Museu, para quê? Compreensões sobre o Museu do Homem Americano


resumo resumo

Maraisa Lopes



Museus, para quê? Em um vídeo[1] publicado pela British Council, em 05 de dezembro de 2016, na plataforma Youtube, público e palestrantes respondem a essa pergunta. Entre brasileiros e estrangeiros, numa sobreposição de formulações, temos: Museus, para estabelecer diálogos. Para o que nós quisermos e pudermos fazer. Para atrair, manter, diversificar, engajar. Para sensibilizar os diferentes públicos e comunidades. O museu existe para inspirar pessoas. Para formar o ontem, o hoje e o amanhã. Para transformar vidas. Para colaborar com a experiência de cada um que tem a oportunidade de passar por um museu. Para a gente pensar, para a gente dialogar, para a gente produzir. Para provocar, para instigar, para refletir. Para congregar. Para que seja um local de encontro, em que as pessoas possam estar juntas. Para a reparação histórica. Para ativar a cultura e a alegria. Para difundir o conhecimento. Uma forma de aglutinar as pessoas. Lugar de articulação, de diálogo. Para promover encontros. Encontros das pessoas entre elas e o encontro das pessoas com as ideias. Para refletir sobre o passado e ter percepções sobre o futuro. Para transformar o mundo, para ser o seu lugar no mundo. Uma questão de cidadania. Para a gente entender que tem o direito à cidadania. Um espaço de pertencimento, de memória. Resgate da memória, da história. Espaço real e concreto de impacto na sociedade. Para contar histórias sobre a humanidade e fazer conexões entre os povos. Parte integral das comunidades e sociedades. Feitos por pessoas, para pessoas. Lugar de encontro com suas raízes, sua história. Para transformar o mundo. Para integrar, para socializar. Lugar de reflexão, de engajamento e de mudança de atitude. O museu não guarda coisas velhas, o museu traz coisas novas todos os dias. O museu está vivo. Ele não está parado, ele está agindo, o museu quer vida nova.

Para a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que institui o Estatuto de Museus e dá outras providências, em seu Art.1º,

 

Consideram-se museus [...] as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009).

 

A isso, a partir de minha filiação teórica, acrescentaria que compreendo, considerando Orlandi (2014), o museu como instituição, como parte do  modo  de  individuação  do  sujeito  capitalista  em  nossa  formação  social, como parte do processo de produção de arquivos, como prática de significação, como lugar de memória, de arquivo, de resistência, do confronto entre o político e simbólico, de produção de sentidos. Lugar de circulação de sentidos institucionalizados pelo funcionamento da memória (VENTURINI, 2009). Espaço ilusoriamente tomado como completo, como se toda a história estivesse nele; o lugar da guarda de tudo aquilo que deve/pode ser lembrado, rememorado (TEIXEIRA, 2017).

Nesse sentido, o museu precisa ser lido, demanda interpretação. E, dentre os mais de 3000 museus que existem no Brasil (IBRAM, 2011), para esta análise, tomo como objeto o Museu do Homem Americano, enquanto instituição ligada à circulação de saberes sobre sujeitos que (se) significam a (na) povoação nas/das Américas, em sua relação com o Parque Nacional Serra da Capivara. A análise que se apresenta tem como base as sequências discursivas presentes no site da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano) sobre o Museu e as anotações de campo efetuadas durante as visitas feitas, por mim, ao local, entre os anos de 2010 e 2019 (em 2020, nenhuma visita foi possível devido à pandemia da Covid-19).

 

Do Parque ao Museu

Para pensarmos discursivamente o Museu do Homem Americano é preciso compreender algumas questões relacionadas ao Parque Nacional Serra da Capivara, que está localizado no sudeste do Estado do Piauí, ocupando áreas dos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. A superfície do Parque é de mais de 129 mil ha e seu perímetro é de 214 km. A distância que o separa da capital do Estado do Piauí, Teresina, é de 530 Km. Outra via de acesso é Petrolina-PE, distante cerca de 300km (CARVALHO JUNIOR; BITENCOURT, 2013; UNESCO, 2020; ICMBIO, 2020).

Toda esta extensão de terra tornou-se Parque Nacional em 05 de junho de 1979, sendo considerada uma unidade de conservação de proteção integral. Para melhor compreendermos o que significa ser um Parque Nacional, recorremos aos discursos disponíveis no site do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) para observar que, no campo discursivo sobre o Meio Ambiente, tornar-se um Parque Nacional significa ser reconhecido como

 

a mais popular e antiga categoria de Unidades de Conservação. Seu objetivo, segundo a legislação brasileira, é preservar ecossistemas de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas, de atividades educacionais e de interpretação ambiental, recreação e turismo ecológico, por meio do contato com a natureza (ICMBIO, 2020, n.p.).

 

Ser designado como Parque Nacional traz como efeito para a região os sentidos próprios à noção de Manejo. De acordo com a Lei nº 9.985/2000, um plano de Manejo é um documento técnico mediante o qual se estabelece o zoneamento de uma Unidade de Conservação e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais (BRASIL, 2000). Há uma regulação, uma ordem; há a conjugação de atividades manuais com a tecnologia avançada, com o objetivo de definir ou traçar decisões a serem tomadas, ou ainda, o planejamento do uso racional da localidade e de seus produtos.

Esse discurso pautado pela noção de Manejo acaba por deixar de ser a representação de sentidos pelo que se debate ou se luta e passa a ser, ele mesmo, o objeto de desejo que se busca, dando-lhe, assim, o seu poder intrínseco de reprodução e dominação, se posso adaptar a fala de Foucault (2004), em A ordem do discurso.

Nesse sentido, a ordenação, o manejo do Parque, leva em consideração a preservação dos ecossistemas naturais, a pesquisa científica, a educação, a recreação e o turismo, instaurando um regime definido de visitação pública.

Mas, ter sido denominado Parque Nacional não trouxera à Serra os benefícios advindos desta classificação de modo imediato, já que por mais de dez anos a localidade continuou negligenciada, sem receber os fundos federais de modo regular (CARVALHO JUNIOR; BITENCOURT, 2013). Pelo contrário, esse reconhecimento a significara como uma terra de oportunidades para a indústria madeireira. Como resultado dessa exposição, face ao não investimento do governo em vigilância, a Serra vivera anos sendo tomada como ‘terra de ninguém’ e sua flora fora sistematicamente destruída pela extração de madeiras nobres.

Em 1991, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) decretou o Parque como Patrimônio Cultural da Humanidade, por se tratar de um conjunto de sítios que têm um excepcional e universal valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Antes de prosseguir, vale destacar que a Serra é o único Parque Nacional classificado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO. Vejo aqui discursivamente funcionar a noção de equívoco (PÊCHEUX, 2002), desnudando sentidos sobre essa classificação como Patrimônio Cultural, produzindo uma falha material que significa pelo efeito da nomeação, que, conforme Costa (2012, p.134), “é um dos modos de formular, de se interpor na relação indireta, opaca, da representação linguagem/pensamento/mundo pelo homem. É interpretar. É, por isso, também, dar corpo aos sentidos. E, ainda, levando em conta o que explica Orlandi [...], o gesto de nomear situa-se na fronteira entre o dito, o silenciado e o dizível”. Essa falha materializada na/pela língua não pode ser recoberta e nos permite compreender a dificuldade que se enfrenta há anos para tentar mudar a classificação do Parque para Patrimônio Misto, o que traria também em si os sentidos próprios ao reconhecimento da importância do meio ambiente. Parece-me que há aqui certa disputa de sentidos, é como se o não reconhecimento da relevância ambiental da localidade pela UNESCO ocorresse pelo fato de que esta estaria coberta pela classificação em âmbito nacional, interessar-lhes-ia proteger aquilo para o que não se formula o plano da ordem, o plano de manejo, como se às autoridades brasileiras estivesse relegado o cuidar do meio ambiente, algo para o que talvez o Brasil tenha (tivesse) know how reconhecido, e, ao mundo, dito pelo viés da Organização das Nações Unidas, coubesse cuidar da cultura, do sensível.

Além dessas considerações, ser reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade traz em si uma gama de sentidos possíveis. A própria significação de Patrimônio, uma noção de pertencimento. Se outrora aquele local fora significado como ‘terra de ninguém’, rompe-se com esse efeito e passa-se a tomá-lo como de alguém, como algo que pertence a um outro.

Pensar um Patrimônio Cultural da Humanidade no semiárido nordestino instaura novos sentidos para o que se entende por Nordeste, já que o discurso sobre essa região privilegia as paisagens litorâneas e silencia outras, como as áreas de caatinga e de transição cerrado-caatinga. Para não dizer que, em última análise, o Nordeste brasileiro seja significado pelo discurso midiático a partir de uma polarização bastante forte: a das belas praias ao longo do litoral e a da seca como algo generalizante.

Algo interessante a se observar aqui é o fato de que o Piauí não tem tradição alguma no que tange ao turismo em suas praias, não é possível até hoje adentrar uma loja de viagens em qualquer local do país e comprar um pacote para desfrutar de uma semana de estadia no litoral piauiense, fato que funciona nesse imaginário de negação do Estado pelos próprios brasileiros, como apontado por Bastos (2010).

Relevante é também pensar que, ao se tornar um Patrimônio Cultural da Humanidade, estabelece-se um perfil do visitante/consumidor: havendo um público interno, residente no Brasil, em especial no Nordeste, formado, sobretudo, por estudantes da Educação Básica e do Ensino Superior, professores, pesquisadores, jornalistas e profissionais ligados às áreas de ecoturismo e arqueologia; e um público externo, constituído de visitantes/consumidores residentes em outros países, conforme explicitado por Carvalho Junior e Bitencourt (2013).

É nesse ponto que retomo Pêcheux (1994), quanto à divisão social do trabalho da leitura, ou seja, na reorganização social do trabalho intelectual e na leitura de arquivo. Pensando aqui a leitura do Parque, de seus sítios, dos efeitos de sentido por eles produzidos, haveria, então, dois grupos autorizados a ler o Parque, a ler as pinturas rupestres: os brasileiros que pertencem à escola, à ciência, grupos atravessados pela noção de conhecimento, e, os estrangeiros, aos quais se atribuiria naturalmente o lugar do civilizado, do escolarizado, do científico.

Nesse meandro, remonto, ainda, ao conceito de memória de arquivo (ORLANDI, 2003), a memória institucional, a que não se esquece e alimenta a ilusão da “literalidade”, acentuando a ilusão de transparência da linguagem, sustentada pelas instituições, lugares por onde circula o discurso documental, e que servem à sua manutenção e estabilização, ao pensar os enunciados produzidos pela Fumdham, fundação que corrobora a administração do Parque juntamente com o ICMBIO, sobre o fato de se criar um Museu do Homem Americano, em 1998, a 40km de distância do Parque, numa tentativa de viabilizar um contato mais próximo com o resultado das pesquisas, as quais, na visita ao Parque, se constituiriam em abstração para a maioria do público visitante. Ou seja, coloca-se como possível dizer que o Museu vem para didatizar a leitura do Parque, divulgar o Parque, vulgarizar o Parque, tornando-o compreensível, acessível àqueles que não compartilham da possibilidade, não são autorizados a lê-lo. E por que não ser o próprio Parque tomado como um museu a céu aberto, ao concebermos museu como “um espaço significante dentro do qual tem lugar o acontecimento, sendo o encontro entre o sujeito e a obra (ou objeto) que produz o acontecimento em sua singularidade” (MUNOZ, PETRI, BRANCO, 2017, p.26), ao invés de se construir um museu fora de seu alcance espacial para dizer sobre ele?

 

 

Do Museu do Homem Americano

A Fumdham, em seu site, produz um discurso sobre o Museu do Homem Americano, tornando-o objeto sobre o que se fala. Esse discurso atua “na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória” (MARIANI, 1998, p. 60). Desse modo, importa-nos compreender como alguns processos discursivos são fundamentais para o funcionamento de um discurso e, por isso, remontamos ao trecho inicial da descrição do Museu, a saber: “Situado na sede da Fumdham, o Museu foi criado para divulgar a importância do patrimônio cultural deixado pelos povos pré-históricos na região. A exposição mostra os resultados de mais de quatro décadas de pesquisas realizadas na região do Parque” (FUMDHAM, s.d., n.p.).

Algumas questões se nos colocam. Inicialmente, atemo-nos àquilo que se refere ao espaço. Recortamos, para isso, dois pequenos trechos que nos permitem dar início a essa discussão, o fato de que o Museu está “situado na sede da Fumdham” e o de que apresenta “pesquisas realizadas na região do Parque”, marcando uma separação entre o lugar do Museu e o do Parque.

Quando pensamos geograficamente sobre este estar situado na Fumdham e não no Parque, somos remetidos ao ponto de que há uma distância espacial de quase 40km entre eles. Quando visitamos a Serra da Capivara, para chegarmos à Guarita Principal, no Circuito da Pedra Furada que, segundo a Fumdham (s.d., n.p.), “É o circuito mais visitado do Parque pela importância das pesquisas, pela diversidade dos registros rupestres e pelo monumento geológico da Pedra Furada. Conta com um Centro de Visitantes, local onde o turista dispõe de lanchonete, auditório, loja e toaletes”, observamos que, na zona rural da cidade de Coronel José Dias-PI, em meio às estradas de terra (Figuras 1 e 3) que dificultam a chegada dos visitantes, há pequenos povoados com casas (Figuras 2 e 4) de “edificação térrea de dimensões não muito grandes[2]”, pequenas casas que nos dão “sentido de espaço próprio de vida[3]” de sujeitos que, em muitos casos, são condutores[4] credenciados junto ao ICMBIO para acompanhar as visitações[5] ao Parque.

 

Gramado com árvores ao fundo

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Figura 1- Estrada que leva o visitante à guarita principal, no Circuito da Pedra Furada. Fonte: A autora (2010)

Girafa no meio do deserto

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Figura 2- Casas localizadas nas imediações da guarita principal, no Circuito da Pedra Furada. Fonte: A autora (2010)

 

 

Caminho de terra com montanha ao fundo

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Figura 3- Estrada que leva o visitante à guarita principal, no Circuito da Pedra Furada. Fonte: A autora (2012)

Casa com árvores ao fundo

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Figura 4- Casa localizada nas imediações da guarita principal, no Circuito da Pedra Furada. Fonte: A autora (2012)

 

Já quando o visitante segue para o Museu do Homem Americano, a distância do centro da cidade de São Raimundo Nonato-PI até ele é de cerca de 4km. Cidade aqui relaciona ao sentido de urbano, “um espaço geográfico caracterizado por uma concentração populacional que se dedica a atividades econômicas (comércio, indústria, mercado financeiro, atividades culturais, etc) não rurais (agricultura, pecuária, etc)” (GUIMARÃES, 2013)[6]. Cidade com suas ruas asfaltadas, vista em suas nuances, em seus modos de ocupação do espaço urbano, espaço simbólico, até chegarmos ao local em que se localiza o Centro Cultural Sergio Motta, o Museu e uma parte do Campus Serra da Capivara, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, conforme visualizamos na figura 5.

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Figura 5- Mapa de localização do Museu do Homem Americano.

Fonte: Google Maps (2020) adaptado pela autora.

 

A forma como o Museu está disposto em meio à cidade acaba por remeter ao que Orlandi (2011) compreende como a questão da ordem e da organização da cidade. Em nossa análise, nos parece possível dizer que ao tomar a noção de ordem como reservada para o real da cidade, com seus movimentos, sua forma histórica, vemos tal funcionamento no modo como está espacializado o Parque da Serra da Capivara, uma unidade de conservação que toca o território de quatro cidades piauienses, mas que, em seu entorno imediato, admite (apenas) a existência dos sujeitos que historicamente habitam os trechos rurais dessas cidades, numa relação com o natural, com a natureza, com o próprio Parque, que se significa numa ordem outra que não a dos movimentos políticos, sociais e econômicos, do planejamento, da administração e da organização própria do espaço urbano pelo Estado.

Já a noção de organização, que Orlandi (2011) denomina como organização urbana, está ligada ao imaginário projetado sobre a cidade, o modo como habitantes e especialistas se relacionam com a cidade através desse imaginário, organizando o espaço da cidade, nos parece funcionar na instalação do Museu do Homem Americano ao lado de um campus universitário e um centro de pesquisas; “na medida em que o museu é aberto à visitação, ele se torna  um  lugar  de  passagem  nos  percursos  dos  sujeitos,  bem  como  traz consequências para as relações sociais nesses espaços” (NUNES, 2013, p.205), há um funcionamento político-administrativo que significa esta instalação.

Instalar um Museu nesse local, além de produzir sentidos na relação com a história e a memória da cidade, remonta ao fato de que a ciência é vista como o motor do desenvolvimento, símbolo do progresso, estabelecendo uma relação inequívoca entre ciência e desenvolvimento humano e social (GOERGEN, 1998).  A ciência, como produtora de conhecimento, é tomada como causa e efeito das modificações que ocorrem na sociedade. A organização de um Museu em meio a instituições que produzem pesquisas nos remete àquilo que Goergen (1998) aponta sobre a necessidade de se traduzir resultados científicos para a prática, o que nos parece funcionar na espacialização e na significação do Museu. 

É nesse ponto que tocamos outros dois recortes[7] do texto de apresentação do Museu - “o Museu foi criado para divulgar a importância do patrimônio cultural deixado pelos povos pré-históricos na região” e a “A exposição mostra os resultados de mais de quatro décadas de pesquisas”. Aqui vemos funcionar o discurso da divulgação científica[8] que Orlandi (2001) afirma indicar a exterioridade da ciência, a necessidade de que a ciência não se limite ao seu espaço de circulação mais restrito, devendo ganhar um espaço social mais amplo, se exteriorizar em meio à sociedade, ocupando o lugar do cotidiano dos sujeitos. Tem-se como efeito a ilusão de acesso ao conhecimento, uma vez que se produz a “circulação da informação em ciência e tecnologia para o público em geral e não somente entre especialistas/cientistas” (BUENO, 1985, p.1420).

Pensar a divulgação científica, faz com que pensemos “a presença do conhecimento na sociedade e seus modos de circulação através das tecnologias de linguagem postas à disposição. [...] Publicizar significa a própria possibilidade de se fazer ciência em uma formação social como a nossa” (ORLANDI, 2001, p.21). O processo de divulgação científica diz sobre a possibilidade de socialização, de popularização, de vulgarização do conhecimento. Para Nunes (2013, p.206), os discursos de divulgação também se colocam como “aqueles que vêm suprir as deficiências do ensino, uma vez que ali muitas vezes se reproduz o discurso científico, apagando suas enunciações por meio de um discurso universalizado”.

Há de se compreender, no entanto, que para além do efeito de acesso ao conhecimento, torna-se possível, se considerarmos um segundo trecho da descrição do Museu, observarmos um movimento de administração dos sentidos, a partir de um controle dos modos de representação sobre o homem americano e as pesquisas realizadas sobre ele, e um efeito de completude dos sentidos sobre a questão, numa prática ideológica que naturaliza os sentidos, ou, nas palavras de Orlandi (2003), o processo por meio do qual se faz do sentido uma evidência, des-historicizando seu processo de significação. O controle político da representação se dá dentro de uma prática ideológica que escapa às vontades individuais, como diria Pêcheux (1997), algo fala antes, em outro lugar, independentemente. Esse controle se dá, pois, pela memória discursiva e pelos esquecimentos. Loraux (1998) aponta que há sempre o que se deve lembrar-se de esquecer, fazendo uma divisão daquilo que se deveria lembrar e o que se deveria esquecer para que a vida social e a história seguissem seu curso. Em nosso caso, o que deve ser lembrado sobre o homem americano? O que deve ser esquecido? Para a Fumdham (s.d., n.p.)

 

A exposição permanente se inicia com uma visão da evolução dos hominídeos e a apresentação das teorias de povoamento da América, seguida da vida do Homo sapiens na região durante o Pleistoceno e o Holoceno. Continuando o percurso, o visitante conhece a história da escavação arqueológica do sítio do Boqueirão da Pedra Furada, que demonstrou a presença humana na região desde o Pleistoceno. No mezanino, estão expostos instrumentos pré-históricos, urnas funerárias e esqueletos. Nas últimas salas, são apresentados os ossos, as imagens desenhadas e a descrição da megafauna que viveu na região. A exposição se encerra com amostras da biodiversidade atual (FUMDHAM, s.d., n.p.).

 

No batimento do exposto com o objeto simbólico que tomo para minha análise, em sua relação com a história, a memória, o sujeito e os sentidos, coloco-me em posição de analisar o Museu como um discurso sobre o homem americano. Massman (2018) aponta que quando visitamos um museu, pensamos, refletimos, nos questionamos sobre o espaço e os artefatos simbólicos que compõem aquela instituição. Somos, desse modo, interpelados por eles e, a partir de então, são colocamos em funcionamento gestos de leitura, buscando “interpretar o museu e os sentidos produzidos nele, por ele e para ele” (MASSMAN, 2018, p.527).

Assim, passo a um segundo ponto de minha análise, o momento em que busco compreender a forma-material do Museu. Apresento aqui anotações que foram feitas ao longo de anos de visitas, as quais não se deram considerando uma pergunta de pesquisa e que passam, agora, a ser pensadas a partir de meu olhar de analista, ainda que em um movimento inicial de análise.

É interessante notar que a primeira materialidade significante[9] com a qual nos deparamos dentro do Museu é uma parede vermelha (Figura 6), em que se lê museu do homem americano, escrito em letras minúsculas, em um tom entre branco e bege (certamente afetado pela disposição de luzes para iluminá-lo), com duas pinturas rupestres que indicariam seres antropomorfos em sua multiplicidade de formas de representação em meios às muitas pinturas encravadas nos paredões da Serra. Colocar o visitante face à inscrição museu do homem americano dá sentido ao objeto simbólico que ali se coloca. Se denomina o Museu como do homem americano, define-se, caracteriza-se, classifica-se que homem é este sobre o qual se diz, este gesto constrói e direciona o sentido dado ao objeto, significando-o, num processo de significação posto em movimento. Ao se dizer que o Museu trata do homem americano recorta-se que homem é este e silenciam-se outros sentidos possíveis.

Uma imagem contendo mulher, computador, comida, mesa

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Figura 6 -Entrada do Museu do Homem Americano.

Fonte: A autora (2018).

 

Na sequência, adentramos a primeira sala, em que somos expostos, tal qual expresso no texto que descreve o Museu, a “uma visão da evolução dos hominídeos e a apresentação das teorias de povoamento da América, seguida da vida do Homo sapiens na região durante o Pleistoceno e o Holoceno” (FUMDHAM, s.d., n.p). No centro da sala, há um crânio (Figura 7) de aproximadamente 10 mil anos atrás (retirado de um esqueleto encontrado num dos sítios arqueológicos da Serra. O destaque é dado a esse crânio por tratar-se de um exemplar mais alongado, diferindo do crânio dos índios americanos que habitavam a região quando da chegada dos europeus, demonstrando que mais de um tipo físico chegou à América. Apresentar o crânio e não o esqueleto todo, me parece apontar para a necessidade de trazer à baila os sentidos próprios de uma distinção tradicional entre os seres humanos e os outros animais, com base no critério da capacidade de conhecimento. Pelo demonstrar do crânio e não do corpo, o homem americano já estaria, de início, significado por seu comportamento cognitivo, numa relação de coisas a saber, retomamos Descartes (1987, p.29), na afirmação de que “quanto à razão ou ao bom senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um”.

 

Uma imagem contendo mesa, pequeno, escuro, quarto

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Figura 7- Imagem do Crânio Zuzu.

Fonte: A autora (2012).

 

Orlandi (2006) nos indica que a memória discursiva é trabalhada pela noção de interdiscurso: algo fala antes, em outro lugar e independentemente. Trata-se, de acordo com a autora, daquilo que chamamos saber discursivo. Para Pêcheux (2007), a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto (e aqui acrescentamos materialidade significante) que surge como acontecimento a ler, restabeleceria os pré-construídos, os elementos citados e relatados, os discursos transversos, dentre outros necessários para a leitura. É nesse campo que o crânio exposto nos coloca face a uma rede de filiações que nos permite remontar a uma tradição filosófica que distingue o homem dos animais a partir da questão da razão, rede esta constituída além dos discursos produzidos por Descartes, pelos de Locke (1987, p.198), que afirma que “[...] a palavra “razão” no idioma inglês, tem diferentes significados [...] ela significa a faculdade do homem, que é a faculdade pela qual o homem é suposto distinguir-se das bestas, e pela qual é evidente que ele as ultrapassa”, e pelos de Leibniz (1987, p. 389), ao dizer que “Aqui  a  consideramos  como  uma  faculdade,  pela qual supomos que o homem se distingue do animal e o supera em muito”. Há de se lembrar que, na atualidade, muito tem se discutido sobre as capacidades cognitivas humanas e animais, havendo autores que enunciam a partir de uma posição favorável a uma visão que aproxime estas capacidades enquanto outros o fazem a partir da manutenção de um critério que demarque fortemente o terreno da razão (MATOS, 2011).

As paredes da sala apresentam inscritas em si a discussão sobre a evolução do homem na região e as evidências (ou o seu efeito) que as pesquisas demonstram. Nelas fala uma voz sem nome, num discurso universalizado, apagando-se os sujeitos que corroboraram tais descobertas. Não nos ateremos, neste artigo, ao que especificamente está escrito nessas paredes, mas gostaríamos de olhar para o seguinte funcionamento: todas as formulações dispostas nas paredes têm sua versão em português e em inglês. Uma questão que se nos coloca: por que se faz a versão em inglês se todo o fomento para as pesquisas iniciais na Serra da Capivara foi dado pela França? Vemos funcionar aqui o imaginário de inglês como “língua franca da ciência” ou “língua da ciência”, como denomina Ortiz (2006, p.29), numa relação em que a posição dos Estados Unidos nas áreas “econômica, científica e tecnológica” (SANTOS FILHO; ALMEIDA, 2018, p.3) marca discursivamente o político, a divisão entre os sentidos, considerando-se as injunções das relações de força que derivam da forma da sociedade na história (ORLANDI, 1998).

Há também uma vitrine em que se apresentam pedras lascadas (Figura 8) que teriam entre 50 mil e 100 mil anos, as quais seriam evidências (ou seu efeito) de que o homem teria chegado à América num período anterior ao que se imaginava. Numa segunda vitrine, há coprólitos (Figura 9) que datam de 7 mil anos e apresentam um parasita que não teria sobrevivido à passagem pelo Estreito de Bering num período muito frio. Essas duas vitrines, em minha análise, se colocam como um modo de significar a existência do homem americano num movimento de oposição à formulação de que a  presença  humana  nas  partes  baixas  da  América  só  poderia  ser mais recente que a evidenciada pela Cultura Clovis (Clovis-first), que afirma que os primeiros americanos teriam vindo da Ásia pelo Estreito de Bering, pela proximidade do Nordeste da Ásia (Sibéria) e o Noroeste da América do  Norte  (Alasca), sendo consenso entre a comunidade arqueológica norte-americana o ponto de que a América teria sido ocupada há pelo menos 11,4 mil anos, com base na descoberta de ossos humanos, ferramentas e vestígios,  em  1937,  no  Novo  México,  Estados  Unidos (GAUDÊNCIO, 2018).

 

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Figura 8 - Pedras lascadas.

Fonte: A autora (2018).

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Figura 9 - Coprólitos.

Fonte: A autora (2018).

 

Na sala central, os dispositivos de linguagem variam. Há um telão de cinema (Figuras 10 e 11), em que é projetado um vídeo de pouco mais de 12min que mostra a Serra da Capivara e segmenta exemplares das pinturas rupestres em campos de significação denominados homem, animais, caça, dança, emblemáticas, sexo e luta. Há sons de animais e de cânticos. Quando olhamos para essa materialidade, acreditamos ser possível dizer que há aqui um gesto de interpretação dos sujeitos pesquisadores, inscritos na língua, interpelados em sujeito pela ideologia, resultando na forma sujeito histórica, em nosso caso, o sujeito do capitalismo, que, mergulhados em sua experiência de mundo e determinados pela injunção de dar sentido, de significar (-se), num movimento sócio e historicamente situado (ORLANDI, 2005), em meio às formulações próprias à compreensão do que seja ser sujeito, dizem sobre as práticas de linguagem do homem americano ao enquadrá-las em uma classificação pautada pelos sentidos próprios da atualidade: dizer quais pinturas representariam caça, dança, sexo e luta só é possível fazendo-as adequarem-se à imagem socialmente constituída sobre essas ações humanas (mas não só humanas), sobre as quais há um dizer sobre.

 

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Figura 10 - Tela em que é projetado o filme sobre a Serra e as pinturas rupestres.

Fonte: A autora (2014).

Uma imagem contendo no interior, televisão, quarto, tela

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Figura 11- Projeção de pinturas rupestres denominadas como relativas à Caça.

Fonte: A autora (2014).

 

Ainda nessa sala, há dois painéis digitais (Figura 12) (um de cada lado da sala) em que se trata teoricamente sobre a questão das pinturas rupestres, apresentando-se exemplares, em um movimento de aparecimento e desaparecimento, sem qualquer tentativa de classificação dessas pinturas. Há uma parte interativa (Figuras 13,14 e 15): uma mesa permite, por meio de botões que retomam a memória dos antigos controles de videogame (Figura15), a localização dos sítios arqueológicos e a apresentação de pinturas rupestres encontradas em cada sítio, permitindo que o sujeito visitante se coloque como se estivesse face ao próprio sítio, face às pinturas, num simulacro de visitação ao Parque; e a outra (Figura 14), permite que o sujeito visitante, por meio do deslizar de pincéis sobre a tela, simule o movimento de escavação, numa relação com o trabalho dos arqueólogos. Marca-se também o trabalho dos sujeitos pesquisadores por meio da apresentação de um vídeo com imagens dos cientistas em ação (Figura 16) ao longo dos anos dedicados aos estudos da área. No texto escrito na parede, ao lado da tela que apresenta o vídeo, num movimento diferente daquele do vídeo marcado pela indistinção (LAGAZZI, 2011) dos pesquisadores, menciona-se a importância de Niéde Guidon para o desenvolvimento de tais pesquisas, distinguindo-a dentre tantos outros corpos (pesquisadores) que podem ser vistos.

 

Uma imagem contendo mesa, escuro, fogo, luz

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Figura 12 - Imagem do painel digital que reproduz pinturas rupestres.

Fonte: A autora (2014).

Tela de computador em cima da mesa

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Figura 13 - Imagem panorâmica da sala a partir da qual pode-se visualizar a tela de projeção e as duas mesas interativas.

Fonte: A autora (2014).

 

 

Uma imagem contendo no interior, cama, pessoa, homem

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Figura 14 - Mesa interativa em que se usam pincéis para simular escavações.

Fonte: A autora (2014).

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Figura 15 - Mesa interativa em que há um botão que permite que o visitante simule ação de percorrer os sítios arqueológicos.

Fonte: A autora (2018).

 

 

Uma imagem contendo televisão, monitor, no interior, tela

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Figura 16 - Foto tirada de uma cena do vídeo que mostra a execução das escavações pelos pesquisadores. Fonte: A autora (2014).

 

 

Numa terceira sala, há a exposição de materiais líticos (pedras lascadas e pedras polidas). É dado destaque a uma ponta de projétil (Figura 17), do tipo ponta de flecha, elaborada, há 8 mil anos, em quartzo hialino, bastante difícil de lascar, fato que aponta para as significações próprias de um domínio técnico já bastante grande à época. Na mesma sala, há uma grande vitrine em que se observa a sequência tecnológica demonstrada pela ação do homem americano sobre pedras lascadas, sendo expostos exemplares com datações de no mínimo 50 anos, podendo chegar a 100 mil anos - vestígios mais antigos da ocupação humana na região do Piauí, mais uma vez num movimento de oposição aos sentidos produzidos pelas formulações da teoria de Clovis-first (GAUDÊNCIO, 2018). Na sequência, visualizam-se pedras com uma elaboração técnica mais aprimorada até se chegar a um machado polido (Figura 18) encontrado associado a uma fogueira, cujos carvões foram datados em 9 mil anos, o que demonstraria que a técnica de polimento já era conhecida na região. Há uma continuidade do aperfeiçoamento técnico, chegando-se à produção da cerâmica. E, como fim da sequência, apresentam-se pedaços de louça, colocando-se o traço distintivo entre o modo de produção de instrumentos pelo homem americano e o europeu, o que também diz sobre seu contato, sobre a possível sobreposição da técnica europeia à constituída em solo brasileiro. Esse domínio da técnica instaura um modo próprio de relação entre o homem e o mundo, mediado por instrumentos, já que a produção de ferramentas tem como efeito a alteração daquilo que se concebia por defender, pescar, caçar e cultivar a terra.

 

Uma imagem contendo mesa, edifício, luz, noite

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Figura 17 - Ponta de projétil.

Fonte: A autora (2014).

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Figura 18 - Machado polido.

Fonte: A autora (2014).

 

 

Há uma outra vitrine em que se expõem diferentes instrumentos forjados em diferentes matérias-primas, podendo-se observar a existência de raspadores (Figura 19), pedras utilizadas como batedores, pedras lascadas e retocadas, mãos de pilão, torno em pedra, assim como, a existência de cachimbos (Figura 20) que podem ter por volta de 2 mil anos, além de adornos (Figura 21) como tembetás e colares. Há uma outra vitrine com materiais em metal encontrados na região. Como também uma parte histórica que apresenta cerâmicas elaboradas pelos primeiros habitantes da região já em contato com o europeu, marcando um novo modo de relação entre sujeitos, técnicas e matérias-primas. Um novo modo de significação.

 

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Figura 19 - Raspador.

Fonte: A autora (2010).

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Figura 20 - Cachimbo.

Fonte: A autora (2010).

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Figura 21 - Adornos.

Fonte: A autora (2010).

 

 

No mezanino, a sala da morte aborda a questão dos rituais funerários (Figuras 22, 23 e 24), é fundamental compreender que “os  enterramentos  foram  feitos  dessa  ou de outra  maneira não por acaso, e sim porque os grupos humanos possuem valores sociais, morais e religiosos, que  podem  ser  observados” (LOURENÇO, 2015, p.6). Mais que isso, vejo funcionar, a partir da exposição dos esqueletos (Figura 25) encontrados nas escavações uma relação entre vida e morte, são corpos (mortos) de sujeitos, homens, mulheres e crianças, que trazem em si o traço histórico, a marca das determinações socio-histórico-ideológicas que os atravessaram em vida. Não há corpo que não esteja investido de sentidos e que não seja o corpo de um sujeito (ORLANDI, 2012). Observarmos os rituais de enterramento pré-históricos permite-nos perceber a preocupação do homem americano com o corpo, colocando-os em urnas cerâmicas, buscando preservá-los, o que já parece apontar para uma relação com a religião. Como assevera Hashiguti (2008), a memória está no corpo e no olhar para ele, um corpo de memória. “O corpo [ainda que transformado em esqueleto] afetado pela memória discursiva determina e é determinado historicamente tanto por aquele que olha quanto por aquele que é olhado. Um gesto de interpretação que se dá pelo corpo revestido ideologicamente” (DIAS; COSTA, 2017, p.93), seja o ele o do homem americano, do pesquisador ou do visitante.

 

Uma imagem contendo no interior, cama, mesa, escuro

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Figura 22 - Enterramento Tríplice.

Fonte: A autora (2010).

Uma imagem contendo no interior, escuro, tigela, comida

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Figura 23 - Enterramento em urnas funerárias.

Fonte: A autora (2012).

 

 

Uma imagem contendo no interior, mesa, monitor, computador

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Figura 24 - Urnas funerárias em cerâmica.

Fonte: A autora (2018).

Uma imagem contendo escuro, voando, luz, mesa

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Figura 25 - Esqueleto encontrado na região da Serra da Capivara.

Fonte: A autora (2010).

 

Um fecho aberto

O museu está vivo. Pulsa. Trata-se de um espaço significante em que o acontecimento se dá de modo singular. Museu, para quê? Para individuar sujeitos, para se constituir como lugar de memória, para a própria possibilidade de prática de significação. Em nosso empreendimento, buscamos compreender como o Museu do Homem Americano, instituição ligada à circulação de saberes sobre sujeitos que (se) significam a (na) povoação nas/das Américas, é dito pela Fundação que o administra, assim como (se) diz (em) sua materialidade, numa forte e constitutiva relação com o Parque Nacional Serra da Capivara. Para além daquilo que me fora possível compreender, muitos são os questionamentos, muitas são as inquietudes que ficam e produzem em mim uma intensa vontade de me lançar à continuidade desses gestos analíticos. Produz-se aqui um efeito de fechamento para este texto, já apontando para sua incompletude constitutiva e um devir.

 

Referências

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VENTURINI, M. C. Imaginário urbano: espaço de rememoração/comemoração. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2009.

 

[1] Vídeo disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=cl9YGAdKL_0>. Acesso em 07 de junho de 2020.

[2] Formulação de Eduardo Guimarães sobre o verbete casa para a Enciclopédia Discursiva da Cidade (ENDICI). Disponível em: <https://www.labeurb.unicamp.br/endici/index.php?r=verbete%2Fview&id= 102>.

[3] Formulação de Eduardo Guimarães sobre o verbete casa para a Enciclopédia Discursiva da Cidade (ENDICI). Disponível em: <https://www.labeurb.unicamp.br/endici/index.php?r=verbete%2Fview&id= 102>.

[4] De acordo com ICMBIO (2020), 16 condutores cadastrados são moradores do entorno imediato do Parque Nacional Serra da Capivara. Disponível em <https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/visite-os-parques/condutores_credenciados_parna_serra_da_capivara_13julho2020.pdf >

[5] Segundo o ICMBIO (2020), “A guiagem (obrigatória) é paga à parte para os condutores locais cadastrados junto ao Parque Nacional da Serra da Capivara”. Disponível em <https://www.icmbio.gov.br/portal/visitacao1/unidades-abertas-a-visitacao/199-parque-nacional-da-serra-da-capivara>.

[7] Discursivamente, distingue-se «segmentação linguística» com que opera a análise frasal de «recorte discursivo» com que opera a análise discursiva. Tendo, neste momento da análise, como materialidade de análise o texto, o recorte se apresenta como uma unidade discursiva em que se pode compreender a interdiscursividade em funcionamento (LAGAZZI, 2011).  Orlandi (1984, p.14) toma o recorte como uma unidade discursiva, “fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação”.

[8] Nesse trabalho, pensamos a divulgação científica não apenas ligada ao jornalismo científico, mas ao modo como, no museu, as práticas científicas são colocadas em circulação a partir de uma versão que autoriza sujeitos não-especialistas a lê-las.

[9] Para Lagazzi (2011), a materialidade é o modo significante pelo qual o sentido se formula.