“Cara de empregada doméstica”: Discursos sobre os corpos de mulheres negras no Brasil*


resumo resumo

Mónica G. Zoppi Fontana
Mariana Jafet Cestari



Introdução

No dia 27 de agosto de 2013, uma jornalista de um grande veículo de comunicação brasileiro afirma em sua página pessoal do Facebook que as médicas cubanas que foram ao Brasil para participar do programa federal “Mais Médicos”, que tem como objetivo contratar médicos para atuarem em cidades com carência no serviço básico de saúde, tinham cara de empregada doméstica. Trataremos a aparição deste enunciado no Facebook e a polêmica que ele ocasionou como um acontecimento discursivo (Pêcheux, 1983), que atualiza e desloca sentidos em uma rede de memórias. No quadro da Análise de Discurso que tem como principal autor o teórico marxista francês Pêcheux, discutiremos a emergência e circulação desse enunciado e da designação “ (cara de) empregada doméstica”, descrevendo as filiações de sentido em que se inscrevem e os deslocamentos e contradições ideológicos produzidos pela sua enunciação a partir de diferentes posições discursivas.

Utilizamos o conceito de memória discursiva para designar as redes de filiação histórica que organizam o dizível, dando lugar aos processos de identificação a partir do quais o sujeito encontra as evidências que sustentam/permitem seu dizer[1]. Neste sentido, a memória discursiva é o espaço dos efeitos de sentido que constituem para o sujeito sua realidade, enquanto representação imaginária (e necessária) da sua relação com o real histórico, no qual ele está inserido.

Definindo a memória discursiva como "espaço de estruturação, de regularização de materialidade discursiva complexa"[2], Pêcheux afirma que ela funciona como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" [...] de que a leitura necessita”[3]. Parafraseando o autor, podemos dizer que face a um fato (i.e. ao real histórico), a memória discursiva restabelece um não-dito que permite ao sujeito a interpretação. A noção de materialidade discursiva deve ser compreendida:

[...] enquanto nível de existência sócio-histórica [do discurso], que não é nem a língua, nem a literatura, nem mesmo as “mentalidades” de uma época, mas que remete às condições verbais de existência dos objetos (científicos, estéticos, ideológicos...) em uma conjuntura dada. (PÊCHEUX, 1981:151)

Se trata de considerar que as formas discursivas nas quais aparecem os “objetos” […] são sempre conjunturalmente determinadas como objetos ideológicos; nem universais históricos, nem puros efeitos ideológicos de classe, esses objetos teriam a propriedade de ser ao

Pêcheux (1984).



[1] Cf. Pêcheux (1975); Courtine (1982); Orlandi (1996; 1999; 2001).

[2] Pêcheux (1984).

[3] Ibid., p.263