O cheiro e alguns ascos: imbricações materiais entre as obras Parasita e A Metamorfose


resumo resumo

Liliane dos Anjos



O gerente, porém, desde as primeiras palavras de Gregor, já tinha lhe dado as costas, [...] os lábios abertos, demonstrando asco.

 

Kafka – A Metamorfose

 

Das condições (in)sensíveis

Todos nós já passamos por alguma experiência na qual reconhecemos o perfume de um conhecido em algum lugar incomum. Esse momento pode desencadear sentimentos muito diferentes, que variam de saudades da infância a completa repulsa por determinada pessoa ou situação. É contemporâneo a nós atribuirmos, sem qualquer esforço intelectual, essa experiência à memória olfativa; todavia, a curiosidade humana para desvendar os mistérios dos odores não é algo recente. Ela remonta à Antiguidade[1], quando médicos insistiam na ideia de que, dentre todos os órgãos dos sentidos, o nariz, por sua aproximação com o cérebro, seria a origem dos sentimentos humanos.

Nas próximas páginas, gostaria de refletir sobre o cheiro. Especificamente, sobre o modo como a memória olfativa pode ser atravessada pela memória discursiva em seus trajetos. Interesso-me, pois, pelas discursividades que permitem algumas interpretações no momento em que lidamos com o cheiro do outro, por isso, recorro ao dispositivo da Análise de Discurso de linha materialista (doravante, AD) como tentativa de dar conta da parte que me cabe na curiosidade a respeito dos mistérios mencionados. Uma curiosidade que vem se especificando à medida que conheço um pouco mais os dispositivos teóricos e metodológicos da AD e suas brechas para a compreensão de diferentes materialidades significantes (LAGAZZI, 2009).

Alguns passos foram dados nessa direção[2]. Contudo, foi recentemente, ao me deparar com a narrativa fílmica de Parasita (2019), que me dei conta da possibilidade de avançar em algumas questões a respeito dos odores. Refiro-me ao cheiro em relação ao sujeito que, em sua opacidade discursiva, abre-se para possibilidades de imbricação com outras redes significantes. Parasita, longa-metragem dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-Ho, vencedor do Oscar de melhor filme em 2020, se constitui, pois, como o objeto principal desta breve investigação, possibilitando indagações em torno do estatuto do cheiro no audiovisual e do modo com a resistência simbólica irrompe no entrecruzar do corpo, do gesto, da língua e do cheiro, em cenas que vão explorar, ao máximo, laços e limites sociais.

 

O filme

Em Parasita, somos apresentados à família Kim, composta por pai, mãe, filho e filha. Moradores de um subúrbio na Coreia do Sul, a família vive em condições precárias, em uma espécie de porão em um bairro de Seul. Um pequeno espaço, de onde é possível ver o mundo de uma perspectiva inferiorizada: por uma greta no nível do chão. Desempregada, a família tenta fugir como pode de sua precária condição de vida, até o momento em que o filho, o jovem Ki-taek, tem a oportunidade de ministrar aulas particulares de inglês para a filha de uma família rica, os Park.

O núcleo familiar de classe alta recebe Ki-taek como professor. Agora com um novo nome, Kevin, e portando um diploma falsificado que o torna apto à vaga, ele passa a conviver com a família Park. Esse novo emprego desencadeia uma série de ações que farão, pouco a pouco, os Kim empregarem-se na luxuosa mansão. Isso se dá por meio de trapaças pelas quais os antigos empregados dos Park vão sendo sabotados e, um a um, perdem espaço na casa para os novos empregados[3].

O modo como isso ocorre vai apagar os laços de parentescos dos Kim: eles recebem novos nomes e comportam-se como verdadeiros desconhecidos na presença dos patrões. Um plano perfeito, não fosse o cheiro.

 

O cheiro

A relação entre os membros de cada uma das famílias desperta a atenção. A família Kim é textualizada no filme em seus sonhos conturbados pela vida difícil, em seu companheirismo, que, em diversos momentos, aproxima-se de conluio. Na convivência no subsolo, sem limites físicos fortemente estabelecidos, pai, mãe e filhos se misturam em uma cumplicidade orgânica: eles fazem alguns bicos juntos, comem juntos, planejam seus golpes juntos, embebedam-se juntos. Diferente da família abastada que, no frio espaço da luxuosa casa, mostra-se desempenhando papéis bem definidos em sua vivência diária, os Kim são apresentados em uma unicidade sintomatizada pelo cheiro. Um cheiro que, em dado momento da narrativa, é notado pelo filho mais novo dos Park, Da-song.

 

Dada a forte ameaça à trapaça orquestrada, a família Kim reúne-se para decidir o que fazer em disfarce ao cheiro relatado pelo garoto. Enquanto o Sr. Kim sugere individualizar os materiais de higiene pessoal, sua filha, Ki-Jung, sentencia: o cheiro é proveniente do semiporão, mostrando a insuficiência das mudanças sugeridas. Aqui, resta delineada uma importante marca significante: o modo como a inscrição do cheiro se dá atrelada à casa dos Kim.

 

 

 

 

 

 

 

A casa, elemento crucial na narrativa, é notada como espaço que constitui a família Kim. Um espaço que se imiscui nos sujeitos, numa relação naturalizada pela convivência e que é ameaçada pela invisibilidade do cheiro que escapa. O cheiro, até então imperceptível para a família, provoca uma tensão entre as relações. Aliás, as tensões provocadas pelo cheiro, pelo modo como é representado imaginariamente, afeta os processos de (re/des)conhecimento dos sujeitos, com destaque para a figura do Sr. Kim.

Quando o cheiro dá os primeiros sinais de protagonismo, alinhavando momentos cruciais da narrativa, tem-se aí um importante ponto de análise daquilo que se apresenta como uma materialidade discursiva particular. Marcas significantes que me levam a rever seu estatuto no processo de produção de sentidos, uma vez que, em sua interseção com o corpo, o espaço e a língua, torna-se lugar de conflito, manifestando tensões sociais que eclodem na relação entre as famílias. Espaço do político, da disputa de sentidos, o cheiro no filme apresenta-se como uma materialidade significante que não poderia ser explicada apenas em termos de notas olfativas.

Nesse meu esforço de compreensão discursiva do cheiro, penso ser possível descrever o modo como ele se constitui e se formula[4] a partir dos limites impostos pelo material, no gesto cadenciado de interpretação e descrição de Parasita. De imediato, chego à questão da volatilidade e invisibilidade dessa materialidade, como primeiro ponto a ser considerado na investigação[5]. Uma vez que o cheiro apresenta impossibilidades no que diz respeito a sua descrição e apreensão, afinal estamos lidando com uma materialidade impalpável, sem início ou fim (o odor não parou de ser emanado só porque Da-song o notou) – à primeira vista, faz parecer que estamos diante de um projeto inexequível. Mas só à primeira vista. Sabemos que o domínio discursivo não é o domínio da experiência sensível, cujo pressuposto se assenta em uma subjetividade solipsista. A questão não é o que eu vejo ou apreendo do que eu vejo, mas a prática interpretativa a respeito do objeto discursivo abordado. Ficamos, assim, diante da densidade dos sentidos, das contensões de sentidos impostos por/na interseção do cheiro com outras formas materiais. A discussão caminha, portanto, para a compreensão de como o cheiro dá corpo aos sentidos a partir de sua relação com outras materialidades significantes.

 Em um gesto analítico, proponho considerá-lo como uma materialidade significante flagrante, analisável graças a flagras, à possibilidade de (re)formulações engendradas a partir de imbricações entre diferentes materialidades: o cheiro no corpo, o cheiro no gesto, o cheiro no/do espaço. Quero dizer com isso que, apesar de sua opacidade, o que diz de sua materialidade significante particular, o cheiro é passível de ser textualizado na/pela língua (como é possível notar nas falas dos personagens de Parasita), em/por gestos simbólicos (tapar o nariz, franzir a testa, afastar-se ou aproximar-se do objeto da emanação) e no espaço (cheiro de lixão, cheiro de gueto, cheiro de shopping).

Uma materialidade significante flagrante investida de sentidos, os quais, como sabemos, não se originam no sujeito, fazendo parte de um trabalho ideológico cujas determinações históricas permanecem rarefeitas. Nesse sentido, para especificar a questão, invoco aquilo que procurei chamar de memória da olfação. Chamo a atenção para um deslocamento imperativo: em lugar de memória olfativa, opto por memória da olfação, sendo a olfação termo utilizado por Alain Corbin (1987) em sua pesquisa historiográfica sobre os cheiros, traduzida para o público brasileiro como a obra Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX.

Corbin fará menção a uma revolução olfativa operada a partir de meados do século XVIII. É essa conjuntura que irá desenhar, a partir de diferentes discursividades, compreensões da olfação ligadas a um movimento estético que concentra sua atenção na sensibilidade humana inescapável às imposições dos odores. Diferente da visão, fonte de certezas intelectuais (CORBIN, 1987, p. 111) – cujo papel incontestável se manifestava nos tribunais –, o olfato era o sentido que melhor revelaria as particularidades, as experiências de intimidade, que vão da sensibilização poética com o cheiro de uma flor aos odores dos excrementos corporais, ambos ligados a processos de individualização das práticas sociais vivenciados pela sociedade europeia daquele século. O autor recupera, em sua argumentação, testemunhos, fatos históricos, arquivos médicos e textos literários pelos quais é possível compreender o alcance dessa revolução perceptiva. Há, ao longo de sua obra, uma demonstração de como o discurso médico e higienista suscitou um ideal de desodorização, com vistas a impedir os miasmas, a putrefação do ser, como forma de demonstrar uma verdadeira repulsa aos cheiros que emanavam do social.

 Diferentemente da memória olfativa, presa a uma suposta transparência, percepção empírica e automática (como se o cheiro fosse resultado exclusivo das experiências individuais), compreendo que a memória da olfação seria passível de atualizações, conforme Cobin demonstra em sua leitura do século XIX, a partir do excerto a seguir:

A olfação se acha engajada no processo de refinamento das clivagens e das práticas sociais, refinamento esse que caracteriza o século XIX. O jogo sutil das atmosferas individuais, familiares e sociais contribui para a ordenação das relações reguladas como repulsas e afinidades, permite sedução, dispõe do prazer dos amantes e participa, ao mesmo tempo, do novo recorte do espaço social (CORBIN, 1987, p. 181).

 

Nesse sentido, a memória da olfação faz ressoar, por exemplo, a gestão burguesa do olfato. Corbin menciona o desenvolvimento de todo um sistema de esquemas de percepção baseado no primado da suavidade, em contraposição ao odor proveniente do suor do trabalhador braçal, do labor próprio às camadas populares. Essa relação pobreza-cheiro, que vem sendo historicamente significada e atravessada pelos modos de interpretação do espaço, potencializa nossas compreensões.

No imaginário social, o cheiro de pobre tem limites bem definidos: a favela, os andaimes, o galpão de carga e descarga, prostíbulos, lixões. Cheiro presente nas aglomerações em ônibus, metrô, ou quaisquer meios de transportes das classes populares. O cheiro do suor resultante de um dia de trabalho pesado, braçal, ou da moradia que pode sintomatizar carência de saneamento básico, como marca de um estrato social. Essa normatização do cheiro como mera percepção sensorial transparente do espaço e dos sujeitos é administrada pelo imaginário como bom ou ruim, aprazível ou repulsivo, como suave ou insuportável.

Isso me leva à especificidade da imbricação cheiro-espaço. Ela coloca em jogo o entendimento de que, também, o espaço faz parte de uma evidência que supõe uma possível neutralidade (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019). A evidência do espaço constitui-se como um gesto epistemológico formulado ao lado da evidência do sujeito e da linguagem, ao qual a autora elucida da seguinte maneira:

 

O que está em jogo numa visão discursiva materialista, portanto, é o mundo não enquanto espaço físico em si, independente do sujeito, mas enquanto espaço apreendido e significado por ele, do qual ele é dependente. Isso nos conduz inexoravelmente à questão da percepção sensível, a uma definição do papel da linguagem na constituição histórica da relação entre sujeito e objeto, entre a matéria sensível do corpo (sua capacidade sensorial) e do espaço (qualidade dos objetos) (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019, p. 137).

 

Reitero minha filiação ao que diz Rodríguez-Alcalá, na compreensão de que a apreensão sensorial do espaço e do corpo não se dá narcisicamente. Mais do que estímulos químicos ou físicos, essa apreensão está “afetada (mediada) pelas significações anteriores atribuídas a esses objetos na história, sedimentadas numa memória perceptiva e espaço-temporal de natureza social e política” (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2019, p. 138).

A percepção sensível do aroma, como não-transparente à ordem simbólica, se opõe a uma mera tradução de sentimentos, impulso sensorial centrado no sujeito, sendo resultado, todavia, de processos simbólicos cuja divisão dos sentidos se opera na história.  Isso nos leva, invariavelmente, aos trabalhos de Suzy Lagazzi (2013, 2017, 2019), que reforçam a premissa segundo a qual é a linguagem a materialidade do discurso, devendo ser encarada em suas diferentes materialidades significantes, entre elas, o cheiro. Ou ainda, à noção de abertura do simbólico (ORLANDI, 2012), pela qual ficam demonstradas as diferentes formas materiais significantes, quer sejam verbais ou não.

Apesar de todas as dificuldades apresentadas pelo cheiro (efemeridade e invisibilidade), na construção de Parasita, ele é apresentado ao espectador como elemento central para o desenvolvimento da narrativa. Ele delata, individualiza, singulariza e, ao mesmo tempo, congrega o núcleo familiar pela emanação singular da casa. O cheiro (des)constrói divisas e relações sociais, (des)organiza sentidos e, no fio do audiovisual, ameaça a manutenção dos cargos conquistados, marcando permanentemente as ações tomadas pelo pai da família ao final do filme.

As cenas descritas anteriormente, porém, não são as únicas em que o cheiro toma corpo. Nos fotogramas abaixo, o cheiro evidenciado na fala descortina repulsas veladas e, segundo o chefe da família Park, passa dos limites (limite é, aliás, condição sine qua non na relação com seus empregados). Mas o cheiro, aqui e ali, extrapola. O odor, que atravessa a janela do carro e alcança o patrão, ultrapassa os limites sociais aceitáveis. Seria o odor de pano fervido? O cheiro de homem velho? O hálito do metrô?  Não há uma única ancoragem entre o cheiro do Sr. Kim e um sentido que lhe dê conta. Há, contudo, uma profusão de sentidos que mescla sujeitos, espaços e condição social.   

 

Os limites

Momentos antes de encontrar-se escondido embaixo da mesa (na série de fotogramas acima) aqui estava o Sr Kim: na sala dos patrões, aproveitando de toda a comida e bebidas caras, enquanto os donos da casa estavam ausentes. Neste momento, uma tensão se avizinha. Um possível confronto entre o pai e a mãe Kim, aquele que seria o primeiro embate do casal. Mas tudo não passou de uma troça.

 

Ele acabara de ser comparado a uma barata, pouco depois de revelar o quanto se sentia confortável naquela que poderia ser a casa de sua família. Esse é o nosso lar agora. É acolhedor – dizia o pai enquanto os quatro se refestelavam. 

Acolhedor? Você se sente acolhido? Claro, mas suponha que Park entre agora. Sabe o que seu pai faria? Ele correria e se esconderia como uma barata. Crianças, sabem em nossa casa, quando acendemos as luzes e as baratas dispersam? Sabem o que quero dizer?

Afetado pela comparação estabelecida por sua mulher, o Sr. Kim se opõe veementemente a ela, dizendo estar cansado de tudo aquilo. Aparentemente enfurecido, ele derruba as comidas e bebidas da mesa, segura a esposa pela gola da camisa, mas, ao contrário do que se espera, a mulher começa a gargalhar. Gesto que esconde os primeiros sinais de mudança do Sr. Kim.

As gargalhadas, a pilhéria em cena, joga com a crueldade da comparação do homem a um inseto. Desvia e pincela de sutilezas questões que mexem com a identificação subjetiva do Sr. Kim e que alimentam, pouco a pouco, sua mudança. Em diversos momentos, o humor construído na chicana da família constitui-se como modo de interpretação de uma dura realidade, ainda que não seja capaz de evitar as rupturas no processo de identificação dos sujeitos.

Já os patrões, por sua vez, têm seus modos peculiares de estabelecer limites. O gesto de “tapar o nariz”, como uma textualização de repulsa, é definidor na relação com os Kim. O que me leva a reiterar a importância da imbricação material do cheiro com o corpo, assumindo a forma de um ato simbólico interpretado como asco, nesse caso, asco do outro. Consequentemente, ficam marcados ali limites bem definidos entre sujeitos: oposição entre aquele de quem o cheiro emana e aquele que o sente.

 

 

 

 

 

 

Nota-se, com isso, que as formas de vivenciar socialmente a alteridade também passam pelo aroma. Em A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente, Haroche (2008, p. 201) levanta a hipótese de que os modos de funcionamento sensoriais “afetam a capacidade de vivenciar sentimentos e, em particular, o sentimento de existência do eu e do outro”. Dito de outro modo, as maneiras de sentir, sócio e historicamente determinadas, “revelam, participam e induzem, com base em formas sensoriais inéditas, transformações profundas nos processos de subjetivação” (HAROCHE, 2008, p. 199). Logo, a meu ver, elas fazem parte do processo de especificação da existência do sujeito no simbólico, da imposição de raias de sentido que fragmentam as relações em sociedade.

Nessa perspectiva, a obra de Haroche (2008) traz algumas lições importantes. Ao estabelecer uma leitura genealógica das categorias de indivíduo e sujeito, do Renascimento à atualidade, a autora estabelece um percurso teórico no qual procura refletir a respeito dos registros dos sentimentos e dos sentidos. Em seu capítulo final, Haroche nos apresenta as condições históricas das maneiras de sentir e, ainda que por um “enfoque transdisciplinar entre sociologia, antropologia e psicologia” (HAROCHE, 2008, p. 200), acaba, nesse ponto, por se aproximar das ideias de Corbin aqui mencionadas. A história das maneiras de sentir se revela, segundo ela, por uma hierarquia dos sentidos, traduzindo-se pela prevalência de determinados sentidos sobre os outros. De modo a ilustrar essa questão, ela menciona que, enquanto na Idade Média era o tato, juntamente com a audição, o sentido considerado como o mais importante; na modernidade contemporânea, o predomínio dos sentidos recai sobre a visão. Ela sugere, então, que uma forma de contrariar a indiferença, o narcisismo e a frieza próprios às formas de individualismo contemporâneo seria nos debruçarmos sobre o papel do tátil para possibilitar vínculos entre os sujeitos.

 Ainda que seu objetivo, nos limites do referido capítulo, seja demonstrar como as sociedades contemporâneas presenciaram mudanças nos registros do sentir, potencializadas pelo avanço tecnológico que, por sua vez, vem produzindo consequências no funcionamento da subjetividade, a discussão ali desenvolvida toca no ponto que me interessa particularmente: aquele em que estão postos, em termos históricos, os modos de funcionamento sensoriais, não somente em termos de natureza humana.

Com isso, permito-me desviar de qualquer perspectiva psicologizante que possa escapar da leitura de Haroche, ao que retomo Pêcheux (1990) para reafirmar que a percepção imediata deve ser compreendida em sua eficácia ideológica, mas, nem por isso, deve ser negada. A percepção de um aí está, aí nunca estará, este é, este não é mais, expõe os complexos processos de identificação em um jogo de formas de linguagem que permuta “o presente com o passado e o futuro, [...] a coincidência enunciativa do pronome eu, com o irrealizado nós e a alteridade do ele (ela) e do eles (elas)” (PÊCHEUX, 1990, p. 8). Limites observáveis que explicitam o jogo da linguagem e os conflitos que lastreiam as relações em sociedade.

 

Alguns ascos

 

Parasita é significante que inquieta. O fato de ter sido escolhido para nomear o filme é razão suficiente para suscitar questões: que outras possibilidades de escutas se abrem para o significante “parasita”? Que outros sentidos determinam sua inscrição no social? Pensar em parasita é expor o significante ao trabalho da memória em busca de novas compreensões. E é a literatura, mais precisamente a clássica novela de Franz Kafka, A Metamorfose, que invoco aqui; concernida com os trajetos de sentidos de parasita, num exercício possível graças à paráfrase enquanto procedimento analítico discursivo.

Publicado em 1915, a obra ficou conhecido por levar às últimas consequências a relação homem-inseto. Sinonímia descrita desde o começo da narrativa: Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso (KAFKA, 2010, p. 11). Com uma bizarra naturalidade, Gregor encara sua mudança física e “vê-se” na condição de inseto, ou nas palavras de Carone (2007), na condição de um parasita para a sua família. Sem dúvidas, a novela kafkiana expõe uma tensão contraditória entre ser isso ou aquilo. Cisão subjetiva que se coloca em regularidade quando em paralelo com o filme: essa zona intermediária que congrega e perturba os limites entre humano e não-humano, homem e inseto.

 Nas tomadas finais de Parasita, o Sr. Kim esconde-se em um bunker subterrâneo, ainda mais profundo e sujo que o seu lar, o semiporão em Seul. O esconderijo, que mais se assemelha a uma toca, fora construído pelo arquiteto da mansão dos Park e, sem que eles soubessem, havia abrigado, ao longo de vários anos, outra família, composta pelo casal Moon-Gwang, sua antiga empregada, e Geun-sae. Comendo e bebendo às expensas dos Park, o casal, ainda mais pobre que os Kim, oscilava entre viver no subterrâneo e, vez ou outra, desfrutar do conforto da casa, quando os patrões lá não estavam (semelhanças que aqui se fazem sintomáticas). O homem, Geun-sae, que passa a maior parte do tempo escondido no bunker, é representado em sua admiração doentia pelo dono da casa.

Em dado momento da trama, Geun-sae escapa de seu esconderijo e, em um acesso de loucura, acaba por assassinar a filha Kim, protagonizando uma cena crucial para o desfecho do longa. Esse é o primeiro contato entre ele, o “homem-parasita”, e o Sr. Park. Encontro inusitado que se dá em uma interlocução na qual destaco uma palavra e um gesto. A palavra: Respeito!

 

E o gesto:

 

 

 

 

O cheiro do “homem-parasita” incomoda sobremaneira o Sr. Park. O gesto de tapar o nariz com os dedos desencadeia um profundo abalo no Sr. Kim, que presencia aquela cena, enquanto sucumbe na impotência de não poder socorrer sua filha à beira da morte.  

Sr. Kim tem um acesso de fúria. Lembremos: ele já havia sido comparado a uma barata e, até mesmo, o seu cheiro, comparado a um pano fervido, mas, naquele momento, viu-se em seu limite. A comparação em curso era outra. Era uma comparação entre o Sr. Kim e Geun-sae, relação a textualizada no gesto de tapar o nariz e que colava a imagem do Sr. Kim a um ser parasitário. Tanto quanto o odor de Geun-sae, o gesto de tapar o nariz tornou-se insuportável, levando o Sr. Kim a matar o seu patrão. Ele, então, acaba fugindo e, paradoxalmente, acha abrigo no mesmo lugar de onde saiu o ser que tanto repudiava.

Voltemos a Kafka.

Em A Metamorfose, tornar-se inseto representou uma mudança no modo como os familiares de Gregor o tratavam. Antes dependentes financeiramente dele, pai, mãe e irmã passaram a tratá-lo com hostilidade e desprezo, inserindo-o em um espiral de desumanização. Um processo que cria laços entre o filme e a obra literária, atingindo o modo como os sujeitos são reconhecidos e se reconhecem. Não mais quem, agora aquilo, Gregor toma uma aparência completamente estranha[6].

 

“Com isso, Gregor entendeu que sua aparência continuava insuportável para a irmã e que ela devia fazer um grande esforço para não sair correndo, mesmo quando via apenas uma parte do corpo dele escondido sob o sofá.”

“Vejam só o porqueirinha!”

“O pai, com expressão hostil, cerrou os punhos, como se quisesse empurrar Gregor para dentro do quarto.”

“[...] desde as primeiras palavras de Gregor, já tinha lhe dado as costas e o fitava com a cabeça ligeiramente voltada para trás, os lábios abertos, demonstrando asco.”

 

Poderia, nesse momento, explorar as tantas regularidades presentes nessas duas obras[7]. Mas não. O propósito da intervenção de A Metamorfose nesta minha reflexão é trazer à tona o asco. O nojo que une os Samsa aos Kim, no jogo discursivo de definir quem deve ou não ser considerado humano.

O nojo, explorado nos gestos e ditos, sublinha a humilhação sofrida pelos sujeitos. Quer seja no âmbito familiar ou trabalhista, a humilhação constitui aqui relações simbólicas pautadas em processos de identificação que expõem os sujeitos a sentidos de incapacidade, inferioridade e impotência. “O melhor, o pior, o rico, o pobre, o superior, o inferior, o que tem a existência garantida e o que não deve existir” (ORLANDI, 2012, p. 203), todos estes são modos de o sujeito situar-se simbolicamente no social. Um processo que se torna central nas sociedades democráticas contemporâneas, conforme sinaliza Haroche (2008, p. 169):

 

Trata-se, então, de compreender a humilhação pelo fato de o indivíduo ser situado em posição de passividade, de dependência, e experimentar um sentimento de impotência e frustação, de intensa humilhação: confrontado à complexidade e à opacidade crescentes, não consegue mais encontrar sentido na sociedade, nem em si mesmo.

 

 Isso não quer dizer que não haja possibilidade de deslocamentos nas relações apontadas. Se a repulsa de um sujeito em relação ao outro demarca muros sociais, estigmatizando sujeitos, a perspectiva discursiva nos permite contar sempre com a possibilidade da deriva dos sentidos na história, o que é demonstrado nos materiais. Há cheiros confundidos entre espaços, coisas e pessoas que flagram a incompletude da linguagem, demonstrando o ir e vir das interpretações, assim como há, nos limites dos materiais analisados, um não-encerramento dos sentidos nas narrativas, e isso, quer seja a partir do sonho/desejo do filho Kim de comprar a mansão para libertar seu pai do confinamento; quer seja, na narrativa kafkiana, nas elucubrações do protagonista, indicativas de uma humanidade não condizente com sua “forma repulsiva e patética” (KAFKA, 2010, p. 57). Definitivamente, o que resta, em ambos, é a impossibilidade de fechamento para os sentidos.

 

Considerações finais

Em meu propósito de examinar algumas marcas significantes no filme Parasita, a análise topou com descaminhos dos sujeitos em prática sociais complexas, não resumidas à mera oposição. Enquanto dialogava com a obra A Metamorfose, as relações entre cadeias significantes atestavam para aquilo que não estava visível (afinal, Parasita faz gritar as invisibilidades!), ao mesmo tempo em que marcavam e dilaceravam as subjetividades colocadas nas narrativas.    

O trabalho que elaborei nessas breves páginas explora a compreensão de que é a linguagem a materialidade do discurso (LAGAZZI, 2009, 2017) e a noção de que o simbólico é aberto (ORLANDI, 2012), contando com diversas formas materiais. Assim, no trabalho de análise do filme, o cheiro marcou a narrativa demonstrando que estaríamos lidando com uma materialidade própria, mas que, dado a sua efemeridade e impossibilidade de segmentação e reprodução, propõe desafios analíticos encarados preliminarmente neste artigo.

Em um gesto inicial, atribuí ao cheiro a designação materialidade significante flagrante, uma vez que é na imbricação material com outras cadeias significantes que o cheiro se investe de sentidos e sinaliza, em flagrantes, uma atualização da memória da olfação pela qual sentidos estão determinados. Entre os gestos de análise está, também, a minha opção pela noção de memória da olfação, a partir da reflexão de Corbin, com a finalidade de demarcar a diferença com relação à memória olfativa, cujas nuances idealistas não condizem com as bases teóricas deste trabalho.

Por fim, menciono que estas páginas não passam de um esforço de compreensão, motivado pela ideia de que a AD já nos oferece caminhos para lidarmos com o desafio analítico colocado à mesa pelos odores. Mais um trabalho político sobre o significante. Voltar-me para o cinema e para a literatura, como gestos de leitura que são (PÊCHEUX, 2014), contribuiu sobremaneira para a escuta de outras práticas de interpretação do mundo, em imbricações materiais outras. A análise levou-me a um alhures ao indicar que, em algum lugar entre o cheiro e o corpo, entre o gesto e o dito, há diferentes possibilidades de existir na história. Há fragilidades (e crueldades) nos muros que unem alguém a isto.

 

Referências

CARONE, M. O parasita da família: sobre a metamorfose de Kafka. Literatura e Sociedade, v. 12, n. 10, p. 237-243, 2007. 

CORBIN, A. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

HAROCHE, C. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.

 

KAFKA, F. A metamorfose. Tradução de Lourival Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, 2010.

LAGAZZI, S. Delimitações, inversões, deslocamentos em torno do Anexo 3. In: LAGAZZI, S.; ROMUALDO, E.C.; TASSO, I. (Orgs.). Estudos do Texto e do Discurso. O discurso em contrapontos: Foucault, Maingueneau, Pêcheux. São Carlos: Pedro & João, 2013. p. 311-332.

LAGAZZI, S. Entre o amarelo e o azul. Línguas e Instrumentos Linguísticos, n. 44, p. 290-316,  jul/dez., 2019.

LAGAZZI, S. O recorte significante na memória. In: O Discurso na Contemporaneidade. Materialidades e Fronteiras. INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L.; MITTMANN, S. (Orgs.). São Carlos: Claraluz, 2009, p. 67-78.

LAGAZZI, S. Trajetos do sujeito na composição fílmica. In: FLORES, G.; GALLO, S.; LAGAZZI, S.; NECKEL, N.; ZOPPI FONTANA, M. (Orgs.). Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. v. 3. Campinas: Pontes, 2017, p. 23-39.

ORLANDI, E. Dircurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 3. ed. Campinas: Pontes, 2008.

ORLANDI, E. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 2. ed. São Paulo: Pontes, 2012.

PARASITA. Direção: Bong Joon-ho. Coreia do Sul: Pandora Filmes Distribuidora, 2019. Online. Disponível em: < https://www.telecineplay.com.br/>. Acesso em: 03 mar. 2020.

PÊCHEUX, M. Delimitações, Inversões, Deslocamentos. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p. 7-24, jul./dez., 1990.

PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. 4. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2014, p. 57-67.

RODRÍGUEZ-ALCALÁ, C. Da Evidência do Espaço à evidência da percepção sensível: uma abordagem discursiva. In: ADORNO, G.; MODESTO, R.; FERRAÇA, M.; BENAYON, F.; ANJOS, L.; OSTHUES, R. (Orgs.). O Discurso nas fronteiras do social: uma homenagem à Suzy Lagazzi. v. 1. Campinas: Pontes Editores, 2019, p. 133-144.

 

Data de Recebimento: 02/04/2020
Data de Aprovação: 16/09/2020

 

 

 

 

[1] A prática terapêutica dos arômatas é citada por Corbin (1987) ao descrever as raízes de uma antiga crença a respeito da virtude dos perfumes. Entre seus representantes estariam Hipócrates, Galeno, Criton, todos mencionados por médicos do século XVIII.

[2] Refiro-me ao trabalho conjunto com Romulo Santana Osthues apresentado no IX SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso: “Em cartaz, cheiro de pobre morto: uma necropolítica textualizada na composição de diferentes materialidades significantes”. Aliás, é a ele quem agradeço e, igualmente, a Guilherme Adorno, pelas contribuições e comentários a este artigo.

[3] Enquanto os irmãos Kim ocupam vagas que antes não existiam – as de professores dos pequenos Park –, o motorista da família é substituído pelo Sr. Kim e a empregada, pela Sra. Kim.

 

[4] Como sabemos, o processo de produção do discurso implica as instâncias complementares e mutualmente indispensáveis da constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2008). Por isso, entendo, pelo trabalho de análise iniciado neste artigo, que o processo discursivo do cheiro coloca em pauta a memória da olfação, intervindo com seus pré-construídos aquilo que se formula no corpo enquanto cheiro. 

[5] Reitero que os limites deste artigo não são suficientes para encerrar a questão do estatuto discursivo do cheiro. A ideia, aqui, é trazer a público uma provocação e o desejo de partilhar algumas inquietações em torno da pesquisa de diferentes materialidades significantes.

[6] Enquanto, em Parasita, é o cheiro que denuncia a condição lida como socialmente inferior, em A Metamorfose, a terrível transformação física põe em xeque a humanidade do herói: “ele agora é, aos olhos da família ‘deserdada’ pela metamorfose, apenas um inseto parasita” (CARONE, 2007, p. 242).

[7] Só para citar algumas: o modo como, a partir da metamorfose de Gregor, os membros da família Samsa passam a não se comunicar mais com ele, em contraponto com a não comunicação entre os Kim, não fosse pelo Código Morse, em uma mensagem descoberta por acaso; ou ainda o modo como o quarto de Gregor é transformado em um grande depósito para a família, o que muito lembra a condição do fétido bunker onde o Sr. Kim se abrigou.