Casa dos Mendigos de Itabuna: Tensões entre loucura, urbanidade e racialidade


resumo resumo

Pedro Arão das Mercês Carvalho
Rogério Modesto



Introdução

Em meados dos anos 1950, Itabuna, cidade localizada no Sul da Bahia, já disparava em relevância estadual, nacional e até mesmo internacional devido ao crescimento vertiginoso do cultivo e do comércio de cacau nessa região. Por causa de sua posição logística e geográfica estratégica, Itabuna se tornou o principal centro comercial e urbano do sul do estado a partir de meados do século XX (Trindade, 2015, p. 74). No campo artístico, através do cinema e da literatura, o funcionamento político e social da cidade e da região, como também parte de sua história, foram imortalizados principalmente pelas obras de Jorge Amado e Adonias Filho (Rosa; Silva, 2021), escritores grapiúnas.[1]

Contudo, mesmo com história pertinente, é curioso que a memória de e sobre Itabuna seja frequentemente esquecida e passe por constantes processos de apagamento. É estranho, por exemplo, que a cidade, uma das mais populosas da Bahia e que já foi o centro da região com maior movimentação de capital do estado (Trindade, 2015, p.42), não possua museus atualmente em funcionamento,[2] levando em conta que museus são instituições inscritas em corpos coletivos de traços sócio-históricos materializados (as cidades), e funcionam como práticas de significação e inserção social de sujeitos.[3] Nesse sentido, embora Itabuna possua um Arquivo Municipal em funcionamento, sua precariedade – já que a infraestrutura desse lugar está em vias de desmantelamento[4] – põe em jogo uma política do descaso com as memórias urbana e urbanística de Itabuna.[5]

Contudo, se a precariedade do arquivo físico impõe uma política do “não-dizer” (Orlandi, 2007), a memória resiste inscrevendo-se em diferentes formas materiais: nos monumentos, na arquitetura, nas histórias orais, nos livros didáticos e teóricos. Foi justamente na busca por formas de registro da memória da cidade de Itabuna que nos deparamos com as pesquisas dos historiadores Carvalho (2015, 2016) e Sousa (2010, 2016) sobre questões no desenvolvimento urbano, político, social e, sobretudo, histórico de Itabuna no século XX. Esses textos nos levaram à questão sobre a qual aqui nos debruçamos: a existência, na cidade de Itabuna, de uma “Casa dos Mendigos” e, mais do que isso, da recusa dos chamados “mendigos” em ocupá-la.

O referencial disposto acima nos mostrou não apenas a possibilidade de driblar certas dificuldades da pesquisa nos arquivos físicos como também nos guiou pelos tortuosos caminhos da busca documental. Assim, com embasamento teórico na Análise de Discurso (AD) de perspectiva materialista, encontramos recortes dos jornais da cidade nos anos 1950 que, enquanto narrativa dominante em circulação na sociedade, foram lidos ao pensar em como se dá uma pretendida supressão das falhas na ordem cidade – através do saneamento – no discurso do urbano (Orlandi, 1999; Barbosa Filho, 2012) e em como ocorrem os deslizamentos de sentido de “mendigo”.

O trabalho, assim, justifica-se pela importância de propor gestos de leitura analítica que, com vistas em viabilizar, também, a historicidade do discurso urbano, invistam na relação entre acontecimento discursivo e o arquivo, por meio das relações linguísticas e a história. Nesse prisma, ao ponderar que “[...] os conflitos urbanos são antes de tudo conflitos de sentido” (ORLANDI, 1999, p. 09) e que as mobilizações de sentido que permitem metáforas com “mendigo” causam estranhamento,[6] entendemos que há conexões possíveis com o alienismo brasileiro no século XIX (Barbosa Filho, 2022) e, consecutivamente, com atravessamentos raciais, com discursos racializados (Modesto, 2021).

Por conseguinte, o trabalho é seccionado em três partes para possibilitar a exposição do processo de leitura heurística do arquivo dos jornais, que vão de abordagens teóricas, históricas e metodológicas. Na seção que sucede esta, é abordada a formação histórica desigual de Itabuna e da região sul da Bahia. Em seguida, são conceituados os princípios teóricos desta análise. Na próxima seção, será expandido o preparo do arquivo e a metodologia de escuta que permite a análise. Finalmente, é feita a análise de sequências discursivas (SDs) de matérias e notícias jornalísticas, ao considerar enunciações-chave que produzem efeitos de contradição, metáfora e paráfrase nas construções de poder materializadas na língua.

Neste artigo, “mendigo” será sempre escrito entre aspas pela pertinência de utilizá-lo enquanto autonímia (Authier, 2016),[7] porque não consideramos sentido primário, mais comum ou mais importante desse significante na análise.

 

O centro urbano do sul da Bahia

A história e a construção da relevância econômica do sul da Bahia, da região que passou a ser compreendida como Região do Cacau (Trindade, 2015), deram-se a partir da introdução do cultivo do fruto, em meados do século XIX (Andrade; Rocha, 2005) e, posteriormente, do sucesso resultante de sua monocultura. O cultivo do fruto, no entanto, esteve quase sempre relacionado somente à exportação das amêndoas do cacau ao exterior, relegando o processo industrial da fabricação e comercialização do chocolate para a Europa (Andrade; Rocha, 2005).

Enquanto Ilhéus já existia há séculos como centro da Capitania de Ilhéus, grande parte dos assentamentos e centros urbanos da região sul surgiram como efeitos do êxito no cultivo do cacau, entre eles Itabuna. Dessa forma, o território que era em maior parte composto por populações indígenas passou a continuamente receber imigrantes e, portanto, sua demografia foi sobreposta por pessoas de outras regiões da Bahia e do Nordeste, que procuravam ascensão financeira. Os migrantes advinham geralmente das regiões mais áridas do Nordeste, sendo que muitos deles eram escravos libertos em busca de mudança de vida, de possuir e/ou trabalhar nas terras (Andrade; Rocha, 2005). Num funcionamento brasileiro bastante conhecido de formação social, o sul da Bahia se firmou com a monocultura, a exportação da commodity (as sementes de cacau) e a desigualdade. Por isso, tornou-se, por tempo limitado, o centro de movimentação financeira da Bahia em exportações.

É nessa conjuntura que Itabuna se converte em principal centro urbano da Região do Cacau, por sua posição estratégica entre o porto de Ilhéus e as cidades, vilas e fazendas circunvizinhas. Entre 1940 e 1950, no auge do crescimento demográfico e econômico, a população de Itabuna cresceu 57% (Sousa, 2010, p. 72). Como resultados do funcionamento da monocultura no país de lógica pós-colonial e pós-escravista, acentuam-se a concentração de renda e de terras, a sazonalidade de oferta de trabalho, a precariedade dos trabalhos – em geral, braçais e rurais – e grande desigualdade social (Baiardi, 1984). Entendendo espaço urbano “enquanto fenômeno simbólico – atravessado pelo social, pelo histórico e pelo político.” (Barbosa Filho, 2012, p. 69), é possível dizer que os problemas sociais mencionados desencadearam, juntos, contradições urbanas/urbanísticas severas em Itabuna. Ao mesmo tempo, essas questões eram constantemente formuladas nos jornais da época, já como inadmissíveis e com urgência na necessidade de resolução: “Itabuna está se enchendo, dia a dia, de doentes, mendigos, loucos, idiotas, ladrões, golpistas, etc. (...) Itabuna não é manicombio ou reformatório. Basta de malandros e elementos perniciosos”.[8]

 Com isso, há duas considerações que chamam atenção:

i) esses sujeitos, sejam “mendigos”, pessoas em situação de rua, “vadios”, etc., por serem tão presentes e incômodos no espaço urbano itabunense, além de bastante criticados e renegados, foram alvos de entrevistas, crônicas e citados com regularidade por jornalistas;

ii) embora houvesse precarização trabalhista e muita desigualdade, há poucos registros de manifestações sociais, greves e reivindicações populares até o fim do século XX,[9] o que é tomado como resultado do associativismo precoce na cidade, principalmente com a formação da Sociedade Monte Pio dos Artistas de Itabuna, em 1919 (Carvalho, 2015; 2016). Isso torna o “movimento” da recusa à Casa dos Mendigos um acontecimento curioso, já que, apesar de não representar nem um movimento social organizado, nem um associativismo, foi significado no arquivo de modo a produzir certa “unidade” organizacional do posicionamento dos sujeitos.

            Então, uma das proposições emergenciais realizadas com objetivo de sanear e urbanizar o município foi a construção de um abrigo para os “mendigos” e pessoas em situação de rua, a Casa dos Mendigos: “acabemos logo a Casa dos Mendigos para sanear Itabuna, retirando de suas ruas esta praga que tanto nos avilta porque, numa terra rica como a nossa não é justo que seja exposta tantas misérias e tantos falsos necessitados infestem as ruas”[10] Logo, discursividades médicas, em que “sanear” se relaciona a “praga” que “infesta as ruas” com referência a “mendigos”, passam a atravessar as discursividades sobre o urbano, e é tomando essa imbricação como ponto de partida que propomos fazer a análise.

 

O urbano e o racial

A cidade, o espaço urbano, é lugar constante de oposição e contradição entre diferentes setores sociais e, no ponto de vista discursivo, o imaginário do urbano – das disposições espaciais, do jurídico, do administrativo, etc. – sobrepõe o real da cidade, que compõe o social como parte da urbanidade (Orlandi, 2004). Na perspectiva materialista da AD, ao tentar compreender o real da cidade, há a sobreposição da organização, do ordenamento, da cidade (urbano). Numa analogia à condição de ordem da língua que se dá pela falha, analisa-se as falhas do urbano que acontecem por meio de políticas urbanas (Barbosa Filho, 2012), o que permite compreender que o urbano opera “[...] através de seus confrontos e estes constituem referências para refletirmos sobre as posições do sujeito no funcionamento do discurso e os lugares de interpretação no interior da ordem social.” (Lagazzi, 2001, p. 54)

Em Itabuna, esse embate é analisado no momento em que as pessoas em situação de rua, “mendigos”, que fazem parte do social, da urbanidade, incomodam o suficiente para que, como diz Lagazzi (2001, p. 59), só façam parte da ordem urbana

 

[...] quando, estando nela, não interferirem na sua organização. O “espacialmente excluído” dá visibilidade ao “socialmente excluído” e isso incomoda, pois desfigura a aparente homogeneidade da cidade formulada pela ordem urbana e mostra aqueles que estão dentro do espaço urbano.

 

Isso posto, a tentativa de ordenar o município ao realocar esses indivíduos do centro da cidade a uma instituição de caridade é respondida por eles com a negação, com a recusa. A oposição, dentre outros motivos,[11] foi algumas vezes formulada pela negação de “doença” e “loucura”: “[...] acontece que lá é casa pra ficar aleijados e doentes e eu não tenho nada disso [...]”.[12] Embora a situação, numa perspectiva mais ampla, de fato envolvesse também resoluções em âmbito de saúde pública, assumir que “mendigos” sejam sempre relacionados à doença e/ou saúde psiquiátrica resgata memórias sobre o alienismo no Brasil, e principalmente na Bahia.

Importado da Europa, o alienismo era a associação de desvios psicopatológicos de comportamento com política e com os estudos de raça, propondo que a mestiçagem, a desigualdade racial, influenciava na índole dos indivíduos (Oda, 2003, p. 41):

 

[...] no século XIX, alienação mental significava: a condição de certos indivíduos, cujos comportamentos aberrantes eram socialmente incômodos ou tomados como perigosos para si ou para outrem, e nos quais se reconhecia o caráter estranho aos ditames da razão – a loucura, enfim.

 

Os estudos sobre alienismo se proliferaram bastante na passagem do século XIX para o XX no Brasil, e atingiram o espectro legal da medicina, como destaca Barbosa Filho (2022). Em seu estudo, o autor explica que o jurídico, o médico e o político se sobrepunham na ordem da cidade de Salvador de tal forma que “os Chefes de Polícia falavam sobre os loucos, os médicos falavam sobre os vadios, os alienistas falavam sobre os criminosos.” (Barbosa Filho, 2022, p. 15)

Mais do que considerar a alta parcela negra itabunense e afirmar que historicamente essa é a população marginalizada na história do Brasil – o que é, sobretudo, fato –, é preciso observar que os jornais não mencionam o perfil étnico dos sujeitos para descrever ou nomear “mendigo”, mas o fazem com frequência para “criminosos”[13] (e para grupos religiosos de matriz africana) que, também no século XIX e em Itabuna nos anos 1950, se atravessam, segundo Sousa (2010). Isso implica que “Num mesmo círculo são colocados a miséria, a pobreza, a epilepsia, a lepra, o vício, o crime, a negritude e tantos outros ‘pecados capitais’” (Carneiro, 1993, p. 146).

 

Leitura e Arquivo

O mote para a investigação documental (textual) do projeto de pesquisa[14] que possibilitou este trabalho envolveu a escuta[15] de documentos, produzidos na região, preponderantemente formalizados ou oficiais, que colocavam em pauta a dinâmica contraditória da ordem urbana da cidade de Itabuna. Com isso, como já dito, o discurso estabelecido da história da cidade, na leitura de arquivo, pôs em questão um estranhamento (Ernst-Pereira, 2009) que nos chamou atenção: o “movimento” dito geral (quase como que organizado) de “mendigos” numa conjuntura citadina em que sequer parecia existir movimentos sociais organizados para além das associações de classe trabalhistas. Reconhecemos que essa recusa à Casa dos Mendigos funciona discursivamente como uma resistência possível, um efeito de resistência (Modesto, 2016),[16] dos “mendigos”, de serem “internados” na instituição. Uma resistência que se materializa também em enunciados que constam em jornais da cidade da época. São efeitos de resistência, num espaço urbano contraditório, cujas oposições se dão na tensão entre as identificações dos sujeitos.

Com isso estabelecido, é importante destacar que a interação do analista de discurso com o texto, nesse caso, o documento, se diferencia consideravelmente daquela do historiador e do arquivista. Embora a AD não desconsidere nem despreze o trabalho do historiador com documentos e arquivos, metodológica e conceitualmente há diferenças. Para o analista, o texto não diz algo por si mesmo, um texto não informa ou contém nada, o que há são leituras e interpretações em distintas formações discursivas (Barbosa Filho, 2022). O que importa aqui é como a língua está funcionando em sequências dadas, como o texto pode significar ao levar em conta os sujeitos e a ideologia que os interpela. Isso não quer dizer, todavia, que obras de historiadores não possam dialogar com uma reflexão discursiva, pelo contrário, já que o presente trabalho o faz, inclusive, de forma persistente.

O arquivo – que poderia ser chamado de corpus discursivo – utilizado aqui, consecutivamente, não é exatamente um “banco de dados” sobre algum assunto específico e delimitado. O discurso textual (Pêcheux, 1994) está sempre em tensionamento, pois o real da língua sempre está sujeito a deslizamentos e falhas de sentido em sua sintaxe, de interpretação e, por isso, Pêcheux (1994, p. 3) pensa o arquivo “enquanto relação do arquivo com ele-mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto consigo mesma” ao considerar a “relação entre língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição de efeitos lingüísticos materiais na história, que constitui o nó central de um trabalho de leitura de arquivo.” (Pêcheux, 1994, p. 9).

Nesse bojo, a composição do conjunto de recortes noticiários foi guiada primariamente pela pesquisa de Sousa (2010), como resultado da pesquisa em arquivos, espaços de conservação de memória, como: o Centro de Documentação e Memória Regional da Universidade Estadual de Santa Cruz (CEDOC/UESC), o Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas (APMIJD), a Biblioteca Central da UESC e a Biblioteca Municipal Plínio de Almeida. Por meio de leitura heurística dos corpos textuais, na qual uma leitura vai progressivamente se comunicando e se conectando com outras, num gesto de escuta de montagem do corpus discursivo, foram consideradas 14 SDs de jornais itabunenses, de 1951 a 1957, sendo eles O Intransigente, Voz de Itabuna e Diário de Itabuna.[17] Em seguida, apresentamos para a análise três dessas SDs, as quais foram recortadas porque permitem: i) compreender o funcionamento discursivo da posição que considera a indignação da elite itabunense face à recusa dos “mendigos”; ii) a textualização, em terceira pessoa, que materializa não apenas a recusa em si por parte dos “mendigos” como também a indignação daqueles que os entrevistam; iii) a voz aspeada dos próprios “mendigos”.

O período em análise é justamente o auge de crescimento populacional e econômico de Itabuna e da região cacaueira, no qual a necessidade de criação de um abrigo para pessoas em situação de rua (de 1951 a 1954), segundo a elite e as autoridades locais, era imprescindível para o desenvolvimento e a limpeza da cidade. De 1954 a 1957, são documentadas a inauguração, o mau funcionamento da instituição, a recusa e uma condensação de comentários que vão de elogios a críticas.

 

Os efeitos da recusa

A Casa dos Mendigos foi finalmente aberta em 9 de março de 1954 pela Associação das Senhoras de Caridade de Itabuna (ASCI), que assumiram o projeto inicialmente da Associação São Francisco de Assis, depois de muitos anos arrecadando verbas, doações, para a construção da instituição de caridade. A necessidade de criar uma instituição de caridade ficou a cargo, portanto, das mulheres da elite de Itabuna que compunham a ASCI, e “mendigo” permitia a acepção de várias qualidades de acordo com o contexto e conveniência. Se, por um lado, a administração pública não resolvia a problemática de ver as ruas “livres desses infelizes que ainda agora as infestam”,[18] contribuía financeiramente com a instituição filantrópica para mantê-la funcionando desde que foi inaugurada.

Na solenidade de inauguração que reuniu diversas personalidades políticas e religiosas importantes, por exemplo, uma integrante da Associação das Senhoras de Caridade de Ilhéus destaca o público-alvo do abrigo quando ressalta em sua fala a “boa vontade” e a “solidariedade” das senhoras em dar assistência aos “infelizes” para deixarem “de ser cidadãos abandonados, famintos, doentes, mendigos, inúteis, prejudiciais à Pátria”.[19] Logo, a Casa dos Mendigos recebia um setor social homogeneizado em suas descrições, podendo ser também “prejudiciais à Pátria”, ou seja, eram “classes perigosas” (Chalhoub, 1996). A mendicância, nesse meio, era diferenciada entre tolerável e inaceitável: a primeira por uma “identificação” da incapacidade do pobre se associar a algum trabalho, e a segunda pela “dedicação” ao ócio (Sousa, 2010; Castel, 1998).

Essa diferenciação já vinha sendo materializada em jornais de Itabuna e protagonizada por Ottoni, o editor do jornal O Intransigente no período, que distinguia esses sujeitos entre “gente de trabalho”, “homem de mãos calejadas que ficou sem trabalho” e “preguiçosos”, “malandros viciados em viver de maneira fácil”.[20] Dessa forma, com a recusa dos “mendigos”, essas valorações se tornam mais constantes nos noticiários, o que fornece as condições de produção para a primeira SD:

 

SD1: Parece-nos que está faltando a ação da nossa polícia de costumes, que a ela cabe a missão de recolher os mendigos que de fato o são no seu abrigo recém inaugurado, e fazer afastar-se da cidade o grupo enorme de mendigos falsos, que vive de explorar a caridade pública [...]. De qualquer forma o quadro é este: Itabuna continua a transbordar de mendigos, de verdade, uns, outros falsos, mas todos a darem um aspecto não muito bonito à nossa urbs.[21]

 

Duas semanas após a inauguração da instituição, o jornal lamenta a continuidade do problema. Ao mesmo tempo que separa os “mendigos” entre “de verdade” e “falsos”, discerne que somente os do primeiro grupo devem ser “recolhidos” pela polícia ao “abrigo”. Aqui, o fato de eles terem de ser recolhidos por uma polícia põe em tensão o sentido de “abrigo”. O abrigo é dos “de verdade”, embora precisem ser recolhidos, ao passo que os “falsos” precisam ser excluídos. Nesse caso, a Casa dos Mendigos só deve abrigar/recolher um tipo de “mendigo”: o “homem de mãos calejadas que ficou sem trabalho”. É contraditório, pois os “falsos” são “preguiçosos”, “viciados” na vida “fácil” e vivem “da caridade pública”, e a instituição de caridade foi justamente concebida para tirar os “infelizes” e “inúteis” da rua.

Seguindo adiante, no mesmo jornal, Ottoni havia entrevistado alguns “mendigos” um mês antes da inauguração do “abrigo” indagando se se deslocariam para lá. Já constatando uma recusa categórica, escreve:

 

SD2: Que se passa com essa gente? Por certo que não íamos deixar sair os entrevistados sem saber a razão de recusa tão brusca. A maioria deles se reporta à família. Como deixar a família? Retrucamos: a família não é doente, o doente é você apenas que será internado. A família deixará de viver às suas custas e irá trabalhar.[22]

 

Reportando-lhe a família como causa, o editor é objetivo em chamá-los de “doente” e forçar a “internação”. O lugar, porém, ainda é um “abrigo” direcionado a “mendigos”. A doença poucas vezes é esclarecida nos jornais, além de ser repetidamente acompanhada de traços de desvios de comportamento, ou nenhuma motivação, ou descrição explícita. Além disso, a doença em questão poucas vezes é direcionada a tratamentos da medicina ou em hospitais, que já existiam em Itabuna.

Nessa compreensão, desde que não queira se direcionar por vontade própria, o “mendigo” pode ser “internado” ou “recolhido” pela polícia. Portanto, a “internação” dos “doentes” na Casa dos Mendigos parece, em consequência, ocorrer muito mais pela interpretação de posição social desses sujeitos do que por instâncias físicas/patológicas. O abrigo, nessas formações discursivas e por deslizamentos de sentido, pode funcionar como asilo, manicômio ou centro de detenção, mas, enquanto pode ser todos, não é propriamente nenhum. O público de “mendigos” é tão heterogêneo para a instituição que é difícil assimilar como ela os acolheria, ainda que só os “de verdade”.

Segue-se, por fim, à fala textualizada de um “mendigo” cuja alcunha era “Papai Noel”:

 

SD3: [...] acontece que lá é casa pra ficar aleijados e doentes e eu não tenho nada disso, e outra, gosto de tomar vez em quanto minha ‘pinga’ e tirar minha soneca, criar minha barbicha, minhas unhas e o melhor de tudo isto que é meu pau que serve para me amparar nas longas caminhadas pelas ruas, todo enfeitado de pedaços de panos velhos tiraram-me: e isto significa a minha maior felicidade.[23]

 

            Esse sujeito era tido como uma das personalidades mais conhecidas entre “mendigos” no centro de Itabuna e, além de entrevistado à época, há estudos posteriores que discorrem sobre ele, como é o caso de Sousa (2010). Esse recorte de entrevista foi publicado em 1957, quatro anos após a inauguração do abrigo, mas é uma das poucas referências textuais que dá voz a formulações de um “mendigo”. Como já dito brevemente, ele se opõe à Casa dos Mendigos não só por ter saído (talvez fugido), mas também no plano da língua, porque enquanto não nega ser “mendigo”, se nega como “aleijado” ou “doente”. Nega ser aleijado, inclusive, mesmo tendo de caminhar amparado por seu cajado (o “pau”).

Concomitante a isso, também é destacável a nomeação “mendigo” para Papai Noel, pois o sentido dicionarizado do verbete é, em geral, estabilizado como “pedinte” ou “aquele que pede esmola”,[24] e Papai Noel é descrito em outros momentos como alguém que não costuma pedir nada, obstinado à sua resignação. Longe de afirmar que o sentido do dicionário é o mais correto ou mais comum por ser uma padronização formal desse significante – que seria contradizer-se –, propomos que “mendigo” é atravessado por discursividades diversas e, na formação discursiva que compõe os enunciados analisados, Papai Noel, por exemplo, não se define como “doente”/“louco” ou “aleijado”, não é pedinte, e em momento algum faz-se menção à “procura de trabalho”. Mesmo assim, definem-no como “mendigo” e, ainda, tem respeito de figuras importantes de Itabuna por sua resignação: ele foi interno da instituição de caridade e pode ser posto como um “de verdade”.

A Casa dos Mendigos, ao se propor como instituição múltipla para assistência à doença, à loucura, à pobreza, à fome, por fim, à mendicância, funciona precariamente no período de sua existência e acaba por se tornar uma estrutura de “aprisionamento” (Le Goff, 1998; Foucault, 2001). Assim, num efeito de resistência, os “mendigos” se opõem a uma formação social repleta de contradições na ordem do linguístico no/do urbano – embora compondo movimento não organizado e também passível de contradições – e reivindicam a liberdade, quão limitada ela seja.

A tentativa de ordenamento do urbano de Itabuna no saneamento físico, espacial, técnico, também configurou uma tentativa fracassada de reorganização e realocação de parcela social heterogênea. Um conjunto de políticas que visaram verticalizar ainda mais a hierarquia social do urbano. Nesse conflito de interpretações em diferentes posições de sujeito, em que o poder público, o setor privado e a sociedade civil organizada concebem o deslocamento de sujeitos – que impedem a ordem do urbano – como necessário, os equívocos da ordenação urbanística põem em questão os conflitos de sentidos.

Esses conflitos são a condição de existência dos discursos na língua, materializados historicamente. Nessa conjuntura, o alienismo na Bahia do século XIX comparece enquanto efeitos parafrásticos possíveis na memória discursiva. As relações de sentido de “mendigo” e “abrigo” nos discursos médicos e urbanos com o jurídico em Itabuna nos anos 1950 conseguem remontar formulações racistas sobre o alienismo. Itabuna tinha quase dois terços de população negra, tal como Salvador,[25] e composta em parte por ex-escravos. Nesse sentido, se

  1. o “mendigo” é “pedinte”, “doente”, “louco”, “aleijado”, “infeliz”, “abandonado”, “inútil”;
  2. a “mendicância” é uma “praga” que “infesta” e dá “um aspecto não muito bonito à urbs”;
  3. aqueles aos quais se direciona o “abrigo” devem ser “internados” ou “recolhidos pela polícia”,
  4. e “o negro livre, mendigo, espoliado” significa “perigo nas ruas das cidades” (Carneiro, 1993, p. 147), torna-se um fator do urbano que deve ser combatido, resolvido.

Em algum momento “negro(s)” ou “preto(s)” poderiam ser utilizados em paráfrases com “mendigo”, dada as condições de produção da sociedade baiana em Salvador e no sul da Bahia. Finalmente, seria possível construir no interdiscurso, por exemplo:

 

P1:[26] Itabuna continua a transbordar de mendigosdoentes ;

P2: O mendigodoente  é você apenas que será internado;

P3: Acontece que lá é casa para ficar aleijados e mendigosdoentes .

 

E também:

 

P4: Itabuna continua a transbordar de mendigosnegros ;

P5: O mendigonegro  é você apenas que será internado;

P6: Acontece que lá é casa para ficar aleijados e mendigosnegros .

 

O fator racial atua como parte estrutural dos discursos apresentados. Em nenhum momento, nos Jornais de Itabuna, ele comparece explicitamente em relação a “mendigos”, mas participa na formação discursiva e social e, ressaltamos, comparece explicitamente em relação a “bandidos”. A construção de Brasil se deu com a tensão e desequilíbrio racial, a mestiçagem foi crucial para o alienismo e este foi importante como justificativa para o controle político e legal dos sujeitos abandonados, doentes e viciosos: são discursos racializados (Modesto, 2021).

 

Considerações finais

A sociedade sul baiana é formada historicamente com a desigualdade social, a necessidade de mão de obra rural em larga escala e o alto contingente de migrantes de outras partes da Bahia e de outros estados do Nordeste. O fator racial aparece, de modo pouco explícito, mais frequente em eventos que envolvessem criminalidade, de vez em quando em questões religiosas de matriz africana e ao descrever as origens dos migrantes.

Portanto, a associação do estudo histórico com a Análise do Discurso materialista, tendo Itabuna como recorte, foi muito produtiva. Em comparação a Ilhéus, há muito menos pesquisas históricas, influenciado pelo fato de Ilhéus existir há mais de quatro séculos e ser mais notada como expoente cultural. De qualquer forma, analisar funcionamentos de ordem urbana em discursos urban(ístic)os em Itabuna é ainda um desafio tanto pelo número de trabalhos e pesquisas que, embora crescente, ainda carece de incentivos, quanto pela ausência de museus e casas de custódia de documentos em atuação no município. À medida que pelo menos possui Arquivo Municipal e Biblioteca Municipal operantes – fator destacável na região –, embora precárias do mesmo jeito, ainda é laboroso acessar as histórias e discursos que atravessa(ra)m a cidade.

Por fim, analisou-se como a sociedade grapiúna operava de acordo com lógicas racistas em sua estrutura de políticas públicas, e que “mendigo” assume diversos sentidos possíveis e é atravessado por muitas discursividades em Itabuna nos anos 1950. Depreende-se, assim, uma reprodução de métodos e pensamentos que resgatam não só o alienismo no Brasil e na Bahia, mas da racialidade e do pensamento colonial.

Reitera-se, não menos relevante, a importância de se investir em centros de manutenção de memória do urbano, como arquivos, bibliotecas, que já (ou ainda) existem em Itabuna, mas também museus, teatros, centros de cultura. Assim, pois, a identificação e compreensão dos sujeitos enquanto parte de uma comunidade específica pode acontecer de modo mais produtivo enquanto “assegura a conservação (mesmo ilusoriamente) e o gerenciamento das memórias, a transmissão de valores institucionais e funciona como um organizador que sustenta a continuidade e/ou ruptura dos discursos” (Teixeira, 2017, p. 936)

 

Referências

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Data de Recebimento: 31/07/2023
Data de Aprovação: 25/08/2023

 

[1] Gentílico de Itabuna, tal como “itabunense”.

[2]Já há alguns anos a Casa Jorge Amado e a Casa Verde, tradicionais museus grapiúnas, encontram-se fechados. Cf. <https://itabuna.ba.leg.br/noticias-/queremos-saber-colocou-em-discussao-elementos-que-formam-memoria-de-itabuna/>. Acesso em: 10 out. 2023.

[3] Lembramo-nos da relação daquilo que Pêcheux (2011, p. 142) chama “corpos de traços” ao explicar a memória coletiva, que seria um conjunto complexo formado por “séries de índices de tecidos legíveis” com a proposição de “museu” em Orlandi (2013, p. 12).

[4] Cumpre lembrar que, durante as fortes chuvas ocorridas em dezembro 2021, o térreo da Câmara dos Vereadores de Itabuna, local onde se localiza o Arquivo Municipal, ficou totalmente alagado, atingindo grande parte do acervo local. Cf. <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/12/27/veja-antes-e-depois-das-ruas-de-itabuna-cidade-que-ficou-alagada-com-chuvas-no-sul-da-bahia.ghtml> Acesso em: 04 dez. 2023.

[5] Orlandi (2004) explica que o discurso urbano representa o real da cidade, enquanto o discurso do urbano (urbanístico) indica a sobreposição da fala do especialista, do imaginário urbanístico, no imaginário urbano.

[6] Ver Ernst-Pereira (2009): A Falta, o excesso e o estranhamento.

[7] A autora explica que aspear o significante, nesse caso, é um modo metalinguístico no discurso que suspende, distancia ou desloca os significados, ou sentidos do objeto em questão, o que permite “algo como o eco em um discurso de seu encontro com o exterior. Apesar dos termos interior/ exterior, borda, fronteira, esse encontro não se faz segundo uma linha de justaposição, mas na forma de uma zona de interação, de imbricação, de invasão.” (Authier, 2016, p. 216)

[8] (CEDOC/UESC) O Intransigente, 16/01/1952, p. 04.

[9] Houve a greve dos ferroviários (Souza, 2013), que foi mais registrada e determinante em Ilhéus, ou ocorreram produzidas pela elite dominante, no caso dos protestos de cacauicultores em frente à Ceplac (Agora, 24/11/1989).

[10] (CEDOC/UESC) O Intransigente, 26/05/1951, p. 05. (Grifo nosso)

[11] Um dos motivos recorrentes foi a experiência anterior de alguns “mendigos” no abrigo de Vitória da Conquista, que foi descrito como extremamente precário e “passavam fome e ficavam nús” (Voz de Itabuna, 26/02/1954, p. 02)

[12] (CEDOC/UESC) Diário de Itabuna, 27/11/1957, p. 04. Será elaborada adiante.

[13] “[...] negros e pardos se tornavam maioria nas notícias de crime na cidade [...] a citação da cor só parecia ser necessária em se tratando de sujeitos negros e por vezes pardos” (Sousa, 2010, p. 57)

[14] Projeto intitulado “Discurso, arquivo e memória: tensões raciais no eixo Ilhéus-Itabuna entre os séculos XIX e XX”, com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

[15] Relacionada à “escuta social” (Herbert, 2011), posição de análise teórica extremamente antiempirista ao tomar o discurso como recorte de investigação.

[16] Resistência que não necessariamente é produto de intenções do sujeito ou de grupos contra outros, mas que acontece em espaços contraditórios e dada a partir de contradições, falhas, equívocos no processo ideológico de construção de evidências. Assim, considerando que essas falhas funcionam na língua, é quando “o sem-sentido passa a fazer sentido que se pode vislumbrar um espaço para a resistência” (Modesto, 2016, p. 1086).

[17] Alguns dos recortes de notícias dos jornais citados foram retirados de Sousa (2010), além de um recorte retirado de Silva (2012).

[18] (APMIJD) Voz de Itabuna, 23/03/1954, p. 2.

[19] “Tenhamos em mira o desprendimento, o sacrifício, as lutas, as energias gastas por uma comunidade como a Associação das Senhoras de Caridade São Vicente de Paulo. De braços dados aos braços da dinâmica gente desta progressista Itabuna, puderam assim ligados, por participar de um grande ideal. Eis porque em nós se impõe louvar e exaltar o bom, o ótimo, o máximo, o perfeito desenvolvimento dos trabalhos das abnegadas senhoras de caridade de Itabuna. Acreditamos nos bons destinos do nosso programa social como acreditamos de sempre haver entre nós pessoas de boa vontade que com esse magnânimo exemplo de solidariedade e o desamparo aos infelizes que recebendo esta e outras assistências deixam de ser cidadãos abandonados, famintos, doentes, mendigos, inúteis, prejudiciais à Pátria.” (CEDOC/UESC) O Intransigente. 20/03/1954, p. 1. Grifo nosso.

[20] “Teremos, pois, um alivio na cidade, com a volta aos campos de muita gente de trabalho. Certamente, aqui ficarão os preguiçosos, para aumentar a onda de pedintes. Necessitamos, nossa ajuda, saber distinguir entre o homem de mãos calejadas que ficou sem trabalho e os malandros, viciados a viver de maneira fácil. Não devemos deixar sem auxilio o trabalhador que anda ainda em busca de trabalho, da mesma maneira que devemos repelir os aproveitadores”. (CEDOC/UESC) O Intransigente, 08/03/1952, p. 1. Grifo nosso.

[21] (CEDOC/UESC) O Intransigente, 31/03/1954, p. 2.

[22] “Quizemos saber com nosos mendigos apreciariam a inauguração, a 19 de março, da casa que os recolherá. Para que fomos tocar nisso? Até agora não tivemos uma resposta favorável ao internato. Pelo contrário, fomos atiçar esse orgulho escondido nesses restos sociais. Uma reação brava. Não há quem os convença da necessidade de deixarem a “vida incerta” da mendicância pelo pirão bem feito da Casa dos Mendigos, pela cama limpa e forrada de lençol branco, pela assistência espiritual de irmãs de caridade. Sombra e água fresca e ninquem quer... Que se passa com essa gente? Por certo que não íamos deixar sair os entrevistados sem saber a a razão de recusa tão brusca. A maioria deles se reporta à família. Como deixar a família? Retrucamos: a família não é doente, o doente é você apenas que será internado. A família deixará de viver às suas custas e irá trabalhar. ‘Aí eu me mudo daquí qui isto não é terra para home morá’[...] ‘Qui vamo fazê, seu Ottonho? Não querem nos prendê? Qui jeito nós temo? Quem vai nos protegê?’[...]” (CEDOC/UESC) O Intransigente, 03/02/1954, p. 3.

[23] (APMIJD) Diário de Itabuna, 27/11/1957, p. 4.

[24]mendigo m. Aquele que pede esmola para viver. Pedinte. (Do lat. mendicus)” (Figueiredo, 1913, p. 1274).

[25] 67% da população grapiúna era negra em 1950, baseado em censos do IBGE (Sousa, 2010, p. 57), e 71% em Salvador em meados do século XIX (Barbosa, 2022, p. 4).

[26] Retiramos essa forma de anotação do enunciado que permite seu desdobramento parafrástico de Barbosa Filho (2018).