Revista Rua


Resenha

Cypherpunks: liberdade e o futuro da Internet

André Luiz Campos Vargas
Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal de Santa Maria - UFMS
e-mail: anndrecampos@hotmail.com

 

          Liberdade, futuro e Internet são palavras dotadas de forte efeito simbólico. Por si só, tomadas uma a uma para fins de análise, já nos demandariam uma tarefa inestimável em procedimentos metodológicos de maneira a enfeixar a variedade de paráfrases, significados, sentidos possíveis e alternáveis que derivam para novas referências semânticas, políticas, sociais, econômicas e/ou tecnológicas. Delas e por elas uma nova palavra: cypherpunks.

          Em Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet(Boitempo Editorial, 2013), tais palavras se conjugam a partir do alerta com foros de denúncia a partir do sentido de liberdade como valor inalienável ao homem e, ao mesmo tempo, do quanto o Estado garantidor de direitos e regulador de deveres à realização possível de futuro ao cidadão intervém com sofisticados mecanismos de vigilância, no caso em questão, por meio da mais jovem e revolucionária invenção que afeta e transforma profundamente as relações humanas, a Internet. O que é um cypherpunk? Os editores têm o cuidado de responder já antes de uma necessária nota salientando ser esta a primeira edição lançada na América Latina, acrescida de um prefácio de Julian Assange. Pois bem, os cypherpunks defendem a utilização da criptografia e de métodos similares como meio para provocar mudanças sociais e políticas. Uma espécie de código para uma intercomunicação de resistência política à vigilância, à censura e à dominação. Em português o termo pode ser traduzido como “criptopunk”, mas os editores decidiram mantê-lo em sua forma original, internacionalmente utilizada.

          O livro tem por base uma conversa entre os quatro autores: Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Muller-Maguhn e Jérémie Zimmermann e pode ser lido tanto como uma denúncia ao furor de uma guerra invisível em pleno percurso em toda a complexa rede mundial de computadores e de suas ramificações tecnológicas de comunicação, quanto pode permitir uma leitura do funcionamento da ideologia, das formas político-ideológicas de governos e corporações, da reprodução ideológica de formas de violência e de dominação do Estado invisível. É de uma guerra furiosa pelo futuro da sociedade que alertam os autores – de um lado, os atores protagonistas do sistema capitalista – o Estado hegemônico com suas trincheiras muito bem resguardadas e fortificadas, de outro lado, a improvável resistência dos cypherpunks, ativistas e “hackers”, soldados sem trincheiras definidas visto que o espaço que ocupam é imaterial, é virtual, é o ciberespaço.

          Julian Assange é o editor-chefe do WikiLeaks (http://WikiLeaks.org) e adverte que “este livro não é um manifesto” e sim um alerta para a velocidade irrefreável e desordenada com que o mundo avança ao encontro de uma nova “distopia transnacional”. Considerando que a Internet é a nossa maior ferramenta de emancipação, é justamente por ela que uma nova face do velho totalitarismo avança, em uma estratégia silenciosa como iminente ameaça à civilização humana. O apelo pode parecer demasiado exagero, mas não para quem, como Assange, tem se defrontado com as garras de um inimigo crudelíssimo em sua perspectiva mais direta e aterrorizante: - “Nós nos vimos cara a cara com o inimigo”, assevera. Para detalhar, diz que o WikiLeaks entrou em conflito com praticamente todos os Estados mais poderosos, nos últimos seis anos. “Trata-se de um parasita invasivo, que engorda à custa de sociedades que mergulham na Internet. Ele chafurda pelo planeta, infectando todos os Estados e povos que encontra pela frente”. Trata-se de um livro com texto fluente que instiga nossa memória à lembrança de antigos filmes sobre espionagem com temas “futuristas” ou, ainda, à rememoração de tramas da literatura política (impossível deixar de pensar no clássico 1984, de George Orwell). Essa remissão ao imaginário ficcional pode ser compreendida pelo efeito de sentido da ideologia e seus vestígios nunca facilmente perceptíveis – aqui, a ideologia dominante funcionando com vistas a perpetuar o caráter de hegemonia do sistema capitalista. Em Cypherpunks lemos muito mais do que uma crítica à velha ordem estabelecida enquanto voltada a assegurar a prevalência de interesses materiais e políticos (conforme o prefácio, “a tirania do imperialismo, que hoje sobrevive no domínio econômico-militar da superpotência global”); nem é o retorno ao sempre jogo de poder sustentado por embates ideológicos discursivos. Modesto, sem o compromisso de explorar a fundo questões geopolíticas, o livro propõe exatamente nesse contexto de resistência e de luta pela autodeterminação, compreendermos os elementos contributivos à organização e mobilização massiva de movimentos populares que desestabilizam hegemonias tidas como inabaláveis, “depois de séculos de brutal dominação imperial”.

          No entanto, é para o espectro etéreo de ideologia dominante que a leitura crítica da obra também pode nos remeter, de maneira a vislumbrarmos em sua densidade a existência de uma sólida rede em funcionamento voltada à vigilância e ao controle social (suspeitamente ao alvedrio da lei) em proporções inimagináveis. Objetivo e envolvente, o texto açula nossa memória a fatos recentes e remete-a a elementos fartamente sinalizados em notas de rodapé, indicando links referenciais que atualizam os acontecimentos veiculados pela imprensa ou por documentos oficiais em tribunais de justiça, conferindo os aspectos sinistros que não mais rondam, mas são aplicados soturnamente ao cidadão que, sem perceber, tem sido violado em seu consagrado direito de privacidade. Vale o excerto que culmina em uma metáfora que parece exagerar ao extremo: “Quando nos comunicamos por Internet ou telefonia celular, que agora está imbuída na Internet, nossas comunicações são interceptadas por organizações militares de inteligência (...) Nesse sentido, a Internet, que deveria ser um espaço civil, se transformou em um espaço militarizado. Mas ela é um espaço nosso, porque todos nós a utilizamos para nos comunicar uns com os outros, com nossa família, com o núcleo mais íntimo de nossa vida privada. Então, na prática, nossa vida privada entrou em uma zona militarizada. É como ter um soldado embaixo da cama”.

          Essa é, indiscutivelmente, a urgência do alerta de Cypherpunks: não se trata de uma batalha política e tecnológica, seja para posições políticas de esquerda, direita ou de alternativa radical. E sim de um movimento prático, incisivo e extremamente objetivo amparado em controles democráticos e legais – sim, há leis que legitimam a interceptação e a formação de arquivos de dados. Sabemos agora com certeza que o aparato tecnológico de vigilância tem o aval político para “gravar” a comunicação de todo mundo, independente de culpa ou inocência. O expediente clandestino e ilegal já não é mais na “velha” prática da escuta telefônica e da campana, mas sim da possibilidade de interceptação e acesso aos “metadados” – o grande arquivo da retenção de dados.

          E onde se dá o fronte dessa nova batalha? No novo espaço, ao mesmo tempo subjetivo e sólido, de funcionamento da Internet. E o aspecto angustiante é que o alerta de Cypherpunks revela que estamos em desvantagem. Cada vez mais e mais acessamos e adquirimos equipamentos tecnológicos que nos permitem a inserção no novo mundo de comunicação online, de eficiência, velocidade e sofisticação na Internet, seja pela telefonia celular, seja por mini/microcomputadores (tablets). Antes das tecnologias digitais o espaço de visibilidade na mídia era ocupado por celebridades. Hoje, há uma profusão de mídias de exposição, de circulação da visibilidade acessível a qualquer pessoa; basta clicar no botão “publicar”. “Publicar” significa tornar algo público, permitir acesso a esses dados ao resto do mundo – e, é claro, quando vemos adolescentes postando fotos de si mesmos bêbados ou algo assim, eles podem não ter a noção de que isso pode ser acessado pelo resto do mundo, potencialmente por muito, muito tempo. Quando se clica no botão “publicar” é para a empresa que armazena os dados e ganha dinheiro com esse processo que é dada a autorização de acesso, antes do(s) amigo(s), familiar(es) ou outros usuários da rede.

          A questão está se agravando. “A complexidade e o sigilo constituem uma mistura tóxica” e a letalidade não se concentra no que está oculto, mas na maneira com que se pode utilizar e trazer à tona aquilo que em meios e controles democráticos configuraria direito inalienável do cidadão. Um direito que somente por demanda judicial e em condições extremas e justificadas pode ou poderia ser subvertido de maneira a autorizar a vigilância, a intervenção na privacidade do sujeito pelo Estado repressor.  E a legitimação para a intervenção permanente está assentada na metáfora dos Quatro Cavaleiros do Infoapocalipse: lavagem de dinheiro, drogas, terrorismo e pornografia infantil.

          Por outro lado, os autores nos convidam a exercitarmos nossa massa crítica ante a manobra de antecipação empreendida pelos Estados e seus aliados – sob o primado da ideologia hegemônica – de forma a desvelarmos o aparente consenso formado em torno da promessa de paraíso do novo mundo da Internet. A Internet é algo muito novo, uma nova capacidade que possibilita que qualquer um escreva e se expresse. Hoje todo mundo tem voz, e muita gente não cuida do que fala ou escreve. No entanto, “poder usar essa capacidade de se expressar em público faz com que as pessoas tenham de elaborar seus discursos, e isso, com o tempo, as capacita cada vez mais a participar de discussões complexas”, acreditam os autores em referência a aparente liberdade de tudo poder dizer, para mais adiante afirmarem não se tratar de “uma questão de vanguarda política, e sim de canalizar, através do sistema político, essa nova capacidade de nos expressar que está em nossas mãos, de participar do processo de compartilhamento do conhecimento”.

          Vale a lembrança, quase um vaticínio, de Michel Pêcheux em um breve texto sob o título de Ideologia – aprisionamento ou campo paradoxal? – originalmente apresentado em 1982 e publicado em um trabalho de Eni Orlandi em 2011, quando denuncia o “totalitarismo sutil de uma ordem (dispositivo) panóptica sem patrões visíveis” de uma prática singular caracterizada pelo “emprego de tecnologias de opressão cada vez mais refinadas”. Para o precursor da Análise de Discurso, deve-se questionar essa fragilidade de pensamento que não vem “de cima”, mas sim, “de baixo” – “uma roda de diferentes matérias brutas ideológicas do cotidiano, que podem trazer à tona diferentes acontecimentos, movimentos e intervenções de massa (...) aceitar todas essas questões como sérias, e não como folclóricas significa tratar a língua não como um mero Meio, mas sim, como um campo de forças constitutivo desses processos”.

          Podemos ler este livro com profundo interesse em desvelarmos as novas formas de funcionamento da ideologia, mas é, por outro lado, urgente lê-lo como alerta à ameaça da liberdade de expressão. Língua, linguagem, comunicação, Internet são pontos que se entrecruzam em movimentos simultâneos sem que possamos descrever o funcionamento dessa lógica oculta de controle e intervenção. É de submissão/assujeitamento ideológico e necessidade de resistência à violência da vigilância e do controle totalitários que este livro trata e conclama que posicionemo-nos em um lugar no qual seja possível enunciar oposição como desafio ao jogo de todos os jogos – a vigilância total de todas as comunicações.


Número 19 - Junho 2013
ISSN 1413-2109/e-ISSN 2179-9911

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