1. Habitar a cidade e ser sujeito
Espaços de conflitos e mudanças, as cidades são únicas em suas materializações espaciais. Lugar do possível, do plural e da coexistência de distintas formas de vida, a cidade é a manifestação material dos processos históricos. A cidade é também espaço onde o poder se inscreve, se exerce, se evidencia. Em seus estudos sobre o poder, Foucault (1979, 2008a, 2008b) mostra como a conformação das cidades modernas resulta de uma preocupação do Estado com a gestão e circulação das coisas e das pessoas. Até então, cidades consistiam em espaços difusos, absolutamente heterogêneos, governados por um conjunto de poderes senhoriais.
Ao discorrer sobre o processo de urbanização da França do século XVIII, o pensador argumenta que o aparecimento de uma população operária pobre aumenta as tensões políticas na cidade. Os afrontamentos entre plebe e burguesia passam a se manifestar através de agitações e sublevações cada vez mais numerosas e frequentes. Revoltas de subsistências que culminarão nas grandes revoltas contemporâneas da Revolução Francesa (FOUCAULT, 1979). Foucault afirma que nessa época nasce o que ele chama de “medo urbano”, pequenos pânicos que atravessam a vida urbana:
[...] medo das oficinas e fábricas que estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de desmoronar.” (FOUCAULT, 1979, p.87)
Diante de tantos medos e de uma cidade que crescia, emerge um poder político que busca gerir e esquadrinhar sua população. O modo de governo que tomou como alvo a população foi a economia política, um tipo de saber e prática que deriva de um aparato policial (estado de polícia) constante e ilimitado que teria como objetivo fazer crescer de dentro as forças do Estado. Um aparato que surge numa tentativa molecular de gerir a vida dos sujeitos.
[...] por ter havido urna polícia, isto é, porque se regulamentou a maneira como os homens podiam e deviam, primeiro, se reunir e, segundo, se comunicar, no senso lato do termo "comunicar", isto é, coabitar e intercambiar, coexistir e circular, coabitar e falar, coabitar e vender e comprar, foi por ter havido urna polícia regulamentando essa coabitação, essa circulação e esse intercâmbio que as cidades puderam existir. A polícia como condição de existência da urbanidade (FOUCAULT, 2008a, p. 453).
Essa razão de Estado de poderes ilimitados é confrontada pelo pensamento liberal clássico. Para o Liberalismo, o Estado já não pode encontrar em si mesmo a justificativa de sua existência, ele deve existir para servir a outra coisa que não ele mesmo. Essa outra coisa é a sociedade civil e o mercado. Essa nova arte de governar tem por função “não tanto assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, o crescimento indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício do poder de governar.” (FOUCAULT, 2008b, p. 39).
Segundo o Liberalismo Clássico, os indivíduos seriam naturalmente materialistas e individualistas, sendo capazes de se auto-organizarem. Nesse contexto, caberia ao Estado apenas observar e reconhecer as leis que emanariam naturalmente daquele espaço de concorrência e abster-se de intervir para não atrapalhar seu natural desenvolvimento. Contudo, a História mostrou que a ação descontrolada das atividades econômicas individuais não levou a um funcionamento harmônico da sociedade civil. O Neoliberalismo nasce justo com a intenção de fazer com que o Estado intervenha sobre a sociedade civil para garantir a moldura mercado; para garantir que o mercado aja como regulador ou conformador da sociedade.
Bourdieu também se refere ao espaço como local de poder. Em “Efeitos do espaço” (1997), ele sustenta que em uma sociedade hierarquizada, não há espaço que também não o seja. Assim, se o espaço é o lugar por onde se exprimem as diferenças – e isso é demarcado na conformação da cidade e de sua paisagem –, a casa é também símbolo do espaço social, que exprime distâncias e demarca posições privilegiadas de uns em relação a outros. Uma desigualdade que se materializa tanto em uma geografia simbólica da cidade, quanto nas distintas tipologias arquitetônicas destinadas à moradia.
No que diz respeito à associação entre consumo e produção de distinção, Bourdieu (2011) aponta que, como nas sociedades modernas a nobreza de sangue não é amplamente reconhecida, o consumo é tido como o lugar privilegiado da manifestação das diferenças. Na esteira do autor, Maria Eduarda da Mota Rocha (2010) afirma que a ideia de “estilo de vida” consiste em um conjunto de preferências distintivas pelo qual as classes mais altas marcam sua posição perante as demais. E, nesse “sistema”, os meios de comunicação, sobretudo a publicidade, difundem os códigos para que consumidores possam “ler” a posição social do consumidor através do produto consumido. Assim, podemos inferir que morar é se distinguir e revelar padrões de comportamento e esquemas cognitivos identificados a uma determinada classe social (LOUREIRO & AMORIM, 2005a). Em outros termos, é subjetivar-se e afirmar uma posição.
Por sua vez, numa perspectiva foucaultiana, José Aidar Prado (2013) defende que os meios comunicacionais são dispositivos de convocação biopolítica. Ou seja, são responsáveis por projetar imagens e evocar afetos, ao passo que agenciam (trazem adiante, convidam e produzem) determinadas formas de existência a partir do repertório possível da sociedade. Ciente disso, o marketing imobiliário atua justamente objetivando atender aos desejos e demandas de moradia de cada perfil consumidor. Um olhar atento aos agenciamentos da publicidade imobiliária é capaz de revelar algumas maneiras como experienciamos o urbano e construímo-nos enquanto sujeitos da/na cidade.
Com essa Introdução, desejamos apontar que cidade é espaço privilegiado de gestão de corpos e exercício de poder. Se na cidade nos constituímos enquanto sujeitos, e se o “lar” é a forma privilegiada da afirmação de um lugar no tecido social, nesse artigo buscamos lançar luz sobre um campo discursivo que diz respeito a tais questões: a publicidade de imóveis. Investigamos de que maneira a publicidade imobiliária pode ser lida enquanto prática cultural que revela e agencia formas de ser e estar na cidade. Consiste, portanto, em um campo discursivo que vende não somente diferentes tipos de moradia e maneiras de habitar a cidade, mas que produz formas de vida. Assim, lançamos especificamente um olhar para os anúncios de imóveis destinados às classes alta e média alta veiculados entre os anos 1970 e 2006 no jornal Diario de Pernambuco, veículo que durante décadas foi conhecido por seu robusto setor de anunciantes.
O recorte de classe social do corpus, isto é, a escolha por trabalhar com a publicidade imobiliária direcionada à elite, se sustenta em função do nosso interesse em investigar o discurso corrente através do qual a família e a propriedade privada aparecem protegidas por muros, ou seja, uma forma de vivenciar a cidade marcada pelas interdições. Mesmo sabendo que hoje essa existência murada não é uma exclusividade das elites[1], pressupomos que é nesta classe social que ela se manifesta de forma mais contundente. Justificado o recorte de classe, vamos agora defender o período temporal da coleta do corpus.
2. Os edifícios verticais fabricando desejos e sujeitos
O edifício vertical, apesar de ser uma estrutura arquitetônica recente, dialoga com tipologias que o antecederam: os sobrados altos e magros, que inauguram a verticalidade do Recife. Consistiam em moradias qualificadas, destinadas à emergente burguesia comercial e erguidas nos escassos terrenos de terra firme existentes; em oposição às numerosas e extensas regiões alagadiças onde se assentavam os mocambos, as precárias moradias das classes pobres.
O edifício vertical tal como o conhecemos hoje e cujo a priori histórico é a modernização, aparece no tecido urbano recifense no início do século XX, no âmbito das reformas que buscavam instituir uma agenda modernizante à paisagem da cidade; a exemplo da remodulação da região portuária de 1909, que culminou na destruição de dois terços das edificações da região, como a Igreja do Corpo Santo, e a construção da Avenida 10 de Novembro (atual Guararapes) em 1937, onde foram erguidos uma série de edifícios comerciais, como o Sulamérica Capitalização (1941), o da Caixa Econômica Federal (1942), o Trianon (1941) e o Cine Art Palácio (1937).
Contudo, é na segunda metade do século XX, sobretudo na década de 1970, que a moradia vertical melhor se sedimenta na capital pernambucana. Nesse momento, em decorrência da metropolização, as atividades de tipo urbano superam a antiga base econômica rural (MELO, 1979) e Recife ultrapassa a marca de um milhão de habitantes, figurando em terceiro lugar entre as metrópoles mais povoadas do país, atrás de Rio de Janeiro e São Paulo.
Também nos anos 1970, estavam em pleno exercício um banco público especializado em financiamento habitacional, o Banco Nacional de Habitação (BNH), e as sociedades de crédito e letras imobiliárias, que compunham o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) – mecanismos existentes sob a égide do nacional desenvolvimentismo do governo militar, que buscavam estimular e facilitar a aquisição da propriedade privada através do recurso ao crédito. De início, esses sistemas tinham por finalidade prover a construção e financiamento de casas para famílias de baixa renda, mas, posteriormente, tornaram-se a principal fonte de financiamento para a classe média[2], influenciando fortemente o espraiamento dos edifícios de apartamento ao longo do tecido urbano das grandes metrópoles brasileiras (RONILK, 2015).
Nesse momento, os jornais começam a anunciar uma profusão de edifícios à venda. Sobre isso, Loureiro & Amorim (2005a) mostram que as publicidades foram essenciais para a aceitação do condomínio vertical como forma ideal de habitação para as classes média e alta, exercendo um importante protagonismo em instituir e produzir uma determinada forma de vida e ocupação na cidade.
Proteção coletiva, alcançada por meio de estruturas de condomínio organizadas, substituiu a casa isolada individual como o símbolo de proteção e segurança, valores estes compartilhados e desejados por típicas famílias modernas. De fato, o apartamento alcançou o status da moradia contemporânea ideal, segura e prática, e o marketing habitacional parece saber isso (2005a, s/p).
Nos anos 2000, o edifício vertical já havia se consolidado como opção de moradia das classes média e alta, ocupando parte considerável da paisagem recifense. De acordo com um levantamento realizado pela Emporis em 2018, empresa alemã especializada em mineração de dados sobre imóveis, Recife está em 37º no ranking mundial entre as cidades com skyline de maior impacto visual e em 2º lugar em âmbito nacional, atrás apenas de São Paulo[3]. O horizonte denso da cidade já é marca de um imaginário que a recobre. Filmes, músicas, pinturas e fotografias comumente a retratam como urbe de concreto, dos enclaves.
Apesar do crescimento dos edifícios verticais na paisagem urbana de Recife, os anúncios imobiliários nos jornais, suporte midiático escolhido como fonte de nossa pesquisa, encolheram drasticamente a partir de 2000. Este decréscimo coincide com a diminuição da venda/leitura dos jornais. Uma pesquisa realizada pela Meta Pesquisas de Opinião para a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM) mostrou que em 2010, 70,4% da população nordestina não tinha o hábito de ler jornal. Já de acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2015[4], realizada pelo IBOPE Inteligência apontou que apenas 7% da população brasileira tinha nessa época o hábito de ler jornal diariamente. Tal cenário se distingue dos hábitos de consumo do brasileiro no final do século XX. Por exemplo, em 1985 53% da população brasileira entre 15 e 65 anos tinha o hábito de consumir jornal (BAHIA, 2009).
Em paralelo a essas mudanças nos hábitos de leitura de jornais, a internet vai ganhando força como espaço privilegiado de informação, comunicação e venda de produtos e serviços. Segundo a pesquisa Brasileira de Mídia de 2015, a internet figura em segundo lugar como espaço de maior visibilidade de anúncios, seguido somente da TV. Entre o público que declara acessar a internet, aproximadamente sete a cada dez usuários diz se deparar sempre e/ou às vezes com anúncios publicitários. De acordo com a Pesquisa Global de Entretenimento e Mídia[5], realizada pela consultoria PwC em 2019, o investimento da publicidade digital representa 30% da verba total do setor, um aumento de 33% em relação ao ano de 2014. Tudo isso fez com que o gênero “anúncio publicitário”, pertencente originalmente à mídia impressa, fosse perdendo força gradativamente. Daí, a opção de limitar o recorte temporal dessa pesquisa aos anos 2000.
3. Abrir mão das descontinuidades e acolher as continuidades
Levando em consideração o recorte temporal expandido para seleção do corpus (1970-2006), limitamos a coleta a duas edições anuais do jornal, com uma edição veiculada no primeiro semestre e outra no segundo. As edições sempre correspondiam aos exemplares que circularam aos domingos, dia em que os anúncios são mais numerosos. Tal procedimento rendeu um montante de aproximadamente 4.000 peças publicitárias, o que ainda corresponde a um extenso corpus a investigar.
O objetivo de trabalhar com uma temporalidade alargada (mais de três décadas) foi tentar, na trilha de Foucault, identificar possíveis mudanças, inflexões, irrupções e descontinuidades no discurso da moradia destinada a uma elite, o que seria inviável caso me detivesse exclusivamente em um período histórico curto.
No entanto, no lugar de possíveis grandes descontinuidades ou rupturas no discurso, identificamos uma tendência não só à manutenção, mas à intensificação de certas “matrizes discursivas” nos anúncios imobiliários ao longo de toda temporalidade estudada. Tais matrizes são as seguintes: distinção, valorização da propriedade privada, isolamento/enclausuramento.
Como ficará mais claro adiante, defendemos que isso ocorreu especialmente em função da expansão e solidificação de uma governamentalidade neoliberal no país. Expliquemos: com o passar dos anos, a moradia em edifícios foi gradativamente configurada como um bem de consumo que pode abrigar em si mesma uma série de itens de lazer que, por sua vez, permite ao sujeito viver uma “liberdade” e uma “felicidade” entre muros. Ou seja, trata-se de uma liberdade e de uma felicidade que abdicam do espaço público, do bem comum, para usufruir de espaços e bens privados.
A seguir, comentamos detalhadamente cada uma das matrizes discursivas identificadas. Vale registrar que muitas vezes um anúncio apresenta mais de uma matriz, no entanto, para fins de classificação e exemplificação da matriz, na hora da análise realizamos algumas generalizações.
O recorte de classe social do corpus se sustenta em função da seguinte hipótese de trabalho: são os anúncios imobiliários destinados à elite que prioritariamente propagam uma forma de existência em que a família e a propriedade privada aparecem protegidas por muros[6] e, paralelamente, configuram uma de cidade demarcada por diferenças e interdições. Como são essas as formas de vida e de desenho de cidade que nos interessa estudar, excluímos da análise anúncios referentes às habitações populares.
4. Distinção
Como vimos anteriormente, adquirir um imóvel não significa simplesmente suprir a necessidade de se ter um lugar para morar, para se abrigar. A moradia é um importante signo de distinção. A matriz discursiva que estamos nomeando de “Distinção” é uma categoria ampla que costuma se materializar a partir da discursivização de diferentes características do imóvel. Hoje, por exemplo, os anúncios dirigidos à elite, no intuito de tornar os imóveis desejáveis em ao seu público, falam em Espaço Grill, Espaço Fitness, Varanda Gourmet. Antes eles exaltavam itens como esquadrias de alumínio, circuito interno de TV, interfone ou se valiam de um léxico marcadamente aristocrático: “more na Casa Grande da Rosa e Silva”, “more no bairro mais aristocrático da cidade”, “desfrute o privilégio de ter bons vizinhos” são alguns exemplos.
Tanto no passado quanto no presente, é recorrente a menção a certos aspectos materiais da edificação como à metragem do apartamento e ao número/tipos de cômodos (quarto, banheiro, sala, cozinha, varanda, dependência de empregada, área de serviço, garagem, etc.), bem como a especificação de certos materiais utilizados na construção que são considerados “um diferencial”. Nesse contexto, é comum os anúncios utilizarem modalizadores linguísticos, especialmente adjetivos e advérbios, para qualificar positivamente o imóvel e/ou seus ambientes
Outro importante elemento de distinção é a localização do edifício. No geral, a localização é valorada em função de sua proximidade aos seguintes espaços: frentes d’água (praia, rio, lago, lagoa, etc.), áreas verdes (parques, praças, bosques, reservas florestais, etc.) e centros urbanos repletos de serviços de natureza variada (bancos, escolas, supermercados, shoppings, etc.). Nos dois primeiros casos, os anúncios costumam ressaltar o aspecto idílico de se morar perto do mar ou de uma área arborizada; no último, a facilidade de se ter diferentes serviços no entorno da morada surge enquanto um artifício que atribui valor simbólico à mercadoria em questão. Percebe-se isto no anúncio do Edifício Leme, que evoca o idílio da região praieira e a urbanidade da proximidade relativa ao centro e a serviços, como “colégios, bons clubes e futuro shopping center”.
Fonte: Diario de Pernambuco, 28 de janeiro de 1979
Sobre a questão da localidade, é importante ressaltar que, nos anos 1970, adquirir um apartamento no centro urbano era valorizado, posto que tratava-se do centro comercial e administrativo da cidade. Ao longo dos anos 1980, com o crescimento urbano e gradual degradação da região histórica, esse apelo de venda se retrai. Já as referências à proximidade com os serviços, às frentes d’água e às zonas verdes permanecem.
Outro ponto que também diz respeito à localidade é a economia simbólica dos bairros. Em “A Utopia Urbana” (1975), um estudo sobre Copacabana, no Rio de Janeiro, Gilberto Velho defende que o bairro de moradia é um importante demarcador da estratificação entre ricos e pobres. E, neste sentido, os símbolos atrelados ao local de moradia têm um valor estratégico na vida das pessoas, e a distribuição espacial é fundamental à definição do status social dos indivíduos.
No anúncio do Edifício Vivenda de Casa Forte, o sintagma “No melhor trecho do bairro mais nobre do Recife”, veiculado em 1982, deixa evidente a economia simbólica da cidade:
Fonte: Diario de Pernambuco, 5 de setembro de 1982
A importância simbólica da localização se revela não só na ênfase dada aos bairros nobres onde estão situados imóveis à venda, mas no gesto de renomear bairros menos valorizados e/ou estigmatizados tomando como parâmetro os bairros nobres. Um exemplo desse tipo é o do anúncio de um apartamento situado no bairro da Macaxeira, região de antigas vilas operárias de Recife, que é nomeado como “Nova Apipucos”, zona de antigos engenhos e onde hoje se localizam imponentes residências.
Também não é raro os anunciantes informarem de maneira inapropriada o endereço de um prédio localizado em área menos nobre, identificando-o como estando situado na área referente a um bairro vizinho reconhecido como mais distinto. Loureiro e Amorim (2005b) mostram como é recorrente imóveis localizados em Casa Amarela, um bairro tradicionalmente de classe operária e novos ricos, serem anunciados como se estivessem localizados em Casa Forte, região tradicionalmente ocupada pela antiga aristocracia recifense.
Particularmente nos anúncios veiculados na década de 1970, o aspecto distintivo se manifesta através do emprego de um léxico associado à ideia de aristocracia e ao passado colonial da cidade, como no anúncio do Edifício Senzala, veiculado no DP em 1978.
Fonte: Diario de Pernambuco, 28 de maio de 1978
Apesar de uma maior profusão nos anúncios dos anos 1970, essa racionalidade de valoração de uma estrutura colonial reverbera até os dias atuais. Isso se evidencia de maneiras plurais: na nomeação dos edifícios que ora deixam a mostra um passado colonial escravocrata (Edifício Engenho Casa Forte, Edifício Casa Grande das Ubaias, Edifício Senzala do Megahype, etc.), no uso de estrangeirismos para angariar valor simbólico (Edifício Evolution Shopping Park, Edifício Beach Class Residence, Edifício Golden Life, etc.), e na própria conformação do espaço da cidade. Com relação a este último aspecto, lembremos que a cidade do Recife foi conformada a partir de uma razão moderna aclimatada nos trópicos. Ou, em outros termos, trata-se de um processo traumático que invisibiliza e põe à margem outras formas de existência. Enfim, a colonialidade segue estruturando nossa experiência de cidade (SANTOS, 2009).
Uma outra forma de valorar o empreendimento é associá-los à construtora, à imobiliária ou à incorporadora, valendo-se do prestígio das marcas. A título de exemplo, percebemos no corpus uma série de anúncios que faziam menção direta à distinção implícita no gesto de comprar um imóvel de determinadas empresas do ramo, como “More em Boa Viagem, num Queiroz Galvão”, “Qualidade Moura Dubeux”., “Escolha logo o seu Golden [edifício], pontualidade Dallas”, etc.
5. Valorização da propriedade privada
Essa matriz discursiva põe em cena a seguinte cadeia argumentativa: para se sentir plenamente realizado nessa vida, é imperativo que o indivíduo consiga ter um imóvel próprio e, para que o indivíduo possa realizar essa aquisição, o mercado põe ao seu dispor “