“Cara de empregada doméstica”: Discursos sobre os corpos de mulheres negras no Brasil*


resumo resumo

Mónica G. Zoppi Fontana
Mariana Jafet Cestari



 

Cara de empregada doméstica”: objetos paradoxais e luta ideológica

No início desse trabalho definimos, a partir da teoria da Análise de Discurso, o funcionamento paradoxal dos objetos discursivos como um efeito das contradições de sentido produzidas pela luta ideológica. Como diz o autor ao qual nos filiamos teoricamente:

No terreno da linguagem, a luta ideológica de classes é uma luta pelo sentido das palavras, expressões e frases, uma luta vital para cada uma das classes que se confrontam ao longo da história até o presente (PÊCHEUX, 1978[2011], p.273).

 

A análise dos processos metafóricos e metonímicos que significam a expressão “cara de empregada doméstica” nos permite avançar nessa reflexão. Como demonstramos, esta expressão se caracteriza, na sua materialidade discursiva complexa, por condensar na linguagem e na imagem processos discursivos que se inscrevem em memórias antagônicas: os sentidos das práticas escravistas inscritos como discurso da democracia racial e os sentidos das práticas de resistência e das lutas do movimento negro, presentes como crítica social e apelo à mobilização política. Para interpretar as relações de força entre essas posições ideológicas recorremos novamente a Pêcheux, quando define o funcionamento dos objetos discursivos paradoxais.

A singularidade dessas lutas de deslocamento ideológico, que ocorrem nos mais diversos movimentos populares, consiste na apreensão de objetos (constantemente contraditórios e ambiguos) paradoxais, que são, simultaneamente, idênticos em si mesmos e se comportam antagonicamente em relação a si mesmos [...] Esses objetos paradoxais (com o nome de Povo, Direito, Trabalho, Gênero, Vida, Ciência, Natureza, Paz, Liberdade) funcionam em relações de força móveis, em transformações confusas, que levam a concordâncias e oposições extremamente instáveis.” (PÊCHEUX, 1983[2011], p.115)

 

Na luta ideológica em torno da expressão “cara de empregada doméstica”, os sentidos que inferiorizam a cara e o corpo das empregadas domésticas, historicamente naturalizados desde a época da escravidão, foram desestabilizados e ressignificados pelo acontecimento discursivo da aprovação da chamada “PEC das domésticas”. A contestação pelo movimento de mulheres negras da expressão “cara de empregada doméstica fez a denúncia do racismo nela presente e permitiu incorporar novos sentidos à circulação e à interpretação dessa designação, inscrevendo-a numa memória que a investiu de uma valoração ideológica positiva, interpretando-a como símbolo de uma memória de luta e resistência. Assim, como vimos nas análises, a empregada doméstica se torna a metáfora viva de um sujeito coletivo politicamente mobilizado.