“Geografias públicas” da sociabilidade juvenil do/no movimento hip-hop


resumo resumo

Lucas Renato Adami
Almir Nabozny



Introdução

A compreensão da relação da sociabilidade juvenil do movimento hip-hop com os espaços públicos urbanos iniciou-se através da realização de trabalhos de campo exploratórios com fins de aproximação com os sujeitos[1] da pesquisa. Os jovens que compuseram a pesquisa são indivíduos de idades que variam entre 15 e 29 anos[2]. A pesquisa atentou-se com maior esforço nos ativistas no movimento, ou seja, sujeitos que produzem músicas, eventos, etc., centrando-se no graffiti e no rap[3].

Como metodologia desenvolvida, destaca-se a observação participante, abordada por Turra Neto (2011) como “arte” de desenvolver interações com os sujeitos que são investigados, no caso em tela, os integrantes do movimento hip-hop. Através da iniciativa de fazer parte do cotidiano da sociabilidade juvenil e estar presente em eventos representativos do movimento, estabeleceu-se assim uma relação face-a-face com os observados por meio da vivência de suas experiências. Neste caso, o observador passa a compor o contexto socioespacial pesquisado.

Como procedimentos investigativos, realizaram-se registros fotográficos, anotações em diário de campo, e interpretação dos graffitis, considerados aqui como discursos. Além disso, as opiniões dos sujeitos foram, de algum modo, reveladas durante a realização de entrevistas narrativas, sendo um instrumento valioso na investigação de fenômenos simbólicos, caracterizadas como entrevistas em profundidade, apresentando um campo aberto ao entrevistado e não contendo uma estrutura prévia. O objetivo principal deste tipo de entrevista é apreender a versão particular que os sujeitos constroem em relação ao objeto, preocupando-se com a forma com que o sujeito conta os fatos e organiza seu discurso enquanto narrativa, desta forma apreendido por Jovchelovitch (2000), que apresenta também três etapas desta técnica: a iniciação, a narrativa e por fim o questionamento.

Outra forma de produzir um contexto interpretativo em que o sujeito reflete sobre a sua sociabilidade juvenil foi conduzida através da técnica de entrevista com grupos focais, possibilitando mais reflexões sobre uma mesma temática em um “contexto de debates” entre os grupos de rappers. A constituição dos grupos focais modelou-se sobre as diversidades dos representantes do movimento hip-hop, expresso por indivíduos que residem no centro e na periferia do espaço urbano de Ponta Grossa-PR, e por sujeitos que foram identificados previamente com objetivos e visões sociais de mundo diferentes. Assim, segundo Jovchelovitch (2000), os grupos focais constituem-se de categorias sociais diferentes selecionadas de acordo com sua relevância para o objeto de investigação. Nesta técnica, a diferença entre vozes apresenta modos particulares como pessoas diferentes posicionam-se no mundo e ao mesmo tempo posicionam o mundo em seu universo representacional.

Torna-se importante afirmar o caráter qualitativo de todas as pesquisas que resultam neste artigo, o que Bauer e Gaskell (2008) consideram como uma abordagem não fixada em números, contando com a leitura a partir de interpretações das realidades sociais. Ao todo, o processo de investigação contou com os campos exploratórios e sistemáticos. Alguns entrevistados concordaram em apresentar sua identidade, tais como: Joma Mc e Lincoln Mc (Integrantes do grupo Insônia Mc’s); Guinomon Mc (Integrante do grupo Forma Única); Twoclok Mc e Bruno Mc (Integrantes do grupo 100$Crew); Grafiteiros Luidhi, Leboard, Jackson; já outros que cederam entrevistas narrativas, preferiram não “tornar pública” a sua identidade. Sendo assim, totalizaram-se 14 entrevistas, das quais sete foram realizadas por meio de interação em redes sociais, gerando 240 minutos de áudio em entrevistas diretas.

O movimento hip-hop e as representações do espaço público

Entende-se o movimento hip-hop como fenômeno de características translocais. Todavia, na literatura especializada, registra-se que, no início dos anos 70:

O hip-hop emergirá exatamente neste contexto de conflitos de gangues nos guetos americanos e de constituição de formas de luta dos negros em diáspora. Culturas distintas e fragmentadas [...] buscando romper com os conflitos de gangues, com as representações espaciais construídas pela temática do underclass e criar práticas sociais de encontro e da celebração pela cultura irão forjar os primeiros elementos do hip-hop. (OLIVEIRA, 2006, p.47)

Neste artigo, não se atribui uma tradução literal ao termo hip-hop, apenas considera-se como “o movimento do quadril”, legitimando, mais ainda, a complexa esfera de representação, elementos e características que compreendem aquilo o que é o hip-hop. Neste contexto, deve-se atentar para os significados das estruturas deste movimento. Um dos principais nomes de referência histórica do hip-hop é o Dj (disc jokey – “tocador de disco”) e produtor musical, Afrika Bambaata, o que define o Graffiti (grafite) como a expressão plástica desta representação coletiva, o Break (dança) e o Rap (rhythm and poetry – “rima e poesia, ou ritmo”) como a expressão musical.

Aprofundando-se nas linguagens investigadas na pesquisa, o rap compreende a produção textual poética e considerada o principal elemento do movimento, com origens voltadas para a África Ocidental e Jamaica, em suas diferentes versões, como apreendido por Diógenes (1998, apud LAITANO, 2008). No interior deste elemento, destacam-se dois agentes: o Mc (mestre de cerimônia) e o Dj (disc jokey), sendo que o primeiro volta-se para a introdução da apresentação e o segundo pela introdução musical, caracterizado pelos scratches (“vai e vem das mãos” – sobre o disco). O graffiti por sua vez, possui uma linguagem explícita para o leitor da imagem, passível de comercialização ou de utilização estética, ao contrário da pichação, por vezes confundida com o graffiti, mas que introduz o leitor num código visual não-explícito, muitas vezes com significado oculto. As raízes históricas desta expressão plástica voltam-se para Porto Rico, onde o graffiti possuía a função de demarcar territórios de atuação de gangues, como abordado por Laitano (2008).

O graffiti é um fenômeno concomitante ao processo de desenvolvimento do espaço temporal desigual, representado pela globalização econômica (HARVEY, 2004; SANTOS, 2006) e que se intensificou nos últimos trinta anos do século XX. Oriundo da migração e da hibridização cultural de

[...] povos africanos e latino-americanos, marcadas pela intolerância, pelo preconceito e pela segregação social em território norte-americano, esse fenômeno obteve uma grande difusão em todo o mundo, no ocidente e no oriente, nas últimas décadas, especialmente sob a forma da cultura hip-hop. [...] O desenvolvimento tecnológico e a popularização dos meios de comunicação tiveram um papel significativo na propagação das manifestações políticas e culturais da contracultura a partir dos anos 60/70 (na qual o graffiti e o hip-hop têm suas origens). (TARTAGLIA, 2014, p.17-18)

Como espaço público, é também composto por uma representação ideal de “convivência pública” materializada em um contrato social. Nesse sentido, torna-se importante registrar: o graffiti e a pichação são reconhecidos pelo Estado Brasileiro de forma distinta. O primeiro normalmente é acompanhado de autorizações para a realização do ato; já a pichação, no Brasil, é qualificada como crime ambiental, enquadrada na Lei n° 12.408, de 25 de maio de 2011.

Já nos EUA, o hip-hop volta-se para as disputas étnico/raciais em bairros identificados como guetos, especialmente em Nova York, sendo uma forma de afirmar a existência individual ou coletiva do movimento que se atribui contornos reivindicatórios. Os meios de expressão do movimento hip-hop, como defendido pelos jovens entrevistados, funcionam como uma “válvula de escape” pela qual os jovens revelam, desabafam, expressam, representam e marcam as suas opiniões ou críticas a algum fato, muitas vezes, em torno de experiências de seus espaços vividos, e principalmente frente a questões políticas que provocam discussões na sociedade de modo mais amplo.

A principal espacialidade apropriada pelo movimento compreende os espaços públicos urbanos do município de Ponta Grossa-PR, seja esta apropriação tangível ou intangível, efêmera ou perene, na qual a presença de um graffiti transforma os cenários, as paisagens. A configuração teórica em torno de espaço público possui diferentes apreensões, principalmente em termos de uma esfera abstrata e imaterial.

Na base desse problema está fundamentalmente um uso que separa dois tipos de compreensão desse tipo de espaço: no primeiro, há uma referência concreta a uma área física (praças, ruas, jardins, equipamentos, etc.) e uma preocupação prática de planejamento urbano; já no segundo tipo, a referência é a um espaço abstrato, teórico, fundamento da vida política e democrática, objeto de análise da ciência política. (GOMES, 2012, p.19)

Em termos de escalas, Gomes (2012) observa que o espaço público não deve ser concebido como oposição ao privado, devendo-se levar em consideração os estatutos do espaço, tais como as representações de uso coletivo, bem comum, etc., a sobreposição de um estatuto sobre o outro – fazendo referência a hierarquia de direitos e deveres, ao contrato social que pretende controlar a liberdade das ações, por meio do controle do espaço.

[...] Aliás, ao contrário, os locais públicos são sempre objeto de uma explícita legislação que dispõe sobre as condições de acesso, o qual é, desse modo, normatizado e nunca indiscriminado. De qualquer maneira, não seria a forma de acesso a esses locais o que delimitaria o direito público ou privado das instituições, nem mesmo a ideia largamente difundida de que o que é privado é pago em oposição à gratuidade de público. (GOMES, 2012, p.23)

As questões sociais ganham contornos especiais nos espaços públicos, os conflitos transformam-se em debates e criam-se cenários sobre a problematização da questão social vinculada ao espaço. Na dimensão material do espaço, a rua compreende uma unidade fundamental, com infinitas possibilidades de “ser” neste espaço. A rua possui forte ligação com o movimento hip-hop, compondo-se de um sistema de signos e linguagens, lugar de diálogos permanentes e renovados, como apreendido por Gomes (2012).

O espaço público é o lócus em que a individualidade deve conviver com um universo plural, coletivo, reafirmando o contrato social que fundamenta a liberdade do “agir”. O movimento hip-hop é uma identidade social coletiva que move discussões em torno de suas “autoidentificações”, passível de variadas interpretações. A possibilidade de unir a forma material à esfera abstrata da ação política, como afirmado por Gomes (2012), potencializa a análise geográfica do hip-hop associado ao espaço público.

O movimento hip-hop e os espaços de representações públicas

Outro aspecto relevante são as redes de representação que compõem o “público” do espaço: além da materialidade condicionada pela apropriação – como a presença de um graffiti (aspecto empírico) – há aspectos intangíveis presentes, mas que não são passíveis de uma percepção imediata. “Esses espaços precisam ser cognitivamente “organizados” e decodificados para serem incorporados à memória e às estruturas de representação, e contém objetos e eventos que estão fora do alcance da apreensão imediata” (SERPA, 2007, p.172).

Em geral, como resultados dos trabalhos de campo, as espacialidades mais vivenciadas/apropriadas são pistas de skate, complexos esportivos e praças. Serpa (2007) apresenta uma apreensão sobre a representação do espaço e do espaço de representação firmados sobre a ligação do espaço percebido, das práticas espaciais e sobre os próprios espaços de representação, firmando uma ligação concomitante entre as perspectivas. O espaço público então se apresenta como o último espaço para construção de simbolismos complexos. Nesta perspectiva, Serpa (2005) elenca que a não incorporação do percebido ao vivido deixa sem espaços aqueles grupos ou indivíduos sem acesso às estruturas de poder que produzem as “representações do espaço” (p.223), o concebido.

As concepções de Serpa (2007) fundadas em Henri Lefebvre (1901-1991) problematizam a ideia do “Direito a Cidade”. Deste modo, atentam-se para os complexos processos cognitivos presentes e modeladores deste espaço de representação, a partir da vivência e experiência, do percebido ao vivido, de modo a se contemplar também as bases estruturais de representação dos agentes hegemônicos da sociedade. Serpa (2007) busca desenvolver uma Geografia das representações sociais como a possibilidade de se construírem e analisarem visões de mundo a partir de grupos sociais, e a partir deles, a construção de identidades e representações (fenomenologias).

Historicamente, o movimento hip-hop caracterizava-se por ser representativo das classes sociais economicamente empobrecidas, espacializadas nos guetos norte-americanos. As transformações nos/dos locais onde o hip-hop se difundiu ocorrem de maneira particular, as entrevistas realizadas conduziram a uma representação (conforme a escala analisada) segundo a qual o hip-hop articula diferentes classes sociais, rompendo com as representações sociais que “estigmatizam” o movimento hip-hop a determinada diferença em espaço (escala da periferia, pobres, negros, entre outros atributos sinonimizados às ideias de marginalidade social).

Portanto, o espaço é construído, de acordo com Souza (2008), como cena pública, um campo potencial de interações entre grupos sociais, com demandas e conflitos publicizados em “base” material que permitem a existência deste espaço. Os espaços de representação contêm a soma dos espaços concebidos e vividos a partir de diferentes grupos sociais, inserindo o movimento hip-hop nos domínios e formas de conceber este espaço.

Os procedimentos metodológicos e os conceitos renovados de uma Geografia das Representações Sociais podem ser a chave para o entendimento dos complexos processos cognitivos que resultam da tensão entre percepção e cognição, vivência e experiência, espaços concebidos e vividos. Uma Geografia assim pode, sobretudo, explicitar as relações entre cultura e poder nos processos de apropriação social e espacial em diferentes escalas e recortes espaciais, assim como as múltiplas estratégias cognitivas dos diferentes agentes e grupos produtores de “espaço”. (SERPA, 2005, p.230)

Entre as concepções arroladas, afirma-se neste artigo que o espaço público não pode ser concebido apenas a partir de sua esfera abstrata de responsabilidade jurídica do Estado, mas também a partir das representações sociais que configuram identidades nestes espaços, legitimando a importância da compreensão do teor público desta espacialidade por completo, considerando-se a relação subjetiva entre o espaço e a representação. Assim como, de forma mais ampla, concebe-se que “O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e de sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 1999, p. 66).

O espaço percebido e concebido

O espaço geográfico e a sociabilidade juvenil possuem relações com as trajetórias do movimento (tempo) configuradas pelas memórias e espaços vividos e articuladas nas visões sociais de mundo dos sujeitos, propiciando processos de autoidentificações do/no movimento firmado por imaginários urbanos (SILVA, 2001). A relação entre sociabilidade juvenil e o movimento hip-hop é renovada, fluída, etc., na medida em que agrega novos integrantes. Contudo, os mesmos são também socializados no movimento por meio do compartilhamento de visões sociais de mundo, experiências vividas, entre outros valores, que constitui aos jovens possibilidades de expressão do movimento hip-hop como forma de serem ouvidos pela sociedade em seu todo, usando dos espaços públicos como palcos de ações.

As definições de identidade da sociabilidade juvenil referem-se a práticas, espaços e tempos vividos – relações espaço temporais, como elencado por Turra Neto (2011). O autor provoca atenção também para as identificações dos jovens com o movimento social pertencente, através de um processo no qual se busca ouvir os jovens em diferentes contextos socioculturais para alcançar a forma de pensamento destes indivíduos com relação à cidade e ao cotidiano ao seu redor. Desta forma, Turra Neto (2011) destaca que a principal característica de uma sociabilidade juvenil expressa-se através da relação destes jovens com o movimento e com a sociedade em seu todo.

O espaço também é composto por estes sujeitos e suas ações, provocando uma dupla interpretação sobre os espaços públicos. Serpa (2005) apreende ainda que o espaço percebido está relacionado aos objetos e aos fenômenos imediatos, necessitando de elaborações simbólicas, este é o campo dos perceptos, embora já havendo aí o início da incorporação dos objetos e dos fenômenos às estruturas cognitivas. O autor ainda complementa que o espaço concebido é simbólico e carece de perceptos, buscando incorporar estruturas cognitivas sem legitimação de práticas espaciais cotidianas, exercendo influências nos espaços de representação. Estas espacialidades são “espaço das mediações e da interlocução entre o percebido e concebido. É também o espaço vivido dos conflitos e das lutas” (p.22).

As representações espaciais, sejam elas materializadas ou intangíveis, podem construir identidades fundadas nos processos de uso de espacialidades com base em suas características, um modo de conceber o espaço pelos indivíduos, e que, pela autoidentificação, constrói uma coletividade, legitimando um processo de representação a partir do indivíduo para o espaço. O espaço é caracterizado não somente pelo abstrato, mas um por uma rede de relacionamentos, fluxos de informações, laços de pertencimento, relações entre diferentes grupos sociais, destacando-se assim os espaços públicos como um referente em que se estabelecem as relações articuladoras das identidades de grupos, configurando o que Gomes (2006, 2012) denomina de modos de ser no espaço.

Nesta perspectiva, a identidade hip-hop corresponde a uma expressão do espaço, legitimada principalmente pela relação com a “rua”, um termo voltado para o público, no qual se defende uma liberdade de expressão, um espaço modelado pelas ações da sociedade. Essa discussão é também notada a partir das entrevistas, elencando-se que o movimento hip-hop nasceu das “ruas” e representa as mesmas. As ruas fundamentam unidades de significados, estruturam eventos e estão atreladas a uma ampla concepção de circulação que inclui – movimentos (SANTOS e VOGEL, 1985).

O espaço pode representar o hip-hop a partir das representações do movimento legitimadas por uma materialização do processo de apropriação sobre os espaços públicos – a exemplo da presença de graffitis. Laitano (2008) complementa esta abordagem através da perspectiva de como os sujeitos constroem o espaço no seu cotidiano, e tal tarefa é executada intelectualmente pela forma como os grupos também efetuam leituras do espaço, logo como esses sujeitos transcrevem territórios e lugares nas suas “ações estéticas e artísticas” (graffitis e letras de músicas).

O movimento hip hop e o espaço produzido

Nos estudos em Ponta Grossa-PR, a reprodução materializada do hip-hop remete a diferentes usos do espaço, com maior incidência nas áreas periféricas afastadas do centro intra-urbano. Tal fato se estabelece pela disposição de praças e de complexos esportivos, que são equipamentos urbanos formados por um ginásio poliesportivo, academia da terceira idade (aparelhos para exercícios físicos), parque para as crianças e alguns casos contando com “áreas verdes” (originalmente são construídos nas cores cinza e ‘tijolos à vista’, com cobertura azul – Figura 01). Nestes locais, são expressivas as marcas espaciais de graffitis.

Figura 01 – Complexo Esportivo localizado na Vila 31 de Março – periferia leste da cidade. Autoria: ADAMI, 2015.

Neste caso, a periferia compreende uma regionalização cotidiana – escala da diferenciação espacial socialmente produzida (SMITH, 2000) – localidade em torno de uma centralidade, muitas vezes compreendida em razão da concentração de renda da população espacializada em um determinado local (o centro dinâmico/a periferia pobre). Todavia,

[...] a periferia não é somente uma espacialidade que não alcançou o tal “desenvolvimento”, pois que a modernização não fora suficiente para constituí-la à semelhança – e imagem, já que tratamos aqui da Geografia -, mas uma forma analítico-sintética [...]. Esta – e o espaço no sentido mais amplo – foi condição, meio e produto da produção propriamente capitalista. Note-se que esta não eliminou de chofre outras formas, até porque delas necessitou para formar o patrimônio e propriedade e capital propriamente dito num contexto que não ainda o da vigência das condições da reprodução ampliada. (ALVES, 2007, p. 200)

Assim, ao romper-se com uma análise dicotômica e isolacionista (centro X periferia), seja na escala macro da acumulação capitalista ou na escala do intra-urbano, compete a apreensão do espaço público como um espaço de representação ligado ao movimento hip-hop, em que uma “forte expressão da/na periferia” é estabelecida por uma forma de manifestação como um graffiti, mas que também se refere a uma relação geográfica do sujeito com o ambiente e a sociedade, como defendido por Tartaglia (2014). O uso cotidiano do espaço não é necessariamente legitimado pelo graffiti primariamente. A presença “em grupos” nos locais públicos, a frequência, etc. são notadas nas pesquisas como fundamentais na representação do hip-hop, e o espaço público configura escalas de diferenciação espacial que remetem ao próprio corpo dos sujeitos com suas vestimentas singularizadoras (bonés, camisetas longas, bermudas e tênis, etc.), ou seja, seu caráter estético.

A sociabilidade juvenil configura uma amálgama do movimento hip-hop, pois trata-se de uma coletividade cuja a sua representação social é fundamenta no uso dos espaços públicos como, por exemplo, a constante presença de jovens próximos à Estação Arte[4] – centro da cidade. A partir da relação destes jovens com o espaço, constroem-se laços afetivos (firmados nos imaginários dos sujeitos), atribuindo novas interpretações a espacialidade. A Estação Arte, há alguns anos, abrigava batalhas entre bboys – dançarinos de break e rappers – cantores de rap, que caracterizavam a identidade daquele espaço pelo ato de apropriar-se do local, sem nada que primariamente caracterizasse aquele espaço como palco para manifestações do movimento hip-hop. Nesta questão, a subjetividade contida nas manifestações do movimento hip-hop encontra-se intimamente ligada à sociabilidade juvenil e ao espaço.

A subjetividade construída dentro do Movimento hip-hop é marcada pela existência de ‘amigos’ presos, mortos ou drogados [...]. A valorização de si, da família, do lugar em que moram, das raízes étnicas também é constituinte da subjetividade a qual é construída em rede, e que explicita as redes de significação onde esses jovens se inserem, espaços de significação que os sujeitos constroem no cotidiano e que especializam o mundo vivido. (LAITANO, 2008, p. 310)

Muito se discute a respeito da maturidade dos indivíduos do movimento, sendo no caso de estudo a sociabilidade juvenil, um grupo de indivíduos, que, como defendido pelos próprios entrevistados, encontra-se em constante transformação, jovens que com o passar do tempo, com o hip-hop e com seu ativismo dentro do movimento, amadurecem suas ideologias (entendidas não como falsa consciência, mas como visão social de mundo), construindo, assim, através de experiências e espaços vividos, novas concepções que partem de um indivíduo e ganham valores de uma representação coletiva – construindo trajetórias geográficas.

Marcas espaciais do movimento hip-hop

Aprofundando-se nas marcas espaciais oriundas do hip-hop, identifica-se o tema da visibilidade, que permeia a relação entre o graffiti e a paisagem urbana. Sendo assim, a visibilidade compreende um fator influente na determinação de espaços e na realização da grafia, pois a visibilidade está ligada à expressividade do graffiti, extrapolando a ideia primária da realização da arte visual por estilo de vida, prazer ou crítica. Em específico, o graffiti pode estar associado à “comercialização”, as revitalizações urbanas, etc., em que

Esses sujeitos passam a fazer o uso da paisagem imprimindo suas marcas como forma de representação de suas aptidões, coragem e individualidade, numa espécie de comunicação informal e espontânea com o restante das pessoas que veem suas grafias, mas principalmente com aqueles que compartilham dessa identidade (e territorialidade). (TARTAGLIA, 2014, p.103)

Quando está se referindo a uma espacialidade, que não é pública na acepção jurídica vinculada à administração republicana do Estado, pode-se atribuir à mesma a interpretação/concepção de pública a partir do momento em que o grafiteiro, ou outro evento, apropria-se daquele espaço. Ancora-se a esta discussão a relação do movimento com o espaço, na qual é defendida por parte dos ativistas do movimento hip-hop uma preferência por espaços onde a visibilidade é maior em torno da própria grafia, onde haverá maior impacto. Entretanto, esta perspectiva por vezes foge daquela apropriação de determinado espaço, em razão da presença já materializada de alguma forma física ligada ao movimento – é o caso da presença de uma pista de skate em uma praça, por exemplo, o que provoca a frequência cotidiana de “adeptos” do hip-hop.

A visibilidade parte da representação do movimento no espaço, sendo que a representação compreende um dos passos do processo de apropriação do espaço e que se legitima através da materialização da ação. A materialização pode ser exemplificada pela presença de graffitis, mas também através da realização de eventos promovidos como forma de contato com a sociedade, buscando contemplar nestes eventos todas as linguagens do hip-hop: rap, graffiti, break e o Dj. Estes eventos, por vezes, são organizados pelos próprios ativistas do movimento, mas também, em alguns casos, com o apoio de instituições públicas e particulares, em que as ações civis (documentação, saúde, lazer, etc.) englobadas são mais numerosas, atribuindo-se assim um teor de evento sociocultural.

O graffiti e a música compreendem as marcas espaciais com variados objetivos, indo além do ato de “cantar uma música” ou “grafitar uma parede”, como pode ser visualizado no trecho (a seguir) de entrevista que reflete grande parte da opinião dos entrevistados:

Graças a Deus a maioria dos caras tão passando uma mensagem positiva, e tem tido bastante gente que se identifica com a ideia. E não adianta, nós é igual mano, todo mundo é igual tá ligado? Alguma ideia vai bater mano, seja no jeito que a gente se veste, nas ideias entendeu? Seja da onde que veio, o que – que a gente tá falando, os moleque vai se identifica, vai achar aquilo da hora, vai querer participar, entendeu? E provavelmente vai tirar o cara de uma outra ideia torta que tava. Enfim, eu acho que todo mundo tem que participar, não só pelas ideias, mas também pra fazer parte de... as vezes o cara quer aprender a dançar... aquilo ali pode virar a vida dele entendeu? [...] Pô... tinha uns eventos de break que rolava alí na Estação (Estação Saudade – Centro) que era foda, tá ligado? E movimentava, a galera curtia, e é cultura né mano! Inspirar cultura e tá passando pra frente sempre né. (TWOCLOK Mc – Integrante do grupo ‘100$Crew’. Entrevista realizada em 11 de maio de 2015 – entrevista narrativa).

Os trabalhos de campo sinalizam como objetivos semelhantes entre os sujeitos estudados a luta pelo respeito ao hip-hop e também pelo reconhecimento em torno do movimento social, como representação coletiva (uma cultura, o modo de ser no espaço). Os eventos e manifestações espaciais organizados na periferia da cidade são meios de transformações públicas, sendo, assim, uma forma de apropriar-se de determinados espaço públicos a partir da materialização espacial do movimento e das composições intangíveis presentes, como laços de pertencimento e redes de comunicações entre diferentes grupos.

Os principais eventos da cidade acompanhados foram: Graffiti Cor & Ação, hip-hop na Estação, Batalhas de Rima do Ambiental. Os eventos menores, realizados na periferia, não devem ser apreendidos de forma a defender que a sua gratuidade é o que legítima o contato de ‘público’ com a ‘rua’, mas sim o contato promovido entre o movimento e a sociedade local, desfavorecida, muitas vezes, de ações sociais que se restringem ao centro.

Através das letras musicais, estabelecem-se provocações aos indivíduos em torno de experiências vividas, sejam elas exemplificadas pelo uso de drogas, criminalidade, visões de mundo, mas também por reflexões que enfatizam que o ‘ser da rua’ não é representativo de pobreza ou crime, mas sim de uma forma de ‘ser no espaço’ ao se compartilharem histórias de vidas muitas vezes semelhantes.

As mensagens trazidas pelo movimento hip-hop são também provocações e geram debates internos. Essas diferenças podem ser notadas quando se analisam as entrevistas dos principais integrantes dos grupos de rap mais “conhecidos” da cidade: Twoclok Mc do grupo ‘100$Crew’, Lincoln Mc componente do grupo Insônia Mc’s e Guinomon integrante do grupo Forma Única. Os respectivos sujeitos residem em diferentes áreas da cidade, entre periferia e centro, e elencam em suas mensagens diferentes temas, desde críticas político-sociais até reflexões de vida e relatos de experiências que ganham contornos de ‘modos de ser no mundo’.

É comum, em meios de expressão como o graffiti e a música, que os sujeitos que promovem a ação tenham interesses financeiros como objetivos; há aqueles que defendam a ideia de manifestar-se em prol de um estilo de vida, mas atentando-se para a oportunidade de fazer daquela forma de expressão, do hobby, uma possibilidade de “sustento” de “ganhar a vida” em casos de “sucesso das manifestações culturais”. Em geral, os rappers locais veem na música uma forma de transmissão de mensagens para a sociedade em geral, uma “válvula de escape” que se articula ao movimento como um meio pelo qual os jovens buscam ser ouvidos e notados na sociedade. Alguns rappers iniciam suas trajetórias temporais no movimento, realizando shows e apresentações de forma gratuita e posteriormente buscam gravadoras musicais, entre outros aspectos “profissionalizantes”.

Portanto, o espaço público tanto constitui (marca, grafia) o enredo das músicas e os processos das apresentações dos rappers como o “estar-presente” pelo movimento hip-hop pode atribuir a interpretação de “público” a determinados espaços, transformando-os a partir do momento em que a materialização excede um determinado espaço público (praça, complexo esportivo, etc.) e passa a atingir muros ou outros objetos como escolas e associações, quando estas possuem teor público a partir de sua razão social e quando pertencentes à administração política da cidade.

Manifesta(ação) e representa(atividade)

As manifestações materializadas em espaços, como os descritos anteriormente, estabelecem uma ligação com as origens do maior evento local de graffiti, e que no ano de 2015 atingiu seu 4° encontro. O Graffiti Cor & Ação contou desta vez com mais de 1 km de muro a ser apropriado pelo movimento, em torno da área da Associação dos Deficientes Físicos de Ponta Grossa, localizada na Vila Shangrilá, periferia oeste da cidade.

Os demais encontros do Graffiti Cor & Ação foram realizados no Colégio Estadual General Osório, Hospital São Camilo e na Associação Recreativa Homens do Trabalho respectivamente. Este último espaço citado excede as características em torno do teor público dos locais, pois corresponde a um clube particular, mas que em contato com os organizadores do evento, possibilitou-se a realização da terceira edição, estabelecendo uma apropriação de aproximadamente 60 metros de muros, transformando assim a paisagem e atribuindo novos olhares interpretativos para o local (ver Figuras 02 e 03).

Figura 02 – 3° Graffiti Cor & Ação, realizado em 2014 na Associação Recreativa Homens do Trabalho. Bairro Oficinas – periferia sul da cidade. Autoria: ADAMI, 2015.

Figura 03 – 4° Graffiti Cor & Ação, realizado em 2015 na Associação dos Deficientes Físicos de Ponta Grossa. Vila Shangrilá – periferia oeste da cidade. Autoria: ADAMI, 2015.

O “estar-presente” não se estabelece somente pela concretude e a materialização espacial propriamente dita, mas também pelas cognições e percepções (SERPA, 2005 e 2007) que legitimam a forma como a apropriação daquele espaço se estrutura. Este processo é estabelecido por cognições intangíveis, compondo-se a partir da presença de encontros cotidianos (reuniões, galeras, bancas, etc. (LAITANO, 2008)) e mensagens trazidas a partir da presença de um graffiti, por exemplo, e que torna possível considerar que o movimento hip-hop está presente naquele espaço.

A construção de redes de pertencimento com determinados espaços compreende também uma forma de legitimar a presença do movimento, através, por exemplo, da presença física de algum objeto ligado ao hip-hop, estimulando a presença dos sujeitos. No caso do centro da cidade, na Estação Arte, localizada no Parque Ambiental, no ano de 2015, surgiu o movimento “Batalhas de Rima do Ambiental” (Figura 04), reunindo desde ativistas, amantes, ouvintes, até espectadores não adeptos do hip-hop. Esta apropriação ocorre semanalmente, salvo exceções. Nota-se que o espaço em que a apropriação intangível ocorria não é caracterizado pela presença de graffitis, por exemplo, mas pela presença da pista de skate e pela representatividade do local no imaginário dos sujeitos. Posteriormente iniciada as batalhas, a apropriação passou a ser legitimada pelo elemento música e suas reuniões.

Figura 04 – Batalhas de Rima do Ambiental, realizado entre as edificações da Estação Arte e a pista de skate do Parque Ambiental – centro da cidade. Autoria: ADAMI, 2015.

Nas Batalhas de Rima do Ambiental, a escolha do local para a realização do evento é articulada a um marcador espacial simbólico para o hip-hop, isto é, a pista de skate do Parque Ambiental. Nas entrevistas, são ressaltadas a localização central no espaço intra-urbano, o acentuado fluxo de pessoas e, portanto, as potencialidades de visibilidade social do movimento “na cena pública da cidade”. Mediante a apropriação do “evento”, há posteriormente uma frequentação maior de rappers (entre outros) no local e uma paulatina valorização representada por reuniões que ampliam o “espectro de representação espacial” do movimento para além da pista de skate.

Essas ‘batalhas de rima’[5] estruturam-se por baterias de rima, nas quais os participantes revezam-se, a fim de apresentar a melhor sequência de rimas que atinja ou deixe sem resposta o seu adversário. Esses eventos remetem a formas de sociabilidade “em guetos” cujas potencialidades para relações sociais com uso de violência física, rivalidades, etc., são transubstanciadas para o desafio artístico. Em Ponta Grossa-PR, funciona como um dispositivo de socialização que promove o encontro de diferentes classes sociais em torno de “bandeiras comuns”. Portanto, as apropriações espaciais juvenis revestem-se também de elementos abstratos, intangíveis e tencionam dimensões temporais com características tanto de efemeridade (episódios) quanto de perenidade (frequência/valorização). Nesse ínterim, os jovens do movimento hip-hop também compõem traços daquilo que Nogué e Romero (2006) denominam de Geografias da Invisibilidade, aquelas que estão sem estar, mas que marcam coordenadas espaço temporais existenciais (emocionais materializadas no imaginário coletivo de grupos através de memórias relacionadas ao espaço) e que não são passíveis de compreensão por meio das Geografias cartesianas – fundadas na visibilidade das formas espaciais.

Também se observou como crescente a participação de jovens no movimento hip-hop em Ponta Grossa-PR, representativa, expressa simbolicamente no ano de 2015 com aprovação na Câmara Municipal de Vereadores do Dia Municipal do RAP, demarcado no dia 6 de agosto, mas comemorado apenas no dia 8 em evento realizado na Estação Saudade, chamado de hip-hop na Estação. Por ser um patrimônio tombado, a Estação não apresenta graffitis, mas as ocorrências das Batalhas do Ambiental (locais do Parque Ambiental), juntamente com a pista de skate formam uma ampla área no centro da cidade que representa para o hip-hop uma cena pública de expressão social do movimento e ao mesmo tempo “espaço de reconhecimento” (com valores) para os integrantes da sociabilidade juvenil, formando laços de pertencimento com o espaço.

Já os eventos realizados na periferia da cidade e associados a equipamentos públicos são também legitimados pela ausência de atividades artísticas culturais destinadas à população local. Os ativistas do movimento consideram a periferia como lócus de liberdade para a materialização do movimento através de graffitis, por exemplo, também por não haver patrimônios históricos tombados, além do baixo custo financeiro para realização de pequenos eventos na periferia.

Destacam-se eventos os quais possuíram uma visibilidade e repercussão maior, tais como o hip-hop na Praça (que ocorreu na vila da Ronda em 2014) e o Mosaico Cultural (que ocorreu no Núcleo Habitacional Santa Paula em 2015). Estes compreendem a eventos realizados em parceria do movimento hip-hop com instituições públicas e particulares.

A escolha do local para a realização do Mosaico Cultural deveu-se à existência de uma pista skate muito conhecida na cidade, com o projeto de pista profissional e que já foi palco de diversos eventos e competições. Além destas características, o espaço onde se localiza a pista é repleto de graffitis, muitos já danificados pelo vandalismo, que muitas vezes é confundido com as manifestações do movimento hip-hop por conta das depredações coincidirem com as paredes “grafitadas”.

Figuras 05 – Pavilhão para eventos socioculturais situados no Núcleo Habitacional Santa Paula, periferia oeste da cidade, anexo à pista de skate. Autoria: ADAMI, 2015.

No caso do Núcleo Habitacional Santa Paula, especificamente no espaço para eventos culturais anexos à pista de skate, apresenta-se a coexistência do graffiti e da pichação. Para os ativistas do movimento, a pichação acaba por interferir no processo de legitimação social do hip-hop na sociedade, a qual associa pichação ao vandalismo, fato que os ativistas buscam desconstruir em suas atividades cotidianas em letras de rap e no graffiti. Deste modo, a arte visual, o ato de grafitar, por parte dos jovens ativistas, corresponde a uma forma de apropriar-se de determinado espaço, legitimando-se pela presença materializada de elementos do movimento hip-hop, conduzindo a uma percepção de imediato sobre sua presença. O graffiti configura-se como meio de comunicação de grande poder político-ideológico, como afirmado por Tartaglia (2014), mas também se estabelece como uma forma de legitimar as características da sociabilidade juvenil, bem como um meio pelo qual os jovens buscam ser notados na sociedade.

Nas entrevistas narrativas e nos grupos focais, a relação entre graffiti e pichação é entendida como “fases” de um processo (não necessariamente linear) no interior do movimento hip-hop, no qual muitos grafiteiros iniciam suas atividades com base no espírito crítico e anárquico das pichações fundadas em uma ideia de “chocar o outro”. Por outro lado, a própria experimentação do “picho” é compreendida como um “passo” para a sua reelaboração com apresso a um discurso mais reflexivo, centrado na estética do graffiti. Esse debate também repercute na música, em grupo focal realizado com integrantes do grupo musical Insônia Mc’s. Parte do grupo defende que, ainda hoje, com gravadoras e maiores repercussões do grupo, realizariam shows gratuitos. Outros integrantes discordam e são favoráveis à realização de shows remunerados, considerando também a seguinte questão: “o show é gratuito para quem?”, chamando atenção para a figura dos organizadores e as tentativas de apropriação e/ou uso político partidário (ONGS, etc.) de suas apresentações. Esses fatos demarcam ao mesmo tempo uma repercussão do movimento e diferentes formas de legitimidade social do hip-hop na cidade.

No caso do graffiti, ele também é refletido pelos grupos como um meio de expressão e comunicação que chama a “atenção da sociedade”, em razão do espaço em que está inserido (visibilidade pública: ruas, muros, paredes, etc.) e também pela riqueza dos traços e cores que o compõem. Em sequência a este processo, alguns dos grafiteiros passam a enxergar suas manifestações além de um hobby, apreendendo-as como possível produto comercial. A consequência deste processo é a presença de graffitis em instituições privadas e em propagandas. Ligada à temática da comercialização está a publicidade das imagens. Silva (2001) interpreta esta questão de forma oposta ao contexto de um graffiti:

As imagens da publicidade, porém, não são as da arte. Enquanto a publicidade chama a atenção para alguma coisa, a arte o faz para alguém. […] Desse modo, o que se opõe diametralmente ao grafite é a publicidade: enquanto o primeiro busca um efeito social de forte carga ideológica ou, de algum modo, transgressora de uma ordem estabelecida, a publicidade busca o consumo do anunciado e assim sua intenção comunicativa é antes de tudo funcional para um sistema social, político ou econômico. (SILVA, 2001, p.06-08)

Torna-se possível afirmar que essa transgressão espaço-temporal que os jovens vivenciam no interior do movimento hip-hop corresponde também a um processo de reconhecimento de si com os outros, pois, ainda que não seja ritualizado, há desde a iniciação como ativistas do movimento momentos em que as visões sociais e suas ideologias (cosmovisões) passam a estruturar-se de maneira mais “aplicável” à sociedade (especialmente como crítica).

As mensagens conduzidas através dos elementos explorados vão além de expressão e formas de manifestar a vivência hip-hop. Muitos objetivos correspondem a um possível retorno financeiro (influenciando na determinação de espaços e públicos que se deseja atingir); outros defendem um estilo de vida, um modo de ser. A maioria traz consigo a ideia de provocar “seus espectadores” com representações que expressam desde críticas político-sociais às suas experiências juvenis (espaços vividos), bem como as inter-relações da sociedade com o ambiente, etc. As composições, estas de características intangíveis, perenes ou efêmeras, estão presentes nos espaços públicos, locais frequentados por diferentes grupos, sujeitos, classes, mas que nem sempre podem ser notadas. Sendo assim, o simples ato de reunir-se em determinado local para realização de uma ação – uma roda de rappers, por exemplo, corresponde a um meio de apropriar-se do espaço público.

Também nas entrevistas realizadas com os sujeitos ativistas em torno da discussão dos espaços públicos conduziram a uma interpretação de ‘rua’ e de espaço público como sinônimo, em razão de sua liberdade de acesso, da frequência cotidiana, mas também pela sua ligação com o movimento hip-hop.



Considerações Finais

Um caso ainda não relatado: os integrantes do movimento hip-hop problematizaram uma discussão em torno do espaço público para além da rua, da pista skate e do complexo esportivo, etc.; quando da reivindicação de uso do Teatro Ópera (situado no centro da cidade e pertencente à Prefeitura Municipal de Ponta Grossa). Os integrantes do hip-hop estavam organizando uma apresentação de um dos “maiores grupos” de rap brasileiro, o RZO. Segundo os entrevistados, a administração municipal impôs diversas dificuldades para a realização do evento, sob a argumentação de que o teatro não era próprio para manifestação cultural do hip-hop – apresentando “nas entrelinhas” dos discursos a associação do movimento a potenciais depredações do prédio público. Após intervenções de vereadores, entre outros, o evento foi realizado com grande presença de público.

Portanto, as ideias de “apropriações espaciais” desenvolvidas no artigo remetem a dimensões de disputas do espaço público da cidade que configuram tensões. Outro exemplo é o Complexo Esportivo localizado na Vila 31 de Março (representado pela Figura 01), o qual era inteiramente “grafitado”, mas que no ano de 2015 foi todo pintado pela prefeitura com o uso de tinta preta. Assim, se por um lado institui-se dia municipal do rap, “convidam-se” os rappers para “eventos públicos”, etc., revelando que os mesmos são representativos (no mínimo são potenciais angariadores de votos, etc.), por outro, eles são concebidos como “incômodos”, anárquicos, desordeiros, entre outras representações sociais que tensionam com uma “representação positivista” do espaço público.

Contudo, as dimensões das tensões são complexas: em uma face, o conteúdo crítico, a comunicação das experiências espaciais juvenis, etc., constituída pelas apropriações dos espaços públicos. Noutro mote, o graffiti é visto como potencialmente regenerador de áreas públicas degradadas no espaço intra-urbano, sejam por vandalismo ou mesmo pelo “abandono público/do Estado”; nestes casos, o movimento hip-hop insere-se como ‘revitalizador’ destes espaços.

Tartaglia (2014) atenta para uma perspectiva de apropriação sobre espacialidade com teor público, em que o poder público relegou para usos comerciais e industriais, não se apresentando acesso para a população, locais próximos da institucionalização de espaços caracterizados por residentes de baixa renda, ou até mesmo para com aqueles espaços esquecidos esteticamente pela administração pública. São estes espaços descritos que se qualificam como alvos convidativos para apropriação por parte dos graffitis. “Num período marcado por grande apatia política, marca da sociedade em que vivemos, o graffiti aparece como uma rara manifestação de cunho político” (TARTAGLIA, 2014, p.122), com grande poder de provocar, na sociedade, reflexões político-sociais, e através desta perspectiva, atribui-se à manifestação seu poder de revitalizar determinados espaços. Esta apropriação, posteriormente inserida no espaço, pode contribuir para uma frequência de jovens na vivência daquele espaço, atribuindo ao mesmo visibilidade e identidade.

Não obstante, na busca pela problematização da questão norteadora deste artigo, a dimensão centro/periferia configurou uma cartografia diferenciada das manifestações dos ativistas.

Figura 06 – Título: Cartograma das manifestações hip-hop. (A legenda apresenta as “Manifestações através de eventos, mas sem a presença de graffitis, apenas música e “Outras Manifestações”. Considerou-se importante especializar separadamente das manifestações do Evento Graffiti Cor e Ação pelo mesmo ter sido um evento com grande repercussão midiática). Autoria: ADAMI, 2016.

Assim, outra forma de constituição espacial do movimento é escalar: centro e periferia não se constituem aprioristicamente como antagonismos, mas como estratégias espaciais complementares do movimento hip-hop – no caso da música, privilegia-se o centro por conta da reunião de pessoas (circulação e visibilidade) em uma atividade “efêmera”. Já no graffiti, as maiores concentrações de grafias estão em bairros, como Oficinas, Uvaranas, Neves, Jardim Carvalho, Contorno e Olarias – associados à marcação espacial dos espaços de vivência (experiência cotidiana), bem como à representação do movimento pela “materialização estética” (comunicação).

Já as diferentes ações de pesquisas frisadas na introdução do artigo remetem à configuração de autointerpretações dos sujeitos no movimento, como é o caso das entrevistas narrativas, assim como a problematização do movimento como processual e, portanto, resultante de debates (grupos focais). Nesse ínterim, o espaço público fora compreendido enquanto constitutivo do movimento por meio de um processo de pesquisa participante em que a questão veio à baila (não aprioristicamente). Não obstante, no aprofundamento da composição espacial articulada ao graffiti e à música, é importante destacar os esforços dos ativistas em romper com estigmas que “criminalizam” o movimento (violência, depredação, etc.). Por outro lado, identificaram-se problematizações jurídicas da “criminalidade” – como exemplo, citamos as discussões sobre o uso (legal X ilegal) da Cannabis sativa – versos direitos sociais, entre outros aspectos.

Portanto, apreende-se o processo de apropriação espacial pública como complexo e composto por relações sociais de poder e por discursos heterogêneos, sejam em razão da comercialização artística/publicitária, etc., ou em seu espírito crítico pautado na busca de provocar (a sociedade) e transformar o espaço. Neste último processo, interiorizado no movimento hip-hop, foi percebido um maior número de integrantes que estabelecem – através de uma apropriação material e cognitiva, efêmera ou perene – a relação com a sociedade como um todo, em que a sociabilidade juvenil no hip-hop é composta sobre as trajetórias e frequências espaciais públicas.

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Data de Recebimento: 01/08/2016
Data de Aprovação: 17/11/2016


[1] Baseado em Lima (2014) a concepção de sujeitos no artigo é correspondente a uma materialidade corpórea e histórica.

[2] Muito embora sociologicamente não haja uma precisão exata ou uma “taxionomia”, considerou-se como referência a Lei Federal n° 12.852, de 15 de agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude, em que se identificam como jovens aqueles indivíduos com idade entre quinze e vinte e nove anos.

[3] Neste artigo, não são exploradas diretamente letras de músicas, mas sim os discursos dos rappers e dos grafiteiros.

[4] Edificação do Armazém da Estrada de Ferro do Paraná que passava no centro da cidade até meados da década de 1970. Inserido no Parque Ambiental, ao lado da pista de skate do Parque. Hoje o patrimônio cultural é utilizado como galeria de artes, oficinas de pintura, etc. (PMPG, 2016).

[5] Similar ao repente, coco de embolada, ao samba de partido alto moderno, etc., que comungam de influências culturais africanas; quanto ao repente, ambas estão lastreadas pela “extração cultural popular” (de rua, etc.). Outras práticas do hip-hop também possuem esse aspecto, a exemplo, do break e a Capoeira de Angola (o gingado, etc.).