Por uma nova flânerie: um olhar para Fortaleza a partir de viagens nos transportes públicos urbanos.


resumo resumo

Rosana Roseo Batista
Sílvia Helena Belmino



  1. É possível flanar pela cidade do interior de um transporte coletivo?

 O século XIX, período de grandes revoluções industriais, tecnológicas, urbanas e, portanto, nos modos de ver e habitar a cidade, conheceu a figura do flâneur por meio dos trabalhos de Walter Benjamin sobre as obras literárias de Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire, que descreviam com detalhes minuciosos as ruas, construções e habitantes de suas respectivas metrópoles. Essa personalidade, conhecida por perambular pelas ruas e galerias da época, sempre com o olhar interessado para tudo o que lhe rodeava, com um caminhar lento, ocioso e sem destino final definido, nos ajuda ainda hoje a compreender as transformações nas grandes capitais europeias nesse período. Foram essas mudanças, inclusive, que proporcionaram as condições necessárias para a flânerie, já que graças aos avanços na utilização de vidro e metal (BENJAMIN,1994), houve um aumento significativo na construção de prédios com esses materiais destinados a serviços e lazer, como restaurantes, livrarias, cafés, boutiques, dentre outros, e que devido à proximidade entre eles, formavam verdadeiras passagens e corredores por onde era possível transitar por longos períodos, dia e noite, graças às claraboias iluminadas pelo sol e luminárias a gás que os percorriam.

E foi nesse cenário misto de concreto e vidraças, junto a uma aparente confusão gerada pelo ir e vir de milhares de trabalhadores das fábricas, que o flâneur encontrou a perfeita condição para a sua observação. A multidão, que para muitos simboliza caos e desordem, para ele é asilo (BENJAMIN, 1994), pois ele sente-se seguro ao poder passar despercebido no vai-e-vem dos corpos que o comprimem, o empurram e ditam até mesmo o ritmo de sua caminhada. Entretanto, engana-se quem acredita que algo escapa ao flâneur. Apesar de parecer ocioso, seu olhar é metódico e é capaz de distinguir cada um dos transeuntes, decifrar suas profissões, origens e mesmo os seus crimes, pois é um fisionomista nato (ROUANET, 1992, p. 50). Seu interesse é suprido na rua, no cotidiano dos seus passos, mas seu passeio possui um quê de nostalgia, pois ele não visa somente o que está ao alcance de seus olhos, mas também pela história e evolução do lugar, e de seus visitantes. É como se assim pudesse experimentar e viver cada uma dessas experiências. Não somente a da concepção dos arquitetos e urbanistas, mas também a cidade que se apresenta na literatura, no cinema e em outras expressões artísticas que fazem da rua e seus mistérios a inspiração de suas produções.

Aliás, a rua é para o flâneur o que representa as quatro paredes para o burguês: moradia. Para ele, os letreiros são adornos de suas paredes, os muros são escrivaninhas, as bancas são bibliotecas e os terraços, sacadas, de onde pode observar o ambiente no que ele considera como condição ideal (BENJAMIN, 1994). Contudo, se deseja flanar pela cidade para além do espaço das galerias, sua alegria se desfaz quando ele se vê cara-a-cara com as reformas urbanísticas do período, que movimentados pelo capital, passam a privilegiar o movimento dos automóveis em detrimento dos pedestres, que agora têm seu movimento confinado às estreitas calçadas (PONTUAL; LEITE, 2006). Nesse momento, o nosso personagem tem à sua frente algumas possibilidades que lhe são cruéis: aceitar caminhar pelo espaço que lhe foi determinado, e assim seguir o ritmo acelerado e os caminhos já definidos dos operários e burgueses, que dificilmente possuem interesse pela atividade da flânerie; encarar o asfalto do qual sempre fugiu por sua monótona bidirecionalidade (ROUANET, 1992); ou encerrar sua atividade definitivamente. Seriam, então, as revoluções industrial, tecnológica e urbana as responsáveis pelo fim da flânerie? Certamente que não.

É inegável que do século XIX para os nossos dias os contextos modificaram-se radicalmente. A sociedade não é a mesma sob nenhum aspecto que se observe. De lá para cá, as transformações socioculturais, urbanas e geopolíticas foram tantas, que o flâneur de Allan Poe e Baudelaire decerto enlouqueceria. Dentre tantas que poderíamos discutir longamente sobre, opto por me debruçar sobre uma que considero extremamente relevante para essa discussão: o contingente populacional mundial. Em pouco mais de 200 anos, avançamos de um para quase oito bilhões de habitantes[1] e, obviamente, isso alterou fortemente as dinâmicas das metrópoles. Se outrora um curioso qualquer se dispusesse a caminhar pela cidade para conhecê-la, mapeá-la e descrever suas construções, ruas e transeuntes frequentes, obteria êxito em seu intento. Contudo, hoje, com a existência de cidades gigantescas, tanto em território, quanto em população, com a velocidade nunca antes obtida com que tudo nelas surge, se altera e se desfaz, e com o advento de tecnologias que a cada dia mais confinam os indivíduos em espaços restritos de moradia, lazer e trabalho (CAIAFA, 2002), é necessário que se faça uso de algum meio que permita um transitar mais acelerado por toda extensão dessas possibilidades. É nesse contexto, portanto, que apresento o ônibus de linha urbana como uma alternativa para a flânerie no mundo contemporâneo.

Se o flâneur é alguém que percorre toda a extensão da cidade, ocupando os seus espaços públicos, sempre atento às ruas, construções, paisagens e transeuntes por onde passa, agindo no anonimato que a multidão proporciona e com curiosidade pelo passado, presente e porvir de todas as essas coisas, de que modo ele conseguiria realizar melhor essa atividade nas cidades gigantescas de hoje, com seus milhões de habitantes e todas as questões que as envolvem do que em um transporte coletivo urbano? Se esse observador é alguém que consegue reconhecer todos os caminhos da metrópole, sabe distinguir cada ruela e estabelecimento, e contar um pouco da sua história, se ele identifica os indivíduos pela frequência com que transitam naquele espaço e apenas pela observação conhece seus hábitos e/ou nomes, quem seria um melhor flâneur do que um motorista ou um passageiro recorrente de um transporte público de linha urbana? 

No passado, a flânerie foi possível por causa do ferro e do vidro que protegiam o observador das intempéries do tempo e agora ele pode contar novamente com esses mesmos materiais, só que dessa vez sobre rodas. Aqui, apresento o ônibus como um tipo de galeria móvel, que permite ao curioso passageiro alcançar grande parte da cidade e conhecê-la em profundidade, a partir de viagens que são diárias, regulares e metodicamente planejadas. Entretanto, se essas características causam alguma estranheza ao leitor acostumado a pensar no flâneur como um vadio pouco disciplinado, é devido à pouca atenção que se dá ao seu modo de trabalhar. É um engano sequer cogitar que ele conheça tão detalhadamente a metrópole e tudo o que nela há sem estabelecer nenhum tipo de método, sem se debruçar longamente em investigar a história, sem deter-se por anos a fio acompanhando cada passo evolutivo do lugar e das pessoas que se propôs a investigar. Seu ócio é aparente, pois ele se dedica a uma atividade antiga que se assemelha à caça (ROUANET, 1992) e exige paciência, concentração e tentativas. Se nada lhe escapa ao olhar, é porque seu fazer é insistentemente cotidiano e repetitivo, e não há nada de ócio ou acaso nesse processo.

Quando importamos a flânerie do contexto europeu dos anos 1800 para a realidade brasileira do século XXI, compreendemos ainda a necessidade de adaptação de processos para a realização da mesmíssima atividade. Em tempos de globalização da informação, da comunicação cada vez mais à distância e de uma característica pressa cotidiana promovida pelo capital, é cada vez mais difícil encontrar espaços públicos em que haja centenas de pessoas e que não seja completamente estranho deter olhares demorados em suas direções ou fazer anotações de um modo despretensioso sobre elas e sobre o local. Benjamin, inclusive, vai falar em seu trabalho sobre as passagens que, já naquela época, antes do desenvolvimento dos transportes coletivos, as pessoas não conheciam a situação de se olharem reciprocamente por muito tempo sem dirigirem à palavra umas às outras (BENJAMIN, 1994). Entretanto, onde quer que haja ônibus, trens e metrôs nos dias de hoje, essa é uma prática corriqueira e, se não querida, pelo menos, previsível nas conduções públicas das cidades brasileiras.

A prática cotidiana de viajar nos transportes coletivos urbanos brasileiros induz a proximidade e mútua observação entre as pessoas ali presentes, seja pela lotação, medo ou apenas curiosidade em saber com quem dividirá um espaço tão restrito por um tempo. Sejam quais forem os motivos dos outros, para o flâneur contemporâneo esse é ambiente e disfarces perfeitos para que seu trabalho se efetive. Enquanto a condução flana pelas vias da cidade, ele pode se perder na multidão e, ainda assim, permanecer sozinho com suas anotações, pode ouvir as conversas sem esforço e tecer teorias sobre quem fala, pode contemplar toda a cidade pelas janelas e obter uma amostra de sua história atual através de quem entra e sai do transporte durante o trajeto, pode tecer comparativos entre tudo o que observa e repetir esse passo-a-passo várias vezes ao dia, todos os dias, com a proteção do vidro e do metal das galerias móveis sul-americanas, mas também com todas as dificuldades que apenas o encontro com a vida das metrópoles pode proporcionar. Essa é, portanto, a atividade que me proponho a realizar nos ônibus da linha Grande Circular I (151) da cidade de Fortaleza. Com o intuito de conhecê-la, à sua história, seus mistérios e também seus habitantes, me ponho sob a lógica da flânerie, fazendo-me estranha em minha própria terra (ROUANET, 1992), na tentativa de, a partir da contemplação, dispor de uma nova maneira de compreendê-la por completo, em todas as suas facetas. 

 

  1. O cotidiano das viagens de ônibus de linhas urbanas da cidade de Fortaleza.

Barulho do motor, do sinal de desembarque, de conversas, do trânsito. Calor. Frio. Lotação, apertos e empurrões. Profusão de odores bons e ruins, que despertam ou tiram a fome. Cores múltiplas nas roupas, nas peles e pelas janelas. Solavancos por conta das freadas bruscas ou pela má conservação das vias. Sono. Cansaço. Medo do desconhecido que embarca e da realidade que enfrentaremos ao desembarcar. Discussões, pregações, vendas, assaltos, performances. Paradas solicitadas atendidas e ignoradas. Ameaças, pedidos e agradecimentos. Gritos de adolescentes e adultos. Choro de bebês. Silêncio. Música em alto volume que saem pelos autofalantes dos veículos ou pelos aparelhos celulares dos passageiros. Pneus furados, desembarques forçados e espera por outra condução. Abordagens policiais. Essas experiências integram o cotidiano das viagens nos transportes coletivos urbanos de Fortaleza e, de tanto se repetirem, passam despercebidas pelo olhar de quem viaja neles regularmente. Apesar disso, direcionamos nossa atenção para alguns desses fenômenos, partindo da compreensão de que eles dizem muito sobre a cidade que investigamos e também sobre seus habitantes.

Para compreender o cotidiano, é preciso termos em mente sua característica fugidia, já que sua existência pressupõe que ocorra despercebida, repetitiva, quase maquinalmente e, segundo Maurice Blanchot (2007), é exatamente dessa forma que ele deve se apresentar a nós, pois quando é finalmente manifesto, estabelece-se ali o tédio para quem o vivencia, posto que sua recorrência foi notada e rapidamente conclui-se que os dias não são novos, e sim cópias dos que passaram e prévias dos que virão. Mas o que seria, afinal, o cotidiano? Ainda para Blanchot (2007) é tudo o que ocorre e também como as pessoas se comportam nos espaços privados de suas realidades, de modo espontâneo e não ensaiado, ou mesmo na rua, em razão do convívio com outros indivíduos. Michel de Certeau (2012) corrobora com essa afirmação ao dizer que o cotidiano é inventado a partir da ocupação dos espaços e pelo transitar na cidade. Então, mesmo que os sujeitos optem pela não interação, acabam por compor o quadro habitual e, até inconscientemente, seguem a valsa dos comportamentos recorrentes dos locais que ocupam. Observadas essas definições, concluímos de antemão a impossibilidade de notá-lo, compreendê-lo ou torná-lo factível, analisável, sem participar ativamente e escrever os detalhes dele. Do contrário, ele sumiria na correria da cidade e voltaria ao seu torpor habitual, silencioso, invisível, o que, com toda certeza, não é o que desejamos.

O que mais nos chama atenção no interior da condução, são alguns códigos de conduta estabelecidos e perpassados de uns aos outros exclusivamente pela observação, tal como levar a própria bagagem na frente do peito quando se viaja em pé, de modo que ela bata insistentemente em quem está sentado e, assim, pelo incômodo, o induza a pedir para levá-la consigo. Práticas como essas não são ensinadas por nenhuma comunicação oficial, mas a observação aponta que são aprendidas e repetidas de tal forma que integram o comportamento esperado no espaço. Segundo a historiadora Mary del Priore (1997), é dessa forma que as rotinas são estabelecidas: quando o homem ordinário se apropria dos espaços e inverte objetos e códigos, utilizando-os à sua maneira. Assim, no decorrer das semanas, presenciamos o cotidiano das viagens se moldando, enquanto estranhos completos vão tornando-se “conhecidos de vista”, ao passo em que surgem amizades e dessabores entre passageiros e motoristas, e de todos esses com os vendedores ambulantes, pedintes e performers que são presenças confirmadas nas viagens. Esses, por sua vez, também elencam suas linhas preferidas, baseados em suas vivências anteriores.

Contudo, a observação cotidiana também nos apresenta à impossibilidade de haver um único padrão comportamental nos transportes públicos e logo nos deparamos com aqueles que optam por agirem indiferentes aos estímulos presentes no espaço, mas até mesmo esse comportamento é rotineiro ali. Há os que preferem manterem-se isolados, o máximo possível, viajando em silêncio, com fones de ouvido, olhando pela janela, lendo ou até dormindo. Contudo, inclusive essa ausência de interação pode ser interpretada como uma forma de comunicação, pois se trata de “um silêncio amplamente povoado de presenças” (CAIAFA, 2005), em que mesmo quando o indivíduo escolhendo não reagir aos incentivos, o seu afastamento existe em resposta a eles. Para além disso, há de se levar em consideração mais duas características importantes: os contextos socioculturais e personalidades individuais, além da sensível expectativa que paira no ar no momento da viagem, pois o coletivo pode ser hostil, com a iminente possibilidade de brigas, assaltos, arrastões, etc. Afinal, a maioria dos que estão ali são desconhecidos entre si e, por ora, a solidão dos próprios pensamentos pode ser mais reconfortante do que a realidade que os cerca.

Em se tratando de desconforto, uma figura emblemática recorrente nas viagens dos transportes coletivos públicos são os vendedores ambulantes, pedintes e performers de uma forma geral, que transmudam um espaço de locomoção em seus ambientes de trabalhos ou até palco para apresentações. Além de dividirem opiniões, eles promovem o que Priore (1997) vai chamar de desordem, pois eles precisam ressignificar toda a rotina estabelecida no local por não conseguirem se encaixar nela. Assim, enquanto a condução transita pela cidade, milhares de homens e mulheres, invisíveis aos olhos do poder público e das iniciativas privadas, enxergam uma possibilidade de sobrevivência, através da venda de produtos, de talentos e de seus próprios corpos. Ali eles não são passageiros, mas tampouco reconhecidos como trabalhadores. O que para muitos é mais uma forma de se locomover, para eles pode ser uma última esperança de vida e, portanto, os contratos sociais dali não lhe dizem respeito: eles negam o pagamento da passagem, “interrompem o silêncio da viagem”, puxam conversas com completos desconhecidos que, de tanto se encontrarem, acabam por virarem colegas. As cadeiras vazias não lhes sugerem descanso, nem os interessam, pois sem público não há razão de estarem ali. A lotação, o calor e o barulho que a tantos incomoda, para eles é sinônimo de um dia proveitoso. A simples ação de estarem no ônibus fragmenta, distorce e altera o que Michel de Certeau (2012) denomina como ordem natural dos lugares.

Em se tratando dos transportes públicos urbanos, a ordem natural é sinônimo do planejamento oficial que é feito deles, de modo a idealizá-los sem levar em consideração a pluralidade de usos e corpos que adentram em seus espaços. Assim, são projetados espaços e comunicações para o homem mediano, que pode ser qualquer um ou todos ao mesmo tempo, sem rosto, sem formas ou necessidades reais. Eles abandonam “pequenos prazeres, os detalhes quase invisíveis, os dramas abafados, o banal, o insignificante” (PRIORE, 1997) que representam o próprio cotidiano. Entretanto, os indivíduos não são passivos aos contextos em que estão inseridos diariamente e todos os dias resistem a essa tentativa de apagamento reducionista, e isso pode ser percebido a partir de práticas rotineiras, das relações que estabelecem entre si, com espaço e, principalmente, com a realidade da capital que nos rodeia. Esta, por sua vez, nos alcança duplamente: ao passarmos por seus caminhos, enquanto olhamos pelas janelas, ou chegando até nós através de cada novo indivíduo que, ao embarcar, traz consigo uma infinidade de possibilidades.

 

  1. A Fortaleza que alcançamos com o Grande Circular I (151).

O ponto inicial de nossa flânerie diária pela cidade de Fortaleza inicia-se sempre pela manhã, no terminal do Antônio Bezerra, e encerra-se nesse mesmo ponto quando completamos todo o trajeto que o ônibus de linha Grande Circular I (151) faz pela capital. Assim, durante 4 horas, em média, transitamos por 33 dos 121 bairros que compõem a metrópole cearense e acessamos realidades completamente díspares de suas condições socioeconômicas. Nesse curto período de tempo, passeamos entre áreas ditas nobres, com construções luxuosas, vias conservadas e carros de luxo que nos ultrapassam velozmente, que se avizinham de habitações que apontam para existências em situação de completa miséria. Para além da questão estética que visualizamos pelas janelas, podemos constatar influência dessa transição de cenários nos comportamentos dos que viajam na condução ou até mesmo no estado de conservação dos veículos que fazem a rota definida. Enquanto em alguns pontos da cidade os ônibus seguem vazios e refrigerados, em outros ficamos enfadados, tamanho é o barulho do carro enferrujado e dos passageiros espremidos em lotação. Nesse momento, contudo, nos deteremos na descrição da cidade que nos chega como um filme transmitido pelas janelas.

A primeira parte da viagem ocorre entre os terminais Antônio Bezerra e Siqueira, e essa interseção é marcada por imagens de simplicidade, pobreza e insegurança. As casas do trajeto são pequenas, amontoadas e há uns pouquíssimos prédios não tão altos em ruas estreitas nas quais se avistam, em algumas de suas esquinas, avisos de facções criminosas para que os condutores baixem os vidros dos carros ou retirem o capacete ao entrarem nelas. Por essas ruelas, que se bifurcam em becos, dificilmente há acesso por outro modo que não seja caminhando ou utilizando uma bicicleta e, geralmente, esses espaços cruzam com uma avenida principal onde os moradores costumam tomar transportes coletivos diariamente. É por esse tipo de via que percorre o Grande Circular I (151), atravessando os bairros Antônio Bezerra, Dom Lustosa, Henrique Jorge, João XXIII, Bonsucesso e Siqueira, com seus baixos ou baixíssimos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)[2]. Essa classificação numérica se apresenta a nós de modo sensível, despertando audição, olfato, visão e sentimentos, já que presenciamos lixo em excesso amontoado pelas ruas, córregos fétidos que nos acompanham pela extensão do caminho, trânsito confuso, barulhento e perigoso, onde impera a lei do maior carro, caixa de som mais barulhenta ou capacidade de aceleração mais rápida, animais abandonados que correm e morrem entre todas essas representações de pobreza que ilustram o cotidiano da periferia fortalezense.

No que diz respeito à realidade das periferias por onde o ônibus Grande Circular I (151) transita, os passageiros são, também, reflexos desses espaços onde a desigualdade social deixa rastros das mais diversas dificuldades. Eles são, em sua maioria, pessoas negras trajando vestimentas informais, tais como vestidos ou shorts, em se tratando das mulheres, e bermudas e camisetas, quando homens. Muitos destes usam bonés e calçam chinelos de dedo, enquanto nelas há sempre um ou mais adereços, prateados ou dourados, principalmente nas orelhas. Contudo, não são as pessoas ou suas roupas que chamam a maior atenção, e sim as suas bagagens: simplesmente não há nenhuma sequer. Eles não portam, ou simplesmente não utilizam na condução, nenhum aparelho eletrônico ou qualquer outro aparato que sirva de distração. Talvez por ser um trajeto curto, mas muito provavelmente tem relação com o clima de insegurança que permeia a viagem, em qualquer horário em que ela se realiza. As pessoas nem mesmo se olham por muito tempo. Há uma tensão solitária no ar, que auxilia o trabalho do flâneur (BENJAMIN, 1994), mas que frustra as sensações do viajante que gosta de se perder em meio à multidão.

Até alcançarmos a primeira parada, no terminal Siqueira, a viagem ocorre numa velha condução, que range a cada desnível dos terrenos, que é comum nessas localidades, com muitos rabiscos de caneta em suas paredes, cadeiras e portas, contendo números de telefone e contatos de redes sociais, além do clima quente e abafado devido à temperatura da cidade. A partir desse ponto, no entanto, o veículo será substituído por um mais novo, aparentemente mais limpo, com sistema de refrigeração eficiente, iluminação forte e um painel próximo ao motorista que transmite imagens do interior do carro. Essa mudança simples e, aparentemente, pouco relevante, vai chamar a atenção do observador que vê nela um importante marcador social, afinal, é deste momento em diante que o ônibus vai percorrer bairros mais abastados, com Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) em constante ascensão e, apesar dos poucos dados para chegar-se à uma conclusão definitiva, pode-se pelo menos notar que há clara diferenciação do tratamento destinado aos cidadãos de diferentes partes da cidade, inclusive nos transportes coletivos. Então, mesmo que os próximos bairros pelos quais o Grande Circular I (151) vai transitar – Vila Pery, Parque São José, Mondubim, Novo Mondubim, Prefeito José Walter, Passaré e Jangurussu – estejam longe de serem classificados como nobres, estão mais próximos destes, ainda que só geograficamente.

No intervalo entre os terminais Siqueira e Messejana, as avenidas são ladeadas por comércios e há muita movimentação de carros e pedestres, principalmente próximo à uma feira livre na qual paramos por um bom tempo no ponto de ônibus que há à sua frente. A demora se deve à dificuldade que os consumidores, e agora passageiros, enfrentam para embarcar a enorme quantidade de sacolas, pacotes e bolsas que trazem consigo. Às vezes, os motoristas tentando agilizar o processo, abrem a porta do meio, que deveria ser de uso exclusivo nos terminais, mas ainda há muita confusão entre adultos, crianças e bagagens que precisam vencer a etapa da catraca sem cobrador para, finalmente, poderem viajar. Assim, ao passo em que nossa viagem se inicia com imagens de pobreza, sons e cheiros de poluição, agora nossos sentidos são despertados pelo aroma de frutas e verduras, pelas cores dos produtos nas barracas, pelos sons de gritos dos feirantes, das buzinas dos carros apressados, das conversas dos novos embarcados e de um outro tipo de comércio que surge ali mesmo, no corredor do transporte coletivo: a venda ambulante.

De todas as interseções entre terminais do Grande Circular I (151), é nessa parte da viagem que mais se concentram vendedores ambulantes, pedintes e performers, às vezes simultaneamente, e eles se misturam à profusão de matizes, odores e barulhos confusos ali. A frequência com que participam da viagem é tanta, que eles tentam atrair a atenção do seu público com vozes alteradas e mais movimentação dentro de um espaço já caótico pelo excesso de informações que chegam por todos os lados e que, em alguns momentos, fica impossível compreender qualquer mensagem. Talvez, portanto, seja essa a razão para que muitos optem por se reservarem nos micromundos de seus aparelhos celulares, seja para ligações telefônicas, assistir filmes ou ouvir músicas, o que nem sempre ocorre com uso de fones de ouvido, mas sim em volume que compete com toda a barulheira do lugar. Nas vezes em que isso ocorreu, o gênero musical era sempre o reggae e foi possível notar olhares de desaprovação para a conduta, ainda que seja impossível saber a real motivação.

Os demais passageiros dessa parte da viagem não diferem muito dos anteriores em tons de pele e aparente condição socioeconômica, mas já demonstram poucas restrições quanto ao uso de aparelhos eletrônicos durante o trajeto. Além disso, suas roupas e bagagens bem mais formais – calças compridas, sapatos fechados, sandálias, mochilas e roupas à tiracolo – sugerem que eles estão num ir e vir para espaços de estudo ou trabalho, e apesar da confusão característica deste trajeto que dura pouco mais de 35 minutos, foi nele que mais vezes as pessoas tiveram algum tipo de atitude solidária espontânea, tal como se oferecer para pagar a passagem de um completo desconhecido que estava sem o bilhete eletrônico e, ao notar que a condução era de autoatendimento[3], pediu para descer no meio do caminho. Ou quando motoristas, por sua vez, permitem que todos que estão sem passagem desçam uma parada antes do terminal da Messejana e, assim, não sejam hostilizados pelos fiscais de lá e, é com demonstrações singelas de cordialidade diárias, que alcançamos uma terceira parte da cidade de Fortaleza, que será um completo oposto de tudo o que vimos até agora.

Se até este momento a viagem do Grande Circular I (151) nos levou pelas periferias da Fortaleza, a partir do terminal Messejana o roteiro seguirá por bairros que possuem os melhores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da localidade, tais como Messejana, Guajerú, José de Alencar, Sapiranga, Edson Queiroz, Cocó e Papicu, e como já pudemos perceber pelos outros trajetos, isso exerce forte influência nas imagens que obteremos da cidade, dentro e fora da condução. Pelas janelas, o que avistamos é um cenário que possui altos prédios residenciais, que desbocam em vias largas nas quais correm vários veículos modernos em alta velocidade. Nós também corremos muito, pois nessas avenidas as paradas de ônibus são muito distantes umas das outras, então há bem menos embarques e desembarques acontecendo, a não ser quando alcançamos pontos estratégicos como dois shoppings centers, uma universidade e um gigantesco centro de eventos, em que sobem e descem muitos passageiros, trabalhadores e estudantes nestes espaços. Somente assim podemos observar melhor os detalhes ao redor, pois já não podemos contar com ruas estreitas, esburacadas e com muitos semáforos para desacelerar o ônibus continuamente. Além do claro processo de urbanização que privilegia o espaço livre, é notório como na região as ruas são bem mais limpas, os carros de polícia são mais frequentes e, incrivelmente, há bastante verde em meio a tanto concreto e asfalto.

No que diz respeito à viagem, esse é o trajeto de maior lotação do início ao fim dela, pois quase todas as pessoas que embarcam no terminal Messejana prosseguem até o do Papicu e se as anteriores eram, em sua maioria, negras e portavam bagagens simples e discretas, agora a condução segue lotada de pessoas brancas, levando mochilas e vestindo roupas ou acessórios de marcas famosas, conhecidamente caras. Claro que nem todos seguem o padrão. Há muitos trabalhadores vestindo uniformes, mas há uma parte com vestes formais, como sapatos sociais ou de salto alto. Geralmente é esse segundo grupo que leva na mão mesmo celulares, livros e tablets, com fones de ouvido grandes e chamativos, e que desembarca nos shoppings Iguatemi ou Via Sul e no Centro de Eventos, mas até lá, eles assistem filmes em seus aparelhos eletrônicos ou conversam pelas redes sociais. As pessoas são mais jovens também e muitas delas descem em frente à Universidade de Fortaleza (UNIFOR)[4], quando só então o ônibus esvazia um pouco mais, o que é a perfeita oportunidade para a entrada dos vendedores ambulantes.

Mesmo havendo vendedores ambulantes em todas as partes dessa viagem, aqui eles são, sem dúvida, os que apresentam mais peculiaridades que não passam despercebidas a um observador do cotidiano e a primeira delas tem a ver com o discurso que empregam. Se os que trabalham nas regiões periféricas afirmam estar ali em caráter provisório, como alternativa para a criminalidade, por exemplo, os daqui se apresentam como trabalhadores formais, como pouca menção sobre suas histórias de vida e mais focado nos produtos que oferecem ali, mas até quando falam sobre si, as informações são de estudantes tentando pagar as mensalidades de suas faculdades ou cursos. Suas vestimentas corroboram essas informações, pois eles se apresentam vestindo trajes simples, mas bem menos informas do que estamos acostumados. Boa parte usa calças jeans, tênis e mochilas, mas há até os que optam por uma roupa formal, com calças compridas, blusas de manga longa e sapatos sociais. Até mesmo os produtos são completamente díspares das guloseimas anteriores. No percurso entre os terminais Messejana e Papicu é possível comprar fones de ouvido, aparelhos eletrônicos, quitutes famosos e nécessaires sem precisar descer da condução, e ainda é possível pagar com cartão de créditos, pois os vendedores da linha levam consigo as maquinetas para realizar a operação ou quem sabe decidir quanto custa a mercadoria, já que alguns deles confiam essa definição aos distintos estranhos sentados à sua frente.

Após muitos minutos transitando por espaços nobres da cidade, cuidadosamente planejados, com largas vias pavimentadas, amplos espaços arborizados, com constante movimentação e uma sensação de segurança contínua, retornamos ao terminal Antônio Bezerra para completar toda a rota do Grande Circular I (151). Essa parte da viagem, que dura cerca de uma hora e meia, marca uma importante transição, pois ao passar por cada um dos bairros Papicu, Dunas, Vicente Pinzon, Praia do Futuro, Cais do Porto, Mucuripe, Meireles, Praia de Iracema, Jacarecanga, Pirambu, Cristo Redentor, Barra do Ceará, Vila Velha, Jardim Guanabara e Antônio Bezerra, significa um retorno de áreas de luxo para locais de extrema pobreza e baixíssimos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), e tudo o que disso acarreta. Por ora, no entanto, é importante ressaltar que há outras duas linhas de ônibus urbanos que fazem essa interseção entre os dois terminais, mais rapidamente e com menos rumores conhecidos sobre assaltos e outras violências, e que talvez sejam essas as causas para que as viagens transcorram quase vazias, com a companhia, muitas vezes, do motorista apenas.

Do bairro Praia do Futuro até a Barra do Ceará, respectivamente de leste à oeste da cidade, a viagem do Grande Circular I (151) segue ladeada por um cenário de praias com verdes mares[5], já que é foi na orla marítima que estes bairros foram construídos. Contudo, apesar de se localizarem na extensão das mesmas águas e de seus caminhos estarem ligados pela continuação de vias comuns, as semelhanças entre as partes encerram-se aí. A região aos arredores da Beira-Mar é cobiçada pela ideia de moradia e hospedagem das classes mais abastadas, tanto as locais, quanto as visitantes, desde a abertura da avenida, no ano de 1962, junto à inauguração de diversos clubes na zona da praia e do bairro Aldeota, e da introdução do automóvel e dos carros particulares para a classes mais abastadas de Fortaleza, serviram como consolidadores da localidade como um polo de lazer (BELMINO, 2018) e tornaram o seu metro quadrado o mais caro da cidade. Ao seguirmos pela avenida Abolição, chegamos à Praia de Iracema, que até 1920 era uma aldeia de pescadores, conhecida como Porto das Jangadas, Praia do Peixe ou Grauçá. Algumas décadas e construções depois, com os moradores nativos expulsos pelos processos de gentrificação, o espaço tornou-se como o conhecemos hoje: um local destinado ao lazer, onde famílias de muitas partes da cidade reúnem-se para andar nos patins alugados nos calçadões ou no qual multidões se aglomeram nos grandes eventos realizados em datas já aguardadas, como carnaval e reveillón, nas áreas em que a faixa de areia foi aumentada por aterramento.

Aliás, é por Aterro, Aterrinho – ou PI (pê-í) – que a localidade é conhecida em Fortaleza e, enquanto a primeira parte é pouco ocupada boa parte do ano, a segunda recebeu o apelido de Praia dos Crush e aos domingos recebe uma multidão de visitantes, principalmente moradores da periferia (SOARES, 2020), que se juntam para tomar banho de mar, encontrar os amigos e aplaudir o pôr-do-sol, antes de retornarem para suas casas. Ao alcançarmos a avenida Presidente Castelo Branco, indo até o final da avenida Leste-Oeste, somos acompanhados pela bela e deserta Praia da Leste, que apesar de ser uma continuação do mesmo mar da Praia de Iracema, é totalmente esquecida pelo poder público e iniciativas privadas. A explicação é histórica: em períodos de seca, há pouco mais de 100 anos, a região recebia os retirantes vindos do interior e os aglomerava nos campos de concentração construídos em seus territórios. Os miseráveis nessas condições acabaram por fixar residência ali e a região que corresponde hoje à Barra do Ceará é uma das maiores periferias da capital, que, como tal, enfrenta problemas típicos desses locais, como a falta de saneamento básico. Isso acarreta muitos dejetos desbocando em alto mar, num forte e sufocante odor pútrido que vem de suas águas[6] e enche toda a condução ao passarmos por ali, e pela tentativa diária de apagamento. O maior exemplo disso está no Marina Park Hotel, uma das hospedagens mais caras do Ceará, que recebe turistas do mundo inteiro, mas que planta árvores em frente às janelas, impedindo a visão dos visitantes para a favela ao redor. Assim, mais uma vez o litoral torna-se palco das desigualdades alencarinas, mesmo quando está situado próximo às comunidades carentes.

Continuamos nossa última parte da viagem e quando há, pelo menos, entre 5 e 10 passageiros no ônibus, é possível perceber alguns padrões que se repetem ao longo dessa última parte da rota, tanto de rostos, quanto de uniformes de escolas – em sua maioria, públicas – ou de empresas, principalmente das companhias de transporte e comércio em geral. Há sempre dois rapazes que embarcam num ponto da Praia de Iracema, onde trabalham numa farmácia, e que tiram a camisa da empresa ao entrarem na condução, como é possível notar ser uma prática comum dali. Eles seguem viagem juntos e silenciosos, até seus destinos de desembarque na Barra do Ceará. Aliás, silêncio é a companhia mais frequente a partir de agora e ela é tão forte que chega a causar sonolência e enfado no observador já cansado de repetir o mesmo trajeto todos os dias, mas isso se modifica com a presença dos estudantes saindo das escolas, pois eles andam em grupos ou acompanhados de um adulto, quando crianças, conversando em alto volume durante todo o período em que estão embarcados. Os assuntos são os mais diversos: as aulas, os amigos, as novidades, mas há uma pauta é recorrente: os relatos sobre assaltos sofridos nessa linha e é, provavelmente, por isso que não se vê nenhum dispositivo eletrônico ou qualquer outro objeto de valor em mãos. Quem não está uniformizado, opta por roupas simples e evitam transportar muitas bagagens. Tudo na tentativa de passarem despercebidos e não serem as próximas vítimas.

Os vendedores ambulantes, figuras recorrentes em toda nossa jornada pela cidade, possuem dois perfis recorrentes aqui: os que “alugam” o ônibus e os que disfarçam que o são. O primeiro grupo é formado, principalmente, por homens que embarcam no terminal Papicu, logo oferecem seus produtos e se sentam até que o veículo volte a ficar “cheio”, e com o novo público ele repete sua ladainha até desembarcar no final da linha. Já o segundo tipo são mulheres que viajam normalmente, como qualquer outro passageiro e, repentinamente, sem alarde ou alteamento de voz, sentam-se ao lado de seu possível cliente, oferecem o produto à venda e logo após desembarcam, alcançando seu objetivo ou não. A abordagem é feita de modo, no mínimo, pouco usual, chegando mesmo a ser assustador, mas o tempo mostra que são moradoras locais tentando ganhar alguns trocados enquanto se deslocam por uma Fortaleza afastada dos grandes centros comerciais, marginalizada e abandonada pelo poder público e pelas iniciativas privadas, que luta diariamente contra o desemprego, a insegurança e a falta de oportunidades, e que consegue ser completamente diferente de outras Fortalezas pelas quais percorremos dentro de uma mesma condução.

 

  1. Considerações finais

Quando Taylor sentenciou o fim da flânerie tradicional nas galerias parisienses, através de fabricação de um modo de viver acelerado, em que já não há nas pessoas tempo ou vontade de se dedicarem à contemplação da cidade, talvez não imaginasse que existiria resistência ao modo fabril de existir dois séculos depois. Muito provavelmente ele não acreditaria se lhe dissessem ainda que o flâneur encontraria outras formas de realizar sua atividade para além da caminhada aparentemente ociosa frente às vitrines e, com a mais absoluta certeza, jamais cogitaria que os meios de transporte, símbolos da velocidade e do estilo de vida capitalista de toda uma época, seriam aliados essenciais para que as mega-metrópoles atuais possam ser, de fato, alcançadas pelos observadores. Ao possuírem um espaço frequentemente apinhado de viajantes, os transportes coletivos públicos oferecem ao observador as condições que ele considera ideais, já que lhe permitem perder-se em meio à multidão e agir de modo que seria considerado estranho em outros contextos, tal como percorrer diária e repetidamente os mesmos trajetos ou perder horas a fio encarando os indivíduos que dividem o carro lotado consigo.

Quando realizada no ônibus de linha urbana Grande Circular I (151), em Fortaleza, a flânerie nos apresenta, então, uma capital heterogênea, que mais parecem várias cidades diferentes a cada novo bairro pelos quais percorremos, pois eles refletem em cada pedaço as imensas disparidades socioeconômicas encontradas na região. Em qualquer nova rua ou avenida, há sempre uma experiência sensível, que despertam os sentidos com suas imagens, sons e odores trazidos pelas janelas ou mesmo por meio de cada novo embarque e desembarque ao longo dos 174 pontos de ônibus do caminho. Ao passo em que desbravamos as vias e as histórias dos lugares, passamos ter uma melhor compreensão dos comportamentos e as escolhas dos passageiros, tais como usar ou não um aparelho eletrônico, encarar pessoas ou optar por perder-se em observação ao lado de fora, dormir ou manter-se alerta o máximo possível. Isso nos mostra que, na verdade, ao mesmo tempo viajamos pela cidade, ela também passa por nós e que cada detalhe da trajetória, por mais ínfimo que seja, não integra apenas um cenário, mas é parte essencial de um cotidiano acessível, porém pouco reparado. Portanto, se almejamos analisar, entender e descrever completamente os hábitos e rotinas que efetivam a cidade, precisamos estar sempre dispostos a embarcar na próxima condução.       

 

  1. Referências

ANUÁRIO DO CEARÁ 2019 - 2020. Índice de Desenvolvimento Humano - Fortaleza (2010). Disponível em: <http://www.anuariodoceara.com.br/indice-bairros-fortaleza/>. Acesso em: 20 de fev. 2020.

BELMINO, Sílvia Helena. Sinta na pele esta magia: a propaganda turística do Ceará (1987-1994). Fortaleza: Imprensa Universitária, 2018.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 2. ed. Trad. José Carlos Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, 3).

BLANCHOT, Maurice. A fala cotidiana. In: BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007.

CAIAFA, Janice. Jornadas urbanas. Exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

CAIAFA, Janice. Conversações. Contracampo (UFF), Niterói, RJ, v. 10/11, p. 169-184, 2004.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petropólis: Vozes, 2012.

MACIEL. Wellington Ricardo Nogueira. Tempos e Espaços da Praia do Futuro: usos e classificações de uma zona liminar. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, p. 241. 2011.

PONTUAL, Virgínia; LEITE, Julieta. Da cidade real à cidade digital: a flânerie como uma experiência espacial na metrópole do século XIX e no ciberespaço do século XXI. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, núm. 30, agosto, 2006, pp. 99-105.

PREFEITURA DE FORTALEZA. Ônibus e vans. Disponível em: <https://mobilidade.fortaleza.ce.gov.br/transporte/%C3%B4nibus-e-vans.html>. Acesso em: 17 de fev. 2020.

Priori, Mary Del. História do cotidiano e da vida privada. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de teoria e de metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

ROUANET, Sérgio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? Revista USP. Dossiê Walter Benjamin. São Paulo, n.15, p.49-72, set-nov. 1992.

UNIFOR. Fundação Edson Queiroz. Disponível em: <https://www.unifor.br/fundacao-edson-queiroz>. Acesso em: 14 de fev. 2020.

UNITED NATIONS. Population. Disponível em: <https://www.un.org/en/sections/issues-depth/population/index.html>. Acesso em: 15 de fev. 2020.

 

Data de Recebimento: 14/05/2020
Data de Aprovação: 06/11/2020

 

 

 

 

 

[1] Esses dados foram divulgados pela Divisão de População da ONU, em 2017, e prevê que até 2100 alcançaremos a marca de 11,2 bilhões de habitantes no mundo. Disponível em: <https://www.un.org/en/sections/issues-depth/population/index.html>. Acesso em: 15 de fev. 2020.

[2] A pesquisa sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) por bairro de Fortaleza, com categorias IDH Educação, Longevidade, Renda e a classificação de cada bairro é realizada a cada decênio e os dados obtidos aqui correspondem ao período 2010-2020. Disponível em: <http://www.anuariodoceara.com.br/indice-bairros-fortaleza/>. Acesso em: 20 de fev. 2020.

[3] Todos os ônibus que funcionam na modalidade autoatendimento possuem uma placa indicativa na sua parte frontal, além de terem adquirido o número 1 à frente de sua antiga numeração. O Grande Circular I, por exemplo, passou de 051 para 151. Contudo, essa sinalização não funciona para alguns grupos de pessoas, tais como deficientes visuais e analfabetos. 

[4] A Universidade de Fortaleza (UNIFOR) é uma instituição privada de ensino superior, fundada em 1971, a partir da iniciativa da Fundação Edson Queiroz, que tinham o intuito de oferecer uma educação de excelência por meio de cursos e instalações modernas, para além dos oferecidos pelas universidades públicas locais. Disponível em: <https://www.unifor.br/fundacao-edson-queiroz>. Acesso em: 14 de fev. 2020.

[5] A cor verde das águas marítimas é uma característica visual marcante das praias cearenses e foi evocada, principalmente, pela obra Iracema, do escritor José de Alencar, em que ele narra o início da colonização do estado, a partir da visão do Romantismo.

[6] Há um conhecido boato de que há corpos de pessoas indigentes jogadas dentro do mar. Essa lenda urbana tornou-se famosa pela mistura do forte e mau odor, com o fato de o Instituto Médico Legal da cidade estar localizado em frente à Praia da Leste.