“Cara de empregada doméstica”: Discursos sobre os corpos de mulheres negras no Brasil*


resumo resumo

Mónica G. Zoppi Fontana
Mariana Jafet Cestari



 

Como acontecimento discursivo, a aprovação da “PEC das domésticas” rompe com uma série de repetições, desestabilizando sentidos já naturalizados historicamente; assim, produz uma ruptura na memória discursiva dominante e abre espaço para uma nova série de formulações que colocam em circulação sentidos silenciados ao longo dos anos de dominação. Não é de hoje que se denuncia a continuidade do discurso e de aspectos das relações escravagistas nas práticas sociais que envolvem o trabalho doméstico assalariado. Na história das múltiplas práticas de resistência protagonizadas por mulheres negras, destacamos os movimentos das trabalhadoras domésticas desde meados dos anos 1930 e as organizações feministas de mulheres negras a partir dos anos 1970. Aliás, uma das regularidades do movimento de mulheres negras é pautar a continuidade da situação vivida entre as antepassadas escravizadas e as trabalhadoras livres, como consequência da escravidão, mas também como manutenção do racismo, como o provam os textos de Léila Gonzalez, dos quais citamos um artigo publicado no jornal feminista Mulherio:

Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossas antepassadas: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere muito da “escrava do eito” de ontem; a empregada doméstica não é muito diferente da “mucama” de ontem; o mesmo poderia dizer-se da vendedora ambulante, da “joaninha”, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje, e “escrava de ganho” de ontem. (“E a trabalhadora negra, cumé que fica?, Lélia Gonzalez, Jornal Mulherio, ano 2, n.7, 1982, p.9)

 

Esta continuidade histórica de práticas de exploração e de um discurso que as significou pelo viés de uma ilusória inclusão cordial foi objeto de estudo também na academia, que se posicionou face à aprovação da PEC das domésticas, intervindo ativamente na produção de sentido para o acontecimento discursivo. Trazemos um recorte do artigo de Ricardo Antunes, professor titular em Sociologia do Trabalho, que analisa “A revolta da sala de jantar”, numa referência clara à gravura de Debret e às interpretações filiadas ao discurso da democracia racial que tem no famigerado livro Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre (1933) um importante ícone:

Se a história é singular em suas distintas épocas, há algo de similar ocorrendo no Brasil do século 21, após a ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas. Nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas. As classes dominantes sempre exigiram as vantagens do urbanismo com as benesses do servilismo, com um séquito de cozinheiras, faxineiras, motoristas, babás, governantas e, mais recentemente, personal trainers