Um olhar discursivo-desconstrutivo sobre representações na Carta Aberta “Contra o genocídio da população indígena”


resumo resumo

Vânia Maria Lescano Guerra
Graziele Ferreira dos Santos



Considerações iniciais

Estamos diante de uma sociedade em que práticas de discriminação ainda são recorrentes, em pleno século XXI. Mesmo depois de tantos casos de extermínio ocorridos na história da humanidade, que destroçaram diversas comunidades, o ser humano é capaz de não se sensibilizar com os afetados. E pior: é capaz de dar continuidade a esse extermínio. A título de exemplo, temos os ocorridos com os indígenas brasileiros, que são detectados desde a chegada dos portugueses ao Brasil. É desumano o que propiciaram aos povos indígenas durante tantos anos de colonização. A convivência entre não indígena e indígena é marcada pela discriminação e exclusão desses povos. A luta por suas terras, tradicionalmente, ocupadas também faz parte dessas comunidades até hoje, uma vez que esses povos originários não conseguem permanecer em suas terras

As leis que os povos indígenas alcançaram no decorrer dos anos contribuíram para que seus direitos fossem autenticados, entretanto, não deveriam nem ter chegado ao ponto de precisar de legislações para conquistar o que já era deles por direito. E mais, essas regularizações foram feitas com o olhar voltado para a sociedade hegemônica e não para os indígenas, como forma de “controle” sobre eles (LUCIANO, 2006). Dessa forma, criaram documentações para incluir o indígena, mas que tentam incluir já excluindo, o que demonstra uma falsa proteção (SAWAIA, 2008).

Entendemos que sem a garantia desses povos originários para permanecerem em suas terras, não há sobrevivência para as etnias indígenas. Os movimentos indígenas (grupos indígenas e organizações da sociedade civil que apoiam e reforçam o compromisso de defender os direitos indígenas previstos na Constituição) têm atuado no bojo dos acontecimentos que geraram o movimento indigenista (doutrina, formulada inicialmente no México como parte do movimento intelectual nacionalista, caracterizada pela defesa e valorização das populações indígenas de um país, região); portanto, como legítimos herdeiros dessa consciência, eles têm produzido efeitos importantes como a defesa dos territórios indígenas, a atenção especial à saúde e à educação (GOMES, 2012, p. 273). No entanto, eles têm esbarrado em muitos problemas no tocante ao diálogo com a sociedade como um todo, sendo a diversidade cultural um importante fator para o isolamento.

De acordo com Foucault (2012), há uma constante tensão nos discursos em que os sujeitos são interpelados pela formação discursiva, a qual se define uma regularidade: uma ordem, correlações, posições, funcionamentos e transformações.  É possível observar que os discursos indígenas abarcam formações discursivas de caráter colonial, são questões que apresentam marcas de exclusão em que se pode observar que o sujeito indígena é rechaçado desde os tempos coloniais.

No capítulo intitulado “Monstros e degenerados” de seu livro Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil, Lobo (2008) aborda a visão que os europeus tiveram dos indígenas quando chegaram ao Brasil em 1500. Com o objetivo de desnaturalizar as marcas dos corpos “deficientes”, a autora apresenta um levantamento histórico que comprova o emprego do vocábulo “aberração”. Muitas foram as representações na literatura europeia, cujas visões eram recheadas de ficção, já que os indígenas eram retratados por aqueles que viajavam até o Brasil. Esses estrangeiros divulgavam a imagem indígena como monstros que apresentavam características animais e deformações absurdas, até mesmo ligados à prática do canibalismo. Essas representações contribuíram para a criação e expansão da exclusão sofrida por esses povos.

As condições de produção do discurso de exclusão, que os indígenas brasileiros vivenciaram desde o início da colonização do Brasil, são marcados por enunciados referentes a apropriações de grandes territórios e também de luta para recuperação das terras. Já se iniciava o processo excludente no período colonial, quando os indígenas, mesmo sendo os primeiros habitantes brasileiros, não possuíam (e ainda não possuem) reconhecimento do direito à terra.

Para Guerra (2010), o governo do estado do Mato Grosso do Sul nem sempre se posiciona a favor da causa indígena na luta pela terra, nem luta em prol de seus direitos: o que presenciamos é um descaso para com os direitos indígenas, o que contribui para que esses povos sejam massacrados ainda mais. Assim, consideramos relevante problematizar os discursos sobre o indígena sul-mato-grossense. Assim, este artigo se vale de recortes discursivos[1] da Carta Aberta denominada Contra o genocídio da população indígena, retirada do site do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) e destinada à população[2].

O NEABI é um projeto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Teve seu lançamento oficial em 20 de agosto de 2015 e é um regulamento aprovado pela Portaria Nº 2.587 do Governo Federal. Sendo a discriminação uma prática atual, o Núcleo desenvolve pesquisas e ações com o propósito de expandir o conhecimento em questões étnico-raciais e minimizar a exclusão que essas práticas recorrentes produzem. As Cartas Abertas, que o NEABI divulga, demonstram e representam formas subjetivas que despertam seus leitores. Assim, as ideologias marcadas no discurso do seu próximo são influenciadoras na construção e reconstrução de novas subjetividades.

Vale dizer que o IFSP lançou o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), em 20 de agosto de 2015, que teve seu regulamento aprovado pela Portaria Nº 2.587, de 28 de julho de 2015, do Governo Federal. O Núcleo atua nas ações de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no IFSP, com propósito de conscientização da luta de afrodescendentes e indígenas para que as discriminações presentes na sociedade brasileira não fiquem à margem e medidas novas sejam tomadas com precisão (DOSSIÊ NEABI, 2016)[3].

A Carta denuncia o massacre que ocorreu na cidade Caarapó, no sul do Mato Grosso do Sul, no dia 14 de junho de 2016. Também se trata de imagens agonísticas sobre o ocorrido, além de relatos de sujeitos indígenas, que são recortados para o processo analítico. Diante disso, tenho algumas perguntas de pesquisa: Quais são as imagens que os povos indígenas possuem do seu próprio povo? Quais marcas linguísticas direcionam para o discurso de exclusão? 

Temos por objetivo problematizar as representações sobre os povos indígenas sul-mato-grossenses que atravessam o discurso da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena; rastrear os efeitos de sentidos que perpassam o discurso do enunciador branco e do enunciador indígena e estudar, por meio da materialidade discursiva, as formações discursivas e os interdiscursos que nos levam a entender como se processa a história e a colonialidade do poder.

Para tanto, pautamos nosso olhar no arcabouço teórico da Análise do Discurso de origem francesa (ORLANDI, 2003; CORACINI, 2007), por meio do método arqueogenealógico (FOUCAULT, 2012; GREGOLIN, 2004) e da perspectiva discursivo-desconstrutiva (CORACINI, 2010; GUERRA, 2012).

Para Orlandi (2003, p.43), poderíamos, a rigor, falar em análise de discurso germânica, americana, inglesa, italiana, brasileira, francesa etc, se pensamos essa disciplina desenvolvida em diferentes regiões do mundo com suas diferentes tradições de estudos e pesquisas sobre o discurso. Nesse sentido, o que entra em consideração é que a história da ciência não é linear e não se produz sustentada só no eixo do tempo. A relação tempo/espaço faz parte do método de observação dessa história e, “segundo o que temos praticado, quando falamos dessa história não nos referimos [...]a uma história única, universal e linear” pois a consequência seria de pensar que há lugares e tempos em que não se passaria nada cientificamente, o que é um pensamento destruidor desta história.

A partir de rastreamento de textos em que Foucault aborda esta questão, e seus desdobramentos, é possível entender em suas análises históricas que a noção de descontinuidade não é a simples oposição à linearidade progressiva da história tradicional, mas é a recusa ao primado do sujeito e à ideia de origem metafísica. É na recusa à ideia de origem, de que há uma verdade única e primeira antes da história, que a noção de descontinuidade se justifica. Ancoramo-nos no método arqueogenealógico de Michel Foucault (2012), o qual possibilita um modo de ler e interpretar o corpus escolhido, uma vez que se refere à formação discursiva dos enunciados, enfocando suas descontinuidades, suas regularidades, considerando a pluralidade de outros discursos que tratam do tema, nas relações entre poder e saber que permitem que os discursos apareçam. Também se refere à formação discursiva das condições de possibilidade do discurso, da singularidade dos acontecimentos, da historicidade (GREGOLIN, 2004).

Dessa maneira, tanto o sujeito-enunciador (narrador) quanto o sujeito-pesquisador estão fadados a interpretar, a atribuir sentidos, uma vez que a interpretação não é qualquer uma, nem o sentido é qualquer um, visto que os sentidos são sempre administrados pelo poder e pelos processos de filiação histórica dos sujeitos.

 

1. Aspectos teórico-metodológicos: subjetividade e discurso

A desconstrução, um dos pressupostos da pós-modernidade e de teorias pós-estruturalistas, visa desestabilizar discursos, de modo a provocar reflexões e irromper novos sentidos acerca da (discursos sobre) verdade construída, propiciando a compreensão de que todo discurso está perpassado por micropoderes, que, por sua vez, legitimam verdades e constituem relações de poder-saber para, como problematiza Guerra (2010, p. 76): “operar questionamentos no que parece inquestionável, complexificar o que parece simples e decidir o indecidível”.

Nessa mesma perspectiva, encontramos os estudos culturalistas que se coadunam com a disposição pós-moderna de olhar de maneira crítica para práticas culturais que eram consideradas marginais, integrantes da “baixa cultura” e, principalmente, não dignas de investigação da academia” (GUERRA, 2010, p. 09), corroborando um outro olhar acerca da complexidade e tensão das relações culturais com práticas sociais, além daquele reproduzido hegemonicamente.

Para a Análise do Discurso (AD), as condições de produção são imprescindíveis para a o processo analítico dos recortes discursivos. A noção de condições de produção do discurso é uma relação entre a materialidade discursiva e as condições históricas que constituem o corpus discursivo (COURTINE, 2016). O contexto sócio-histórico e o aspecto ideológico presentes na materialidade dos discursos são inclusos pelas condições de produção, uma vez que são eles que trazem elementos para compreendermos os efeitos de sentidos e a história do objeto de pesquisa (ORLANDI, 2003).

As condições de produção trazem a historicidade que, por sua vez, produz dizeres apresentados pelo interdiscurso. O interdiscurso é o já-dito, formulações que foram feitas por alguém, mas que também já foram (e é fundamental que sejam) esquecidas para ser significado como “nossas” palavras. Sendo assim, “as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua” (ORLANDI, 2003, p. 32). É inscrever a língua na história para significá-la. Conforme Coracini (2007), o interdiscurso é o lugar do pré-construído, composto por diversas vozes da experiência do outro, vozes que provêm de múltiplos outros discursos que constituem a nossa memória discursiva, possibilitando inúmeros atravessamentos.

A AD é de uma perspectiva transdisciplinar que tem como objeto o discurso. Para AD, transdisciplinar é puxar os fios de outras teorias sem dizer que nenhuma é superior à outra. É por esse motivo que a AD do Brasil é diferente da AD da França, aqui pensamos que ela ganha força com a História, Filosofia, Sociologia e Psicanálise, dialogamos com diversos estudiosos dessas áreas. Puxamos esses fios teóricos para nossa perspectiva discursiva, com o intuito de construir nosso próprio aparato teórico. Essas áreas dão pistas de interpretação para o discurso, para isso a AD faz deslocamentos das noções originais de cada área para a perspectiva discursiva.

Partimos do pressuposto de que o sujeito se constitui pela dispersão e pela multiplicidade de discursos e, ao enunciar, o faz ocupando várias posições. Essas posições marcam a heterogeneidade que é constituída de redes de filiações históricas e ideológicas. O discurso produz sentido em relação às posições-sujeito, e em relação às formações discursivas em que essas se inscrevem (PÊCHEUX, 1988; ORLANDI, 2003). Entendemos que o discurso (FOUCAULT, 1969/1995:136) se realiza numa relação necessária entre duas materialidades: a linguística e a social (as condições de produção) e refere-se a um conjunto de enunciados que, por sua vez, integram uma mesma formação discursiva.

Segundo Foucault (1969), os diversos discursos estão fundamentados em uma mesma estrutura e, por isso, compartilham as mesmas características gerais, chegando a quase anular suas diferenças específicas. Foucault (1969, p. 123) traz a noção de episteme como um conjunto de enunciados ou de discursos baseados numa determinada ferramenta conceitual que organiza a linguagem e o pensamento e lhes fornece o sentido de que as palavras correspondem às coisas. A formação discursiva apresenta-se como um conjunto de enunciados que não se reduzem a objetos linguísticos, tal como as proposições, atos de fala ou frases, mas submetidos a uma mesma regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, ciência, teoria, etc.

A desconstrução, outro referencial teórico por nós utilizado, refere-se à economia de um texto, isto é, ao fato de os conceitos serem determinados pelos lugares que ocupam em relação aos outros conceitos dentro de um sistema de diferenças que consiste na trama de hierarquias conceituais (CORACINI, 2009). É a manobra de desconstrução. Pretende-se, nesse sentido, desconstruir, na análise, as oposições, levantando as máscaras de subordinação ou de dependência dos termos.

A noção de discurso para a AD é diferente da noção de texto. Basicamente, a AD não usa a palavra texto, chama de estrutura, então o discurso é a estrutura mais o funcionamento (PÊCHEUX, 2009). O discurso é heterogêneo, é a partir dessa concepção que temos a noção de interdiscurso, o já-dito, algo que alguém já falou, mas que agora me constitui, passou a ser minha própria fala. São vozes outras que constituem, determinando deslocamentos e re-significando o sujeito.

O sujeito da AD não é formado pelo discurso, mas é um efeito provocado por ele, visto que o sujeito se constrói só no discurso. “Assujeitar-se é condição indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à condição de sujeito, capaz de compreender, produzir e interpretar sentidos” (FERREIRA, 2007, p. 43).

O item lexical é que nos autoriza a dizer se é esta ou aquela interpretação, que é a materialidade linguística, a palavra. Segundo Jean-Jacques Courtine (2016), a materialidade discursiva é a ordem do discurso numa relação entre língua e ideologia. Essa materialização de discursos, a partir de um atravessamento teórico, traz noções basilares de outras áreas para a AD.

Por meio da perspectiva foucaultiana do sujeito, Coracini (2007) traz questões voltadas para a construção da identidade dos sujeitos, uma vez que é constituída segundo o discurso de si e do outro, em que constroem uma imagem e são também por ela construídos. Dessa forma, o sujeito constrói sua identidade conforme seu imaginário em relação à imagem que faz de si e a que acredita que o outro vê, confiando que possui uma identidade fixa. Fundamentado na psicanálise lacaniana, o olhar da autora se volta para o imaginário do sujeito como um efeito de ilusão de que ele seja origem do dizer.

O método arqueogenealógico de Foucault é um caminho metodológico que a AD busca para entender o contexto dos dados de análise. Esse método é a junção da arqueologia e da genealogia propostas por Foucault (2005, p. 172), “a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade”.

O arquivo é o local específico da memória, dos registros do passado, da história. São discursos construídos em uma determinada época, mas que sobrevivem ao tempo existindo através da história. Então, a arqueogenealogia foucaultiana se organiza no tempo pela historicidade, em contraposição ao conceito de arquivo fora da AD, que é o acúmulo de documentos. Escavar é buscar as condições históricas que nos ajudam a compreender o contexto do discurso. Dessa forma, o método arqueogenealógico possibilita a investigação dos procedimentos históricos do discurso para problematizar os efeitos de sentidos que emergem desse discurso.

Conforme Grigoletto (2003), para a perspectiva desconstrutiva “não há realidade que não seja aquela criada no interior da linguagem e que, consequentemente, não há um significado único, anterior à interpretação, a ser alcançado caso se conseguisse ultrapassar a barreira da linguagem” (2003, p. 93). Diante disso, importa para essa proposta os efeitos de sentidos que emergem ali naquele discurso com relação à sua exterioridade.

A representação é empregada para tornar o abstrato em concreto, aquilo que não nos é familiar. Na esteira de Coracini (2015, p. 137), “uma dada sociedade ou um grupo social impõe aos sujeitos modos de pensar, de ver o mundo, de lidar com ele e nele, de considerar o outro, imprimindo, através da linguagem verbal ou visual, formas de representar o que está a sua volta”. Assim, as representações são próprias de uma dada conjuntura social, têm seu valor naquele momento histórico-social, podendo ocorrer mudanças em outro período.

Segundo Coracini (2003, p. 203), o “eu” formado a partir do olhar do “outro” cria, de forma inconsciente, uma relação do bebê com os sistemas de representação simbólica, “dentre as quais a língua, a cultura e a diferença sexual”. Ainda com base nos estudos de Coracini (2003, p. 203), somos efeitos de muitas “identificações – imaginárias e/ou simbólicas” que nos constituem. Assim como Pêcheux (2009) discorre, que as formulações imaginárias estão sempre supostas no discurso, são imagens de si e do outro.

Desse modo, trazemos o contexto da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ para, posteriormente, problematizar o processo discursivo das representações do outro presente no texto da carta. As representações/formulações imaginárias são vozes que ecoam na Carta Aberta sobre imagens do indígena. O enunciador não indígena, integrante de uma sociedade hegemônica de estruturas injustas, deixa emergir no discurso representações imaginárias do sujeito indígena, são lugares de si (indígena, representado pelo outro) e do outro.

É pelo outro que construímos a nossa própria imagem, nos constituímos enquanto sujeito e inserimos esse imaginário como nossa verdade, a partir do outro construímos as representações de nós mesmos. Dessa forma, os indígenas se constituem pelo olhar do outro, pela representação que o branco faz dele em um determinado discurso.

O uso da narrativa testemunhal, como é o caso da Carta Aberta, abre espaço para dar voz e vez para os sujeitos periféricos que, em muitos casos, são marginalizados ao serem retratados como inferiores nos discursos naturalizados, reiterando as representações de exclusão.

Atualmente, no Brasil, as representações que se tem dos povos indígenas se dá, na maior parte das vezes, como consequência da representação que a escola tem dos indígenas. A história contada do presente dos indígenas não corresponde com a realidade, uma vez que são representados, ainda, como os nativos que habitavam o país no ano de 1500. Essa representação ecoa sobre o imaginário da população e é necessário que seja desconstruída. Aliada a essa questão, temos discursos cristalizados e estereotipados que constroem imagens e visões periféricas dos povos indígenas, como sujeitos marginalizados, representados como sujeitos descartáveis.

 

2. O processo analítico: exclusão e preconceito

Para realizamos o processo discursivo-analítico, o objetivo deste item é promover um deslocamento dos possíveis efeitos de sentidos que emergem na Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ disponibilizada pelo site do NEABI. Por meio do método arqueogenealógico de Foucault (2005), selecionamos alguns recortes discursivos para apresentarmos a representação de si (indígena) pelo olhar do outro e a representação de si, imagens que ecoam do discurso do indígena.

O bem-estar das relações de convivência de uma sociedade é buscado a partir do respeito mútuo, sobretudo do respeito à diversidade, no entanto, a discriminação ainda está presente nas relações sociais brasileiras. No que tange à população indígena, a discriminação não é recente e não está perto de acabar. Com esse pensar, se faz necessário problematizar essas relações, para isso as sequências discursivas desta pesquisa reúne recortes de uma das Cartas Abertas do NEABI, intitulada Contra o genocídio da população indígena, que repudia as diferentes formas de massacre e exclusão que esses povos vêm sofrendo ao longo dos anos, manifestando inicialmente um caso atual no Mato Grosso do Sul, estado em que residem diversas etnias.

A Carta Aberta adere tanto às características da carta quanto da epístola, é uma variante das formas de realização do gênero epistolar, ainda assim, não é um gênero epistolar estabilizado, uma vez que é uma denúncia, o que desestabiliza o gênero carta. Ela geralmente é veiculada por rádio, internet, televisão e jornal impresso. É um gênero que deixa de forma explícita o papel social que o interlocutor está expondo para mobilizar a opinião pública. Tentando manter uma relação de emissor/receptor, o destinatário também cria formas de diálogo, a título de exemplo, perguntas diretas. Outro recurso utilizado é o uso de dados estatísticos e exemplos para fundamentar sua fala.

O discurso do gênero Carta Aberta é escrito na primeira pessoa do plural (nós), com o intuito de demonstrar sua relação com o tema desenvolvido e se inserir na coletividade. Dessa forma, com a responsabilidade de detentor da fala, o enunciador da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ faz a ecoar a voz do indígena em seu discurso, possibilitando a representação de si. Quanto à extensão da carta e à exposição do conteúdo, se dá de forma sucinta e clara para não ser um trabalho exaustivo. A linguagem utilizada é a norma culta, visto que se trata de uma exposição pública.

A Carta Aberta não tem forma rígida, essa representação estrutural apresenta um modelo com traços em comum, regularmente, utilizado e recomendado. A finalidade e o campo de atuação é que vão determinar a melhor maneira de escrever uma Carta Aberta. Na esteira de Leite (2014), a Carta Aberta é classificada, predominantemente, como argumentativa e também como expositiva. É natural que o locutor traga suas considerações e apresente questões pertinentes para o que está discorrendo, entretanto, fragmentos de sua subjetividade são marcados na carta. Esse gênero busca dialogar e interagir com o destinatário, que pode ser uma pessoa ou uma instituição. O interlocutor tem direito a uma contra-resposta em nova Carta Aberta, apesar de não ser frequente.

Endereçadas ao Estado-nação e a sua população, as Cartas Abertas dos povos indígenas buscam a garantia de seus direitos e valorização da história e cultura indígena, são mais do que um mero tipo de escrita, mais do que um gênero discursivo, já que esses textos tocam nas relações sociais como manifestos, denúncias e evidências, expandindo o gênero carta.

 

2.1 Representação de si pelo olhar do outro

Cabem, neste subitem, a apresentação e problematização das sequências discursivas, que são dispostos em ordem descontínua. Optamos por R para identificar os recortes[4] da Carta Aberta e acrescido do algarismo 1 para identificar o excerto.

 

R1: Não nos esqueçamos de que durante a formação do povo brasileiro, o indígena foi chamado de aberração, de ingênuo, de tutelado, até de herói romantizado, representações estereotipadas que circulam ainda no imaginário do povo brasileiro (Contra o genocídio da população indígena, grifos nossos).

 

Conforme Neves (2000), em sua Gramática de Usos do Português, a utilização do verbo implicativo afirmativo em “Não nos esqueçamos de”, implica de que esse complemento é factual, o uso desse recurso faz com que os argumentos expressos sejam considerados verdadeiros, demonstrando que os dados são carregados da realidade que os povos indígenas viveram (e vivem). De acordo com Coracini (2010), o que é documentado abarca a verdade, uma vez que não se pode apagar a escrita nem questioná-la: a escritura é um documento testemunhal irrefutável. Esse foi o modo encontrado para frisar a veracidade dos fatos ocorridos e torná-los vivos na memória da sociedade hegemônica, uma vez que esse corpo social, ainda, contribui para a exclusão dos povos indígenas (GUERRA, 2012).

Nesse ponto, observamos que a Carta procura deixar claro seu intuito ao apresentar narrativas comprováveis da história indígena no Brasil. Não são apenas marcas históricas verdadeiras, mas são provas de que a discriminação para com esses povos existiu e ainda existe. É necessário não esquecer para que não se caia na naturalização, para que não se torne um processo “normal”. O discurso da Carta Aberta, por testemunhar a verdade, abarca comprovações irrefutáveis que contribuem para a fundamentação de seu discurso (CORACINI, 2010). Temos a formação discursiva perpassado pelo discurso da verdade, da realidade, em que se determina o que pode e deve ser dito nessa situação como uma verdade incontestável.

Por se tratar de questões comprováveis, e não de enunciados cristalizados pela sociedade hegemônica, o enunciador, representando a voz do indígena, instiga que o leitor relembre ou não se esqueça do processo de colonização. Se for preciso lembrar, então foi esquecido em algum momento, já que lembrar supõe esquecer. Para os estudos psicanalíticos, é o esquecimento constitutivamente inconsciente (PÊCHEUX, 2009). Assim, aqui é fundamental lembrar-se do sofrimento dos povos indígenas ao longo de sua história para desconstruir as imagens estereotipadas que ainda permeiam o imaginário da nossa sociedade.

A Carta Aberta traz a primeira pessoa do plural (nós), usada para representar o coletivo e trazer uma imagem de proximidade com a temática. Na materialidade do pronome pessoal “nos”, emerge o efeito de sentido de que o enunciador se coloca como o eu (indígena), em que o enunciador se insere na coletividade, trazendo sentido de que ele também é o indígena. Esse pronome advém do “nós”, que abarca o eu mais o indígena, ou seja, traz a voz do indígena que ecoa na voz do não indígena: o enunciador se coloca como indígena para a construção da representação de si.

Essa reflexão demonstra que o enunciador se insere no coletivo, no que diz respeito ao modo de viver dos povos indígenas: nas aldeias, as pautas sobre direitos são colocadas em discussão em reuniões; eles podem ser inimigos entre si, entretanto, se for para lutar pelos seus direitos eles se unem, eles integram uma comunidade. As decisões são tomadas pela coletividade das comunidades indígenas, pois, segundo Luciano (2006, p. 64), “os chefes são mais servidores do povo, uma vez que são responsáveis pelas funções de organizar, articular, representar e comandar a coletividade”. Para esses povos, o poder é representação de generosidade (LUCIANO, 2006), já que apenas articulam as decisões a serem tomadas.

O uso do pronome “nos”, na primeira pessoa do plural, também, implica uma aproximação do sujeito-enunciador ao destinatário. Ao se incluir na advertência, o sujeito demonstra que todos estão destinados a esquecer, mas que é o momento de lembrar o que foi esquecido. Sendo assim, tanto aquele que luta em prol dos povos indígenas quanto o que não coopera devem manter viva a trajetória desses povos, pois o esquecimento acarreta a naturalização dos acontecimentos.

O gênero discursivo Carta Aberta é expositivo argumentativo, daí o sujeito enunciador trazer o seu posicionamento quanto àquilo que está discorrendo: fragmentos da sua subjetividade lhe escapam e perpassam seu dizer (LEITE, 2014). Dessa forma, o enunciador branco procura estabelecer um diálogo com seu interlocutor, para que ocorra uma contra-resposta do governo brasileiro, demonstrando que suas argumentações interpostas foram ouvidas, o que possibilitará uma saída para o problema levantado.

Esse recorte discursivo, R1, traz formações discursivas de caráter colonial. Na materialidade linguística da Carta Aberta, temos as representações de “aberração”, “ingênuo” e “tutelado”, termos que apresentam marcas de exclusão em que o sujeito indígena é rechaçado desde os tempos coloniais. Essas são representações imaginárias que o branco teve (tem) do indígena já que a simples maneira de usar substantivos e adjetivos já constroem uma identidade (CORACINI, 2010). Conforme o dicionário Michaelis On-line[5], as noções do vocábulo “aberração” são: “1) Ato ou efeito de aberrar; aberrância; 2) Desvio, extravio de espírito, de ideias, de juízo; extravagância de conceito e 3) Desvio aberrante ou perverso de qualquer conduta, norma ou padrão estabelecidos; desarranjo, desvio, desordem: aberração mental”. Diante disso, rotular o indígena como “aberração” deixa emergir o efeito de sentido de que ele é, de acordo com o dicionário Michaelis On-line, um desvio da sociedade, por não se encaixar nos padrões estabelecidos pela própria sociedade hegemônica. Sua cultura é peculiar, até mesmo nas etnias diferentes entre si, o que é confundido (ou a sociedade hegemônica não quer ver) com “extravio de espírito”.

Problematizamos aqui que a cultura indígena não é um desvio tampouco o indígena o é, pelo contrário, muito se deve aprender com essa cultura milenar. Também do adjetivo “aberração” emerge o efeito de sentido de monstro, fora do “normal”, anormal (FOUCAULT, 2001), não classificado como ser humano. São representações que os colonizadores portugueses tiveram desde o início já que, ao chegarem ao Brasil e se depararem com indígenas sem alguns membros do corpo, os portugueses usavam adjetivos próximos à aberração e monstros para classificá-los (LOBO, 2008). Essa visão desconstrói todo o papel que o indígena tem na sociedade, já que o representa como não pertencente a esse meio socialmente construído.

Na aula de 22 de janeiro de 1975, Foucault (2001) desenvolve a temática da anomalia, todavia para isso ele usa algumas figuras representativas. Para esse caso, temos a figura do “monstro humano” em que o autor considera que o monstro é a combinação do impossível com o proibido. Esse monstro contradiz a lei, ele é uma infração em seu ponto máximo. O monstro se coloca automaticamente fora da lei, ele é um modelo para todas as pequenas diferenças. Sendo assim, estar fora dos padrões estabelecidos pela sociedade hegemônica (constituída de estruturas sociais injustas e desiguais) é ser anormal, o que acarreta a marginalização dos sujeitos que são considerados anormais.

“Ingênuo” e “tutelado” são termos que nos levam a representações de incapacidade: ou seja, o sujeito necessita de um outro para lhe orientar ou dirigir. Gomes (2012) afirma que o regime tutelar, proposto pela FUNAI, abarca a representação de que os povos indígenas precisam de alguém para dar auxílio. Nota-se que esse sujeito é considerado incapacitado de realizar as tarefas sociais do não indígena, visto que se acredita que os indígenas não têm competência para inserir-se na cultura do não indígena sozinhos e/ou conviver próximos a ela ou com ela.

Ao dizer que o indígena é considerado aquele que não tem “histórias a construir pelas próprias mãos”, por intermédio da preposição “a”, o recorte R1 traz o efeito de sentido de que ele é capaz de conquistar seus objetivos. Não necessita de tutela, da proteção tutelar, precisa ser reconhecido como sujeito apto a qualquer situação assim como o branco o é.

Em “até de herói romantizado”, o uso da preposição “até” representa que é um limite final a ser representado, algo que não se encaixa na característica do povo indígena, é notado com espanto, posto que não corresponde com a realidade. Já a expressão “herói romantizado” é atravessada por uma formação discursiva literária, em que a representação do indígena na literatura é a de herói da selva, aquele que conhece a mata e protege as demais figuras dos perigos da floresta. Essa representação da literatura brasileira é, também, aquilo que aflora, o que é estereotipado nos dias atuais.

Em “representações estereotipadas” e “imaginário”, os termos transcendem as noções que a sociedade hegemônica tem do e sobre os povos indígenas e transcende também a representação de si pelo outro. Isso porque os atributos expostos na carta são estereótipos que precisam ser desconstruídos, pois o sujeito indígena se constitui, também, a partir da imagem que o outro tem de si.

 Daí a relevância da escrita de Cartas Abertas que falam sobre os povos indígenas, na direção de dar vez a esses sujeitos que estão postos à margem da sociedade hegemônica, injusta e excludente, uma vez que a escrita é um meio de resistência para combater o anonimato. Conforme Coracini (2007, p. 59), as representações que o outro faz de nós nos constituem, já que “assim como nomear é dar realidade ao objeto” falar sobre um povo é “dar-lhes existência”. O advérbio “ainda” demonstra que, apesar de tanto tempo após a colonização e com o avanço da sociedade, os brancos ainda os veem como os povos nativos de 1500. Os indígenas não possuem voz nos documentos de História do Brasil, e quando são falados por outros, mesmo sem pretensões negativas, “eles reduzem os índios a ‘argumentos’ de retórica colonial. Eles falam do índio para que ele não signifique fora de certos sentidos necessários para a construção de uma identidade brasileira determinada em que o índio não conta” (ORLANDI, 2007, p. 57-58).

 

 

2.2 Representação do outro

Neste subitem, buscamos promover deslocamentos dos possíveis efeitos de sentidos que emergem das representações sobre o outro, o poder hierárquico. São representações da relação do governo brasileiro com as questões indígenas, que estão marcadas no discurso dessa Carta Aberta. Demos seguimento à identificação anterior para os recortes, iniciando por R2.

 

R2: Um país que foi inserido no nascente processo mercantilista europeu e que usou da mão de obra servil indígena para extração do pau-brasil, para a escravidão na mineração, para o plantio da cana-de-açúcar; um país que matou para tomar dos povos nativos as terras para criar sesmarias a particulares; que criou aldeamentos para conversão forçada ao sistema religioso metropolitano; que ousou contestar o caráter humano do indígena para poder escravizá-lo; que mais tarde os chamou de tutelados para poder se apossar do resto de suas terras; que tentou miscigenar para contestar o direito das terras indígenas; que evita demarcações, pois essas se chocam com o desejo dos latifundiários (Contra o genocídio da população indígena, grifos nossos). 

 

O item lexical “inserido” traz uma formação discursiva histórica e, há no fio intradiscursivo, o efeito de sentido de que o Brasil foi introduzido em um determinado acontecimento em andamento. Assim, todo o processo anterior a esse período foi perdido pelos indígenas, não acompanharam o desenvolvimento do capitalismo, apesar de que o processo mercantilista estava se desenvolvendo, ainda assim, os colonizadores estavam à frente.

A expressão “nascente processo mercantilista” abarca a formação discursiva capitalista. A sociedade brasileira é movida por princípios capitalistas, entretanto, os povos indígenas veem esse processo como um mito, já que não conseguem enxergar o poder e/ou a riqueza nas mãos de poucos, deixando muitos na miséria (LUCIANO, 2006). A ilusão de que o capitalismo é a solução para o grande problema da fome e da miséria apresenta o equívoco, a incompletude da linguagem. Para comunidade indígena, não é possível buscar a felicidade de todos na comunidade do branco, uma vez que temos a ilusão de completude, não há felicidade coletiva se os bens em dinheiro e/ou propriedades também não o são.

Ao inserir o Brasil, no processo mercantilista em que os portugueses já estavam inteirados, sabemos que os indígenas não conheciam nem compartilhavam essa cultura. Com maior conhecimento da causa e fazendo uso dela, os portugueses utilizavam de artimanhas para se sobressaírem dentre os outros. Assim, os povos indígenas foram inseridos nesse processo como “mão de obra servil indígena”, que mostra como portugueses e indígenas brasileiros não eram considerados em um mesmo patamar, visto que essa inserção beirava a “escravidão”.

A noção de “escravidão” é dada pelo dicionário Michaelis On-line[6]: 1) Condição daquele que é escravo; cativeiro, escravaria, escravatura; 2) Sistema social e econômico fundado na escravização de pessoas; exploração do trabalho escravo; escravagismo, escravatura, escravismo; 3) Condição de falta de liberdade; submissão a uma autoridade despótica. Dessa forma, a exploração do trabalho indígena indica que a sua liberdade lhe foi tirada em seu próprio território, submetendo-se às exigências dos portugueses, como trabalhos nas lavouras.

Além da formação discursiva capitalista, o efeito de sentido de assassino é atravessado no enunciado “matou para tomar dos povos nativos as terras para criar sesmarias a particulares”. Sabemos que essa representação também se dá nos dias atuais, como vimos no massacre que é referendado na Carta. O motivo pode parecer outro, já que um é para doação de sesmarias e o outro é para fazendeiros, entretanto, o intuito é o mesmo: tomar posse das terras indígenas. Além disso, deixam cicatrizes nas comunidades indígenas que jamais poderão ser apagadas, são vidas indígenas tiradas porque o outro tem o desejo incansável do capital. A título de exemplo, temos as sesmarias, que são terras que a Coroa de Portugal se apoderou dos indígenas para doar aos colonizadores que contribuíam para a escravidão, no intuito de explorar a produção agrícola brasileira.

Levantando a formação discursiva religiosa, a criação de “aldeamentos para conversão forçada” se deu também da posse de terras indígenas. Os missionários se instalavam nas aldeias e iniciavam o processo de catequização dos povos indígenas a partir da violência (GOMES, 2012). O adjetivo “forçada” produz o efeito de que os portugueses queriam impor sua cultura ao indígena, pois acreditavam que eles eram povos sem alma, sem fé. Essa imposição da cultura dominante afeta a cultura indígena, mas não a elimina, uma vez que as culturas são acrescentadas e não substituem umas às outras (CANCLINI, 2013).

Um país, que usou a escravidão para promover seu capital, propagou que a justificativa para a escravidão era porque o indígena não tinha alma; no enunciado “ousou contestar o caráter humano do indígena” mostra uma nação seletiva e cruel. A utilização do verbo “contestar” aflora o efeito de sentido de que o indígena precisa provar seu caráter, sendo que foram os portugueses que chegaram tomando posse de tudo e interferindo na vida dos povos nativos. Nessa situação, quem deveria provar seu caráter humano?

Do enunciado “os chamou de tutelados para poder se apossar do resto de suas terras” emerge o efeito de sentido da hostipitalidade: o governo brasileiro é o “hostipitaleiro” que se utiliza de artimanhas para hostilizar o outro, um hospedeiro que pratica as duas ações, tanto hostiliza quanto hospitaliza o outro, causando a “hostipitalidade”. Esse hospedeiro hostil é assim designado porque aceita o hóspede em sua casa, entretanto, estabelece regras de permanência em seu território (DERRIDA, 2003). Essa característica é verificada na sociedade hegemônica na sua relação com os povos indígenas, uma vez que eles permanecem em locais designados, entretanto, há condições estabelecidas a serem seguidas, como a tutela, a reserva. Esse sistema tutelar hospeda o sujeito indígena, dá a ele uma falsa proteção, pois é uma estratégia para tomar posse de suas terras, daí a hostipitalidade.

Moacir Skliar (2003), ao abordar a alteridade deficiente, entende que o indivíduo que busca o corpo perfeito, que visa à mesmidade e hostiliza os sujeitos, está posicionado frente à anormalidade, em que a relação de poder e saber é muito presente; similarmente, as comunidades indígenas são vistas como anormais, fora do padrão social, são sujeitos periféricos, excluídos nas sociedades, marginalizados. A sociedade hegemônica os exclui se não entram na ordem social, entretanto, há resistência por parte dos povos indígenas, uma vez que buscam a visibilidade com o intuito de não serem mais vistos como anormais (FOUCAULT, 2001).

Em (um país) “que evita demarcações, pois essas se chocam com o desejo dos latifundiários”, o uso do verbo implicativo negativo “evitar” manifesta a representação do não comprometimento com as causas indígenas, mesmo sabendo que é deles por direito, mas não se compromete com seus pares. O governo fica à margem da situação, que levanta o efeito de sentido de covarde, contribuindo, negativamente, para a marginalização do sujeito indígena, já que a própria governança do país o exclui.

Esse governo configura no Brasil Estado-nação (BUTLER; SPIVAK, 2018), que é seletivo ao agregar às leis apenas a quem ele deseja. É o Estado que não apoia a minoria e, ainda, classifica os seus habitantes, excluindo os que considerar descartáveis. Dessa forma, os sujeitos indígenas são nações sem-estados, dentro do próprio Estado-nação.

Considerações finais

Problematizamos aqui que é necessário chamar a atenção para o porquê da terra do indígena ser questionada, mas as grandes extensões não, sendo que são nessas extensões que está o problema, uma vez que há muito território concentrado em poucos, tornando o latifúndio naturalizado (GUERRA, 2010).

O sujeito-enunciador não indígena da Carta Aberta se coloca como indígena para reivindicar os direitos indígenas e denúncias os abusos sofridos. Essa representatividade configura em maior publicização das causas indígenas e desconstrução do imaginário do branco. O NEABI procura dar voz a esses sujeitos, no intuito de contribuir para o não apagamento de suas culturas.

Discorrer acerca das identificações requer a compreensão do sujeito em sua exterioridade. Diante disso, para Coracini (2007), as identificações são resultados da internalização do dizer alheio, do discurso outro, perpetuado pela memória discursiva. As representações indicam imagens construídas no imaginário social, como verdades sobre si mesmo. Produto de vários traços de identificação, o sujeito é híbrido, múltiplo, cindido, apesar de fantasiar sua identidade única. A mudança subjetiva, e, por conseguinte da sociedade, em geral, é um dos produtos da transformação discursiva, que se torna necessária para o deslocamento e desestabilização das posições dos sujeitos em análise, vistos em sua coletividade como povos indígenas, cidadãos brasileiros e, sobretudo, seres humanos com direitos e deveres.

Partindo dos aspectos linguísticos, muitos termos e enunciados nos levaram as representações de si (indígena) a partir do olhar do outro (branco).  Os possíveis efeitos de sentido trouxeram representações do indígena como ingênuo, tutelado, aberração, monstro humano, modos de viver estereotipados, gente do passado, escravo, entre outras.

Compreendemos que o governo brasileiro vale-se da dialética in(ex)clusão (SAWAIA, 2008) ao decretar legislações voltadas para os direitos indígenas. O Estado inclui o indígena nas legislaturas, no entanto, o marginaliza ao não regularizar e efetivar seus direitos propostos nas leis. Esse Estado-nação não está preocupado com os povos indígenas, seu intuito é, de cunho político, demonstrar heroísmo e solicitude, o que contribui para subalternidade dessas comunidades. As imagens rastreadas da Carta Aberta, sobre esse poder hierárquico, trazem efeitos de sentidos que (d)enunciam exclusão e representações de marginalizador e hostipitaleiro.

Posto disso, vale explicar que tratamos de pesquisar a partir de um campo empírico localizado e nesse nível colocar as questões cruciais, para num segundo momento elaborar generalizações e conceitos mais amplos. A formulação metodológica foucaultiana prescreve que “as articulações teóricas são elaboradas a partir de um certo campo empírico”, o que chamamos aqui de problematização (FOUCAULT, 1984, p. 242).

As formações discursivas mais recorrentes foram as de FD colonial e FD histórica. São formações discursivas que remetem a um sujeito indígena que é o mesmo da colonização, com os mesmos modos de viver. Diante disso, a partir das análises empreendias, verificamos que o gênero epistolar mostrou-se relevante para denunciar as negligências ocorridas aos povos indígenas e reivindicar seus direitos. Por ser publicada na conjuntura midiática, a Carta Aberta abrange maiores públicos. É um dos pontos que precisamos para lutar pelas causas indígenas, publicidade.

Por fim, esperando que muitas leituras sejam decorrentes do que mobilizamos aqui, engendrando outros trabalhos sobre as questões indígenas, encerramos com as palavras finais da Carta Aberta: “Trata-se de um processo perverso e abusivo que está em curso no Brasil há séculos. Cobramos atitudes das autoridades, da imprensa e da população com a fiscalização, a denúncia engajada e devidas punições”. Afirmamos, sem medo de errar, que o preconceito em relação a população indígena é o maior de todos no Brasil. Temos que questionar e atiçar reflexões acerca de um grupo étnico que sofre com um massacre genocida há 520 anos em que a sociedade taxa com naturalidade a população indígena de “primitivos”, mesmo com esses constituindo uma parte relevante da sociedade, inclusive no âmbito populacional, especialmente após a Constituição de 1988.

 

Referências

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri C. Quem canta o Estado-nação? Língua, política, pertencimento. Trad. Vanderlei J. Zacchi e Sandra G. Almeida. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018.

CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão; Ana R. Lessa. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

CORACINI, Maria J. A celebração do outro na constituição da identidade. In: Organon: Discurso, língua e memória, v. 17, n. 35, 2003, p. 202-220.

CORACINI, Maria J. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas: Mercado de Letras, 2007.

CORACINI, Maria J. Discurso e escrit(ur)a: entre a necessidade e a (im)possibilidade de ensinar. In: ECKERT-HOFF, Beatriz M.; CORACINI, Maria J. Escrit(ur)a de si e alteridade no espaço papel–tela: alfabetização, formação de professores, línguas materna e estrangeira. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p. 17-50.

CORACINI, Maria J. Representações de professor: entre o passado e o presente. In: Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 23, n. 1, p. 132-161, 2015.

COURTINE, Jean-Jacques. Definição de orientações teóricas e construção de procedimentos em Análise do Discurso. Trad. Flávia Clemente de Souza e Márcio Lázaro Almeida da Silva. Policromias, ano I, p. 14-35, 2016.

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DOSSIÊ NEABI. 2016. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B81yGKhIihI3QVlhazlVZ3RQTEE/view>. Acesso em: 17.03.2019 às 19h.

FERREIRA, Maria C. L. O quadro atual da Análise de Discurso no Brasil: um breve preâmbulo. In: FERREIRA, Maria C. L; INDURSKY, Freda. (Org.). Michel Pêcheux e a Análise do Discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007. p. 39-46.

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FOUCAULT, Michel Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Organização e seleção dos textos de Manoel B. da Motta. Trad. Elisa Monteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 82-118. (Coleção Ditos e escritos II).

FOUCAULT, Michel A arqueologia do saber. 8. ed. Trad. Luiz F. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 

GOMES, Mércio P. Os índios e o Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Contexto, 2012. 304 p.

GREGOLIN, Maria do R. Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2004.

GRIGOLETTO, Marisa. A constituição do sentido em teorias de leitura e a perspectiva desconstrutivista. In: ARROJO, Rosemary (Org.).  O Signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. 2ª edição. Campinas: Pontes, 2003. p. 93-97.

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GUERRA, Vânia M. L. Indígenas e identidade: um olhar discursivo sobre a luta pela terra. In: ROSA, Andréa M.; MARQUES, Cíntia N.; SOUZA, Claudete C.; DURIGAN, Marlene (Orgs.). Povos indígenas: reflexões interdisciplinares. São Carlos: Pedro & João, 2012. p. 43-68.

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LUCIANO, Gersem dos S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

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ORLANDI, Eni P. Recortar ou segmentar? In ORLANDI, Eni P. Linguística: Questões e Controvérsias. Série Estudos. Uberaba: Faculdades Integradas de Uberaba, 1984. p. 09-26

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SAWAIA, Bader. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

SKLIAR, Carlos. Sobre a anormalidade e o anormal – notas para um julgamento (voraz) da normalidade. In: Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Trad. Giane Lessa. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 151-193.

Data de Recebimento: 30/09/2020
Data de Aprovação: 15/11/2020

 

                                                                                                       

 

 

[1] Para Eni Orlandi (1984, p. 14), “os recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução, aí compreendido um contexto (de interlocução) menos imediato: o da ideologia”. O que se recorta extrapola um conjunto de formulações linguísticas, demandando um esforço – e uma grande responsabilidade política e científica do analista – de compreensão de relações textuais incidentes em uma interlocução, relações entre textos realizados numa cadeia significante recuperável por amostragem imagética, escrita ou sonora, e textos não realizados nessa cadeia, mas evocados no acontecimento histórico de sua interpretação.

[2] Dossiê 1. ed. 2015/2016, à disposição no site do NEABI. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B81yGKhIihI3QVlhazlVZ3RQTEE/view>. Acesso em 21-02-2019 às 21h.

[3] Os membros do NEABI são selecionados por meio de edital com número de vagas limitadas. O requisito é de que o candidato tenha apresentações, projetos, grupos de estudo, cursos ou especializações voltados para a questão indígena, afro-brasileira e/ou nas relações étnico-raciais; sendo que, parte das vagas é destinada aos representantes dos campi que tenham vasto conhecimento da temática indígena. A composição de membros é formada por docentes e técnicos administrativos, discentes, representantes das Pró-reitorias e membros da comunidade externa do Instituto. Os integrantes do NEABI atuam em pelo menos um dos seguintes cenários: inclusão, direitos humanos, preconceito racial, arte e cultura afro-brasileira e indígena, diversidade cultural, literatura afro-brasileira e literatura indígena, identidades e conflitos étnico-raciais, entre outros (PORTFÓLIO DE FORMADORES, 2017).

 

[4] Se “por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação” e “um recorte é um fragmento da situação discursiva” (ORLANDI, 1984, p. 14), então estamos diante de um objeto não passível de quantificação.

[5]  Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ aberra%C3%A7%C3%A3o/> Acesso em: 25 de junho de 2020 às 9h50min.

[6] Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ escravid%C3%A3o/>. Acesso em: 30.05.2020 às 10h10min.