na rua, ou em privado, na intimidade da casa, com a família e os amigos próximos.

Refletir sobre a dinâmica das ambiências numa praça pública significa, portanto, tomar como objeto um espaço produzido (dividido) a partir dessa memória histórica[1], conformada por esses diferentes elementos imbricados, que ilustramos sinteticamente no seguinte quadro:

praça (rua/calçada)

casa (apartamento)

 

espaços públicos

(bem comum)

¯

para circular, encontrar-se

 

normas de comportamento público

(com estranhos)

 

 

 

espaço do pedestre (automobilista/(moto)ciclista)

 

espaços privados

(propriedade privada)

¯

para morar, habitar

(assentar-se, fixar-se)

 

normas de comportamento privado

(com familiares / amigos íntimos)

 

espaço do morador

(proprietário/inquilino)

 
 

[1] Para compreender a historicidade desse modo específico de configuração espacial e social basta pensar como a distinção público/privado e sua vinculação à família (à intimidade), associada por sua vez à moradia individual e à propriedade privada, é absolutamente estranha, por exemplo, para certas sociedades indígenas americanas, como a dos guaranis, que tradicionalmente viviam em moradias coletivas, de grupos de várias famílias, sem divisórias internas. Uma das questões que mais chocava a sensibilidade “ocidental” era o exercício da sexualidade exposto à “observação pública”, sem a proteção do manto da intimidade, o que levou os missionários a introduzirem divisórias internas a essas moradias, por questões morais.