Madres Terra: As mães de Soacha no imaginário fotográfico


resumo resumo

Ilka de Oliveira Mota



Introdução

 

Estamos hechos para el arte, estamos hechos para la memoria, estamos hechos para la poesía o posiblemente estamos hechos para el olvido. Pero algo queda y ese algo es la historia o la poesía, que no son esencialmente distintas.

- Jorge Luis Borges, La divina comedia.

 

Neste artigo, o objetivo é analisar os modos de representação discursiva das mães de Soacha1, cidade localizada na Colômbia, na série de fotografias intitulada Madres Terra, do fotógrafo Carlos Saavedra em parceria com o antropólogo Sebastián Ramírez2.

As fotos que compõem a série foram lançadas em 31 de maio de 2018, na Exposição Mafapo, no Centro de Memória, Paz e Reconciliação da cidade de Bogotá3.

Discursivamente, a série fotográfica tem funcionado como espaço de constituição da memória, a partir do qual mães de vítimas executadas extrajudicialmente foram protagonistas de um trabalho que reflete a dor da ausência e, ao mesmo tempo, sua busca pela justiça e pela memória de seus filhos mortos injustamente pelo Aparelho Repressor de Estado colombiano.

Da perspectiva materialista da linguagem, o ensaio fotográfico me interessa como objeto discursivo que funciona a partir de determinadas condições sociais, históricas e ideológicas, as quais comento sinteticamente a seguir.

As mães das vítimas assassinadas pelo Estado da Colômbia foram batizadas pela expressão “Mães de Soacha” pela imprensa colombiana. Elas também são conhecidas como “Mães de Outubro”, em virtude do fato de que, neste mês, o grupo começou a se formar e iniciar um trabalho em busca de denúncia e justiça4.

As vítimas da violência do Estado colombiano, jovens com faixa etária de 16 a 33 anos, são chamados de “falsos positivos”. Na ordem do discurso jurídico, os falsos positivos são civis assassinados ilegalmente pelo Estado como baixas do conflito. Noutros termos, um falso positivo ocorre quando um civil é assassinado pelo aparelho repressor de Estado (no caso, por militares colombianos), e é apresentado como uma morte “legítima” em combate. Igualmente conhecido como execuções extrajudiciais, trata-se de um crime que representa uma violação do direito internacional dos direitos humanos.

Embora os falsos positivos aconteçam na Colômbia há mais de 40 anos, a Jurisdição Especial para a Paz (JEP doravante) reportou que 78% dos casos ocorreram entre 2002 e 2008, isto é, durante a gestão do ex-presidente Álvaro Uribe Vélez. Ou seja, as políticas praticadas pelo governo Uribe incentivaram o assassinato de civis colombianos para apresentá-los como baixas do conflito com as Farc. A título de exemplificação, o então ministro da Defesa, Camilo Bernal, assinou a Diretiva Ministerial 029, em 2005, que teve em sua base a formalização das diretrizes para o pagamento de recompensas por cada homicídio apresentado como uma baixa em combate pelos membros das forças de segurança do Estado. Em síntese, a morte de guerrilheiros era exigida como prova da eficácia do Exército colombiano, prática essa incentivada com recompensas monetárias.

Essa política, constituída pelo mecanismo de legitimação da necropolítica (Mbembe, 2018)5, resultou no assassinato de civis – camponeses, em sua maioria – por membros das forças públicas que, na sequência, vestiam-nos de guerrilheiros, fingindo uma “cena de combate”. Nesse cenário montado, os civis eram apresentados como baixas legítimas de combate6. Entretanto, como em todo ritual, nesse também houve furos, brechas, falhas (Pêcheux, 1997). Explico.

Com base no clichê de que os guerrilheiros usavam botas de borracha (botas pretas), após assassinarem os civis, os militares vestiam os cadáveres com botas no momento da encenação da cena de combate fake. O furo nesse ritual incide no fato de que, em alguns casos, os agentes estatais calçaram as botas nas vítimas com os pés trocados, o que produziu provas às famílias de que houve assassinatos. Assim, na tentativa de apagar o acontecimento, irrompe uma falha que aponta para o crime de Estado. No plano da arte, o tema das botas é ressignificado, apontando ao mesmo tempo para a denúncia e para o não esquecimento (cf. recorte 1, a seguir).

Há outros casos, como o filho de Luz Marina Bernal, que, em 2008, foi assassinado por militares sob acusação de ser um líder do narcotráfico de um grupo armado ilegal. Fair Leonardo Bernal tinha 26 anos e era portador de necessidades especiais. Sua idade mental era de 9 anos (Agência Brasil, 2013).

No processo de denunciar os crimes e reivindicar o bom nome de seus filhos mortos, as mães dos falsos positivos têm sofrido perseguição e censura por um Estado que se nega a aceitar a responsabilidade. Quem deu a ordem? Essa é uma pergunta que a sociedade colombiana vem questionando, mas sem resposta. Ou melhor, pergunta da qual ressoa um silêncio agudo que, discursivamente, significa produzindo sentidos.

Abramos aqui um parêntese. Mbembe (2018), em sua obra Necropolítica, aprofunda a reflexão sobre as formas de controle do corpo dos indivíduos proposta por Foucault (2008), afirmando que a necropolítica é um sistema perverso que determina como as pessoas irão viver e morrer e quem serão as vítimas. Noutros termos, trata-se de um sistema de gestão que dita quem pode viver e quem deve morrer. Na formação social capitalista, esse sistema afeta as minorias sociais, tornando aceitáveis que esses corpos se tornem descartáveis. Portanto, esses sujeitos são subjugados e subordinados aos imperativos da ideologia hegemônica e dos aparelhos repressores de Estado.

A reflexão proposta por Mbembe (2018) se aproxima do que afirma Butler (2015), em Marcos da Guerra. Para a autora, existem sujeitos que não são reconhecíveis como sujeitos e há vidas que não são reconhecidas como vidas. Desse modo, o extermínio dos colombianos camponeses – similar ao homo sacer (Agambem, 2004) 7 – é justificado a partir da ideia de necropolítica que os julga como marginais e não civilizados, os quais não são reconhecíveis como vidas preciosas, válidas, mas corpos descartáveis que a qualquer momento podem ser retirados do convívio social por um Estado que flerta o tempo todo com a necropolítica.

Como afirma Pêcheux (1997), só há causa daquilo que falha, há várias manifestações populares que, ao buscarem por justiça às vítimas executadas, confrontam o poder de Estado, mais exatamente, confrontam a versão hegemônica contada e significada pela imprensa corporativa, capitalista.

No recorte 1, a seguir, trata-se de uma exposição no Memorial de Voces, que, por um gesto imagético metonímico, relembra as vítimas assassinadas pelos militares. Ou seja, as botas adquirem uma dimensão histórica e denunciam aquilo que o Estado quer(ia) ocultar8.

 

Recorte 1: Botas y Voces

  

Fonte: Memorial de Voces, 20129.

 

Como veremos, a tentativa de apagamento do acontecimento pelos aparelhos de Estado (principalmente midiático e militar) produz possibilidade de existência de outros modos de formulação a partir dos quais é possível construir uma interpretação outra que desloca a interpretação hegemônica produzida pelo discurso do Estado colombiano. Ou seja, os sentidos irrompem em outros espaços discursivos, permitindo outros modos de enunciação para fazer valer a memória das vítimas e dos enlutados10. Neste sentido, a fotografia tem funcionado como um arquivo estético de resistência e da memória.

 

Uma breve reflexão sobre luto, arte e resistência

 

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

 

- Chico Buarque, Pedaço de mim.

 

Em sua obra seminal intitulada Luto e Melancolia, Freud (2006) afirma que toda perda – que não se restringe à morte de alguém – demanda um luto. Para ele (2006, p. 103), o luto consiste na reação à perda de uma pessoa amada,

 

[...] ou à perda de abstrações colocadas em seu lugar, tais como a pátria, liberdade, um ideal etc. Entretanto, em algumas pessoas —que por isso suspeitamos portadoras de uma disposição patológica —sob as mesmas circunstâncias de perda, surge a melancolia, em vez do luto. Curiosamente, no caso do luto, embora ele implique graves desvios do comportamento normal, nunca nos ocorreria considerá-lo um estado patológico [...], pois confiamos em que, após determinado período, o luto será superado, e considera-se inútil e mesmo prejudicial perturbá-lo.

 

Em trabalho anterior sobre o luto e a pandemia (Mota; Ginach, 2021), vimos que Freud diferencia o luto “normal” do melancólico, que envolve um processo lento e doloroso e deve ser elaborado para que o sujeito encontre um objeto substitutivo do que perdeu. O luto tem importância capital na ressignificação do vazio que a perda instaura no sujeito.

No tema do luto, há um ponto fundamental que não pode ser ignorado: o fato de que ele não envolve somente a perda do objeto amado, mas, fundamentalmente, aquilo do sujeito que se foi com a perda do objeto, sua representação libidinal investida.

Recortada da canção “Pedaço de mim”, a epígrafe acima retrata bem o estado psíquico do enlutado: a perda de um ser amado é também a perda do lugar que o sobrevivente ocupava na vida do morto (um pedaço foi junto com o objeto perdido), conforme Allouch (2004) assevera.

Allouch (2004), psicanalista da contemporaneidade, retoma o texto de Freud (2006) e o questiona. Em síntese, Freud propõe um luto finalizado e elaborado pela substituição do objeto perdido por outro objeto. A substituição de um objeto por outro consumaria o luto. Por sua vez, Allouch (2004) propõe que a substituição do objeto perdido por outro é um modo de negar a perda. Segundo ele, no luto está em jogo uma perda de um “pedaço de si” cujo acento recai sobre o “si”, que é diferente do “eu”/“mim” e do “tu”/“ti”. O pedaço de si é da ordem dos dois e de nenhum, ponto de enlace e indefinição entre sujeito e objeto. Ou seja, a perda não é do objeto, mas sim daquilo do objeto que é também do sujeito.

Tanto individual como coletivo, todo luto demanda a presença do outro, condição para que haja a ritualização da perda. Segundo Penna (2015, p. 17), “[u]ma perda sempre precisa ser testemunhada, reconhecida pelo outro para tornar-se real”, a fim de que se inicie o processo de sua elaboração e historicização.

Para Kehl (2020), além da presença do outro no processo de elaboração do luto, as cerimônias e manifestações fúnebres são necessárias para que haja a crença de que uma pessoa realmente não existe mais no corpo prestes a ser enterrado. No caso específico das mortes dos filhos das mães de Soacha, há alguns complicadores, tal como é reportado pela Agência Brasil (2013). O primeiro diz respeito ao fato de se tratarem de assassinatos sob a alegação, como já dissemos, de que os civis foram mortos em combate, passando por criminosos guerrilheiros a partir de uma cena montada. Em segundo, o corpo de parte das vítimas foi encontrado muito tempo depois de seu assassinato, como é o caso de Jaime Stiven Valencia, de 16 anos, morto em 2008. Por fim, há casos de mães que não puderam enterrar seus filhos ainda, como Doris Castañeda; esta mãe não conseguiu o corpo do filho, que está em poder do Exército. Neste último caso, existe o impedimento de as mães se despedirem e enterrarem seus filhos mortos, resultando em um luto particular, destituído de rituais coletivos que possibilitem a inscrição (elaboração psíquica) da experiência da perda.

De acordo com Rivière (1997), os rituais fúnebres coletivos exercem uma função fundamental no processo de elaboração do luto. Para ele,

 

[...] os ritos devem ser sempre considerados como conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga simbólica para seus atores e, habitualmente, para suas testemunhas, baseadas em uma adesão mental, eventualmente não conscientizada, a valores relativos a escolhas sociais julgadas importantes e cuja eficácia esperada não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na instrumentalidade técnica do elo causa-efeito. (Rivière, 1997, p. 30).

 

Vale dizer que o ritual se prolonga para além do ato em si e adquire características simbólicas importantes, fundamentais na elaboração do luto coletivo. Em resumo, ele é um modo de reconhecimento sócio-histórico que possibilita o necessário trabalho de luto coletivo em um país. Porém, caso o luto se torne obstinado, existe a possibilidade de o indivíduo ficar paralisado durante toda a vida, como Nasio (1997) bem explica na citação que segue:

 

Compreende-se que se esse trabalho de desinvestimento que deve seguir-se à morte do outro não se cumprir, e se o eu ficar assim simbolizado em uma representação coagulada, o luto se eterniza em um estado crônico, que paralisa a vida da pessoa enlutada durante vários anos, ou até durante toda a sua existência. (Nasio, 1997, p. 29)

 

Por sua vez, a ausência ou negação do luto pode gerar um trauma coletivo na subjetividade de toda uma geração. As tentativas de esquecer eventos traumáticos coletivos resultam em sintoma social. Nas palavras de Kehl (2009, p. 29), “[...] quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras”.

Para Pêcheux (1990), onde há censura, há resistência. Embora tenha havido tentativas de cerceamento de denúncia e, consequentemente, do luto das mães, dos familiares e amigos, houve vários gestos de resistência à política silenciadora promovida pelo Estado colombiano. Um deles se encontra no discurso estético, artístico. A esse respeito, há a produção artística “Antígonas tribunal de mulheres”, produzida por “um grupo de mulheres colombianas vítimas de violências decorrentes do conflito armado colombiano como espaço político de memória histórica” (Santos, 2015). A peça foi inspirada na imagem mitológica Antígona, imortalizada por Sófocles, atualizada pelo teatro político colombiano.

Segundo Santos (2015), na peça, estão presentes questões como “dimensões sociais da experiência da dor, da perda e da morte; as estruturações políticas e determinações sociais de um longo dinamismo em que se reconfiguram as políticas de terror de Estado; a generificação da violência em sua forma política especiosamente por mulheres.”

Para Souto (2021),

 

[...] se a Antígona original não quer deixar o seu irmão insepulto pois, desse modo, esse nunca poderia alcançar Hades, e ficaria impossibilitado de aceder ao descanso eterno, exposto aos animais e às intempéries, indigno da sua condição, as Antígonas colombianas, impossibilitadas de se despedirem devidamente dos seus familiares, cuja localização desconhecem, e de irem visitar as suas campas, atirados como foram muitas vítimas dos conflitos para valas comuns, partilham com a Antígona seminal a vontade de quererem levar a termo os destinos dos seus amados. Estas Antígonas colombianas não querem deixar os seus familiares “insepultos” de justiça e trazem, por isso, para o palco, transformado em tribunal simbólico, as suas histórias, que tornam possível, não só recordar, mas também dignificar os que perderam. (O negrito é nosso).

 

Segue abaixo a foto de Lucero Carmona, uma das Madres de Soacha, membra de uma associação constituída por mulheres familiares dos homens civis assassinados pelo Exército Nacional da Colômbia, depois de serem injustamente acusados de pertencerem a grupos guerrilheiros (Souto, 2021). Na peça, ela representa a si mesma e é projetada a imagem de seu filho executado.

 

Recorte 2: Trecho da peça “Antígona, tribunal de mujeres”. 

Fonte: Palimpsesto, 202111

 

Para este trabalho, me concentrarei na fotografia como arte e lugar do político, espaço de elaboração do luto, do testemunho e da denúncia.

 

Fotografia, arte e memória discursiva

Para Pêcheux (1969), o discurso é efeito de sentidos entre locutores historicamente situados, lugar em que é possível observar a relação entre língua(gem) e ideologia. Essa relação constitui no dizer regiões de sentidos ou, como o autor denomina, Formações Discursivas (FDs), que correspondem às diferentes Formações Ideológicas de uma formação histórica. Cada FD representa no discurso um domínio de saber que, segundo Courtine (1982, p. 249-250), “[...] funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações (determina ‘o que pode e deve ser dito’) e também como princípio de exclusão do não dizível”. Assim, ao enunciar, o sujeito se projeta imaginariamente na forma-sujeito da FD que o domina, assumindo seus sentidos enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, aceitas e experimentadas (Pêcheux, 1988). O que está em questão é a posição-sujeito, não “[...] uma forma de subjetividade, mas um ‘lugar’ que ocupa para ser sujeito do que diz” (Orlandi, 1999, p. 49).

Embora a fotografia não tenha uma materialidade linguística em sua constituição, ela evoca efeitos de sentido na ordem do discurso, do enunciável (Courtine, 1999, p. 16).12 Ela também permite ao analista de discurso vislumbrar, a partir de condições de produção específicas, a posição-sujeito implicada no gesto do fotografar.

Da perspectiva do discurso, concebemos a fotografia como objeto discursivo construído historicamente. Tomá-la como parte constitutiva da história significa considerá-la como objeto simbólico em movimento, ou seja, como parte de uma história em que sujeito e sentidos se constroem ao mesmo tempo.

A fotografia é um bom exemplo de que o que há é injunção dos sujeitos em estar nos sentidos, “sejam estes feitos de palavras ou silêncio. Não se pode não significar.” (Orlandi, p. 72).

A fotografia é sempre uma tomada de posição de um sujeito historicamente determinado e ideologicamente constituído. Ou seja, estamos dizendo que o fotógrafo, longe de ser neutro e/ou imparcial, registra o seu objeto a partir de um lugar sócio-histórico e ideológico marcado, correspondendo a uma tomada de posição na história e na história dos sentidos. Desta perspectiva, o fotógrafo, ao registrar um determinado acontecimento, lança-se e é lançado na disputa (política) pelos sentidos.

Em outras palavras, o sujeito enunciador, por sua vez, é aquele que ao enunciar assume uma “posição sujeito”, posição esta que se define necessariamente na ordem do enunciável, na ordem do que constitui o sujeito falante em sujeito do seu discurso (Funo, 2012, p. 5).

É desse modo que consideramos a fotografia como texto. Lembramos que, discursivamente, o texto é unidade de significação, isto é, significa dentro de condições de produção específicas. Ao trabalhar com a noção de texto, a Análise de Discurso subverte a noção hegemônica de texto como um conjunto de palavras organizadas. Para ela, não há predomínio do verbal sobre o não verbal. Ambos os planos significam produzindo sentidos.

Dentre os tipos de fotografia, há aquela que funciona como arte do testemunho e que nos interessa mais de perto neste trabalho. Concordamos com Vieira (2009) quando afirma que a fotografia como testemunho visual atesta a experiência insondável da dor e do sofrimento.

Em seu livro “Diante da dor dos outros”, Sontag (2003) afirma que a fotografia é uma forma específica de representar a catástrofe. A autora coloca o problema da alteridade em que “nós” (observadores) somos aqueles que observam numa posição segura os “outros” assolados pelas catástrofes, tragédias e perseguições.

Para Vieira (2009), tanto o fotógrafo como o artista apresentam-se como mediadores dessa relação. Ao falar das fotografias que retratam catástrofes, Sontag (2003) escreve: “nossos olhos não conseguem desviar-se de uma cena de aniquilação e mantem-se fixos até o desenlace final” (Vieira, 2009, p. 50). Para esta teórica da fotografia, não é lícito virar o rosto e fingir que nada aconteceu, o que permite um engajamento com a dor do outro que se desfaz pela percepção de nossa impotência diante dos fatos.

Nas palavras de Vieira (2009, p. 4),

 

A fotografia é o tipo de narrativa testemunhal privilegiado nos discursos sobre as vítimas. O caráter testemunhal da fotografia da catástrofe reside tanto em sua gênese automática e em sua forma indicial, quanto na possibilidade de comunicar, presentificar e atualizar uma experiência traumática. O fotografar revela-se como uma tentativa de tornar o sofrimento das vítimas comunicável através da imagem.

 

Quando pensada discursivamente, a fotografia tem íntima relação com a memória. Pêcheux (1999, p. 52) compreende a memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, em um trabalho que considera a repetição e a regularização: a memória seria aquilo que, “face a um texto [e acrescentaríamos, a uma imagem], surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita”.

Assim como os enunciados verbais, as imagens também são permeadas pela memória: “toda imagem se inscreve em uma cultura visual, e essa cultura visual supõe a existência junto ao indivíduo de uma memória visual, de uma memória das imagens onde toda imagem tem um eco. Existe um ‘sempre já’ da imagem” (Courtine, 2011, p. 43).

Ademais, Pêcheux (1999), retomando Davallon (1999), afirma que a memória pode ser atualizada pelas discursividades da imagem, visto a sua possibilidade de funcionar como um operador de memória.

Como veremos na sequência, por meio da série fotográfica, portanto da imagem, é possível deslocar a interpretação hegemônica contada pelo Estado, dando lugar à história das mães de Soacha que tiveram seus filhos assassinados pelo aparato estatal. Nesse sentido, a fotografia funciona como um operador de memória (Pêcheux, 1999), ou seja, ela recorta a memória, atualizando o acontecimento. 

 

Madres Terra

Están enterradas y, sin embargo, no es una escena fúnebre. Muchas miran directamente a la cámara: la retan, le ofrecen su dolor. Otras alejan sus ojos del lente, ven por fuera del marco. Solo se ve su rostro. Aunque algunas veces también sus manos, sus brazos. Se asoman, firmes, como tubérculos. Sus cuerpos rasgan la superficie de una tierra pedregosa, casi seca. Una abraza el espacio vacío como a un hijo: sus brazos delinean algo que podría ser un cuerpo. Otra, arropada por el terreno, lanza una mirada fija al espectador. No hay color, solo el contraste entre los rostros y su marco terroso. Eso y su duelo. Porque están enterradas, pero no muertas.

 

- Felipe Sánchez Villarreal, 2017, sobre o ensaio Madres Terra.

O ensaio fotográfico em análise faz parte do projeto Madres Terra de autoria de Carlos Saavedra em parceria com o antropólogo Sebastián Ramírez e se baseia na interação entre a terra e um grupo de mães (as mães de Soacha, como já explicamos), cujos filhos foram assassinados pelo Exército Nacional Colombiano, tendo uma maior incidência durante o governo do ex-presidente Uribe13.

A fotografia, para Barthes (1997), é levada à condição de arte e, como toda arte, a fotografia perturba. No caso específico de nosso trabalho, o ensaio Madres Terra perturba e provoca uma verdadeira mexida nas redes de significação da memória.

Retomando, a memória, compreendida como espaço de desdobramentos, permite ver as fotografias como a reelaboração (ressignificação) da narrativa do Estado colombiano sobre o caso dos falsos positivos. O ensaio fotográfico possibilita a elaboração do luto, bem como a produção de uma interpretação que contradiz a interpretação hegemônica produzida pelo governo colombiano. Isto é, o gesto performático que o ensaio propõe possibilita que o sujeito se inscreva em uma FD outra, colocando em xeque ou produzindo um abalo na FD dominante, que significa os filhos das mães de Soacha como guerrilheiros criminosos.

As mães, seus gestos, estão em uma posição simbólica que protege e, ao mesmo tempo, reivindica o bom nome de seus filhos assassinados, salvaguardando-os. Nos recortes que seguem, separamos as fotos em que se veem quatro mães com os braços em uma posição receptiva, ora próximos ao colo, ora ao peito. As mães abraçam seus filhos na terra.

 

Recorte 3: Madres Terra (1)

Fonte: Panesso, 201914

 

Constituído por gestos performáticos, o ensaio traz um jogo de sentidos importante estabelecido entre quem está vivo e quem está morto, entre vida e morte, preto e branco, claro e escuro, presença e ausência, no qual os dois lados se interpenetram produzindo sentidos. No modo de formulação estética, ressoa uma relação ambígua, contraditória, entre mãe e filho, vida e morte, um se funde ao outro, emaranhando-se. Contraditória porque o gesto de se colocar as mães na terra denuncia não só a morte do filho, mas também a morte (parcial) dessas mulheres. Como vimos, na compreensão psicanalítica sobre o luto, um pedaço de si (do enlutado) foi junto com o morto (Allouch, 2004). As mães não só abraçam o filho na terra, mas também elas estão na terra, enterradas na terra. Ao mesmo tempo em que há a presença do colo materno recebendo o filho (ausente), elas também estão de volta a esse lugar: ao útero da mãe terra. Dito de outro modo, elas saem da posição de viventes, colocando-se como corpos enterrados para resgatar a memória de seus filhos que o Estado da necropolítica silenciou (enterrou) de forma arbitrária.

  Acrescente-se, a cena performática trabalha ainda com outro duplo: mãe e terra, tal como está também sinalizado na expressão linguística Madres Terra que dá título ao ensaio fotográfico. Não esqueçamos: essas mães são um grupo de mulheres colombianas, campesinas, reconhecidas por manter viva a memória de seus filhos vítimas de desaparecimento forçado entre os anos de 2002 a 2008. Madres Terra, pois a vida começa da mãe e da terra. Ambas dão frutos. O jogo metafórico entre mãe e terra não está somente presente no título do ensaio, mas também perpassa todo o plano imagético, em que as mães e a terra se misturam, fundindo-se.

No gesto simbólico e ambíguo de colocar as mães em uma cova e enterrá-las parcialmente, há a instauração de um corpo que, longe de estar morto, encontra-se vivo, desafiando a violência de Estado à qual seus filhos foram submetidos. Portanto, não se trata de um corpo meramente biológico, mas sócio-histórico. Corpo político. Corpo em disputa pelos sentidos. Concordamos com Azevedo (2014) quando afirma que:

 

[...] pela filiação teórica ao materialismo histórico, a forma material é sempre histórica. Em outras palavras, tomar o corpo como forma material implica afastar qualquer concepção que o trate como realidade empiricamente compreensível e biologicamente funcional, comuns em áreas como a da saúde, por exemplo, em que o corpo é natural, segmentável, controlável e transparente. (Azevedo, 2014, p. 323)

 

Os corpos enterrados vivos não falam: eles significam produzindo sentidos, desorganizando o discurso do Exército colombiano. Ou seja, o discurso estético – o gesto performático das mães na cova, o endereçamento do olhar de algumas delas para a câmera, o preto e branco das fotos e a presença da terra – aponta não somente para a tragédia e a dor as quais foram acometidas, mas faz ressoar a memória que o Estado quis e quer apagar. A formulação fotográfica convoca, na memória, a natureza, a motivação e a autoria das execuções. Em suma, as fotografias não deixam esquecer a barbárie cometida contra os civis. Elas a testemunham, lembrando, conforme Mariani (2021, p. 72), que “No testemunho fala-se do mal-estar e do desamparo em que se encontra o sujeito após o encontro com o real do acontecimento”.

 

Recorte 4: Madres Terra (2)

Fonte: Panesso (2019)15

 

 Embora ausentes, os filhos continuam a viver simbolicamente nas/pelas fotos, através do ensaio, daí a força vital da imagem fotográfica, com sua capacidade espectral de captar fantasmas e pessoas ausentes (Seligmann-Silva, 2010, p. 58). Além da força vital, há que se considerar que a fotografia guarda a sua força discursiva por sua capacidade de narrar o sentido outro, sinalizando ser um lugar produtivo onde se trava a luta de classes.

Como dissemos, o ensaio fotográfico, através do modo como formula o tema dos falsos positivos e das mães de Soacha, é tecido pela ambiguidade equívoca que a terra traz em sua memória: simboliza a morte e a vida ao mesmo tempo. As mães se lançam à terra para trazer o filho do limbo da história para o discurso, ou seja, é por meio do sacrifício, do luto, do lançar-se no abismo da dor, que elas conseguem resgatar seus filhos. Não o filho vivo, mas o filho enquanto sujeito histórico. Pela arte fotográfica, resgatam-se os filhos do silenciamento, da cova da censura, aos quais foram submetidos pelas forças do Estado colombiano.

Em outras palavras, a arte fotográfica metaforiza essa ambiguidade: as mães lançam-se à cova como uma forma de resgatar a vida dos filhos que se perdeu. Se elas não alcançam o filho vivo, alcançam a sua memória por meio do discurso, do enunciável (Courtine, 1999). Daí a grandeza de eventos discursivos como os das Mães de Maio, na Argentina; as Mães de Acari, no Rio de Janeiro; as Madres de Soacha, na Colômbia, e tantas outras mães vítimas da violência de Estado.

Vale dizer que se trata do resgaste não só do silêncio a que foram impostos (mães e filhos), mas da manipulação do Aparelho Repressor de Estado, que produziu uma interpretação que significou e ainda tenta significar os civis como guerrilheiros criminosos.

Assim, embora os filhos estejam embaixo da terra já que foram tirados à força da mãe terra (de suas mães), a arte fotográfica, como toda arte, tem o poder de tirá-los de lá. Essa é uma das propriedades da arte: trazer aquilo que está submerso, silenciado, enterrado, para a vida, para o plano do discurso. No trabalho tecido por meio da memória, o ensaio é capaz de dar vida aos filhos mortos.

Como escreve Orlandi (2001, p. 193), “[f]ormular é textualizar palavras, é dar corpo aos sentidos”. A arte fotográfica também faz o trabalho de formulação, mas por meio de um arranjo que se dá via não verbal. No caso de nosso objeto de estudo, consideramos o ensaio fotográfico na íntegra, incluindo aí seu título verbalizado: Madres Terra. Ao formular o caso dos falsos positivos em um arranjo artístico-imagético, o ensaio fotográfico em análise dá corpo simbólico-histórico às vítimas e auxilia o trabalho do luto, necessário para elaborar a perda.

Vieira (2009) afirma que fotografar é uma tentativa de tornar o sofrimento das vítimas inteligível e comunicável através da imagem e, acrescentamos, além de ser um modo outro de recriação do objeto perdido, do ponto de vista psicanalítico. O registro (click) significante sobre o ausente pode favorecer o princípio de realidade que, segundo Mannoni (1995), permite que o sujeito compreenda que o objeto realmente desapareceu. As mães enlutadas se fortalecem na ressignificação pela ação performática do ensaio fotográfico, uma vez que ele funciona como lugar de resistência à banalização da morte pelo Estado colombiano, à negação do luto e à própria morte, além de atuar como reparação simbólica da dor da perda.

Nesse sentido, o ensaio é capaz de romper o silêncio imposto sobre as vítimas e o luto e possibilita que os sujeitos enlutados inscrevam seus mortos em um espaço que, pela formulação imagética, torna-se estético. Em síntese, a formulação artística transforma a experiência traumática (a perda do filho), que é simbolicamente elaborada e adquire força psíquica e política e beleza.

 

Transformar a dor e a ausência em beleza, buscar a estética dos sentimentos por meio das criações artísticas. Utilizar-se das nossas subjetividades, nossas visões, nossa poética sobre a existência e abraçar a emersão de nossas memórias é dar ao tempo a função de gestar um novo significado para o luto, para a ausência. (Cruz, 2020, p. 146)

 

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo analisar os modos de representação discursiva das mães de Soacha, Colômbia, tendo como corpus discursivo o ensaio fotográfico Madres Terra, do fotógrafo Carlos Saavedra e do antropólogo Sebastián Ramírez. O ensaio é constituído de fotografias de mães que perderam seus filhos executados pelas forças militares colombianas, sob a falsa alegação de atuarem como guerrilheiros, um dos efeitos perversos da (necro)política do governo Uribe, como já afirmamos.

A nosso ver, no processo de luta das mães pela responsabilização e pelo reconhecimento do Estado Colombiano pelas mortes de seus filhos, instaura-se um espaço que as inscreve em um movimento que mobiliza a maternidade (o corpo materno) como símbolo de luta, de resistência e engajamento político. Portanto, não se trata apenas das vítimas executadas, mas também e principalmente das mães dos jovens que acabaram sendo envolvidas nesse “combate armado” na medida em que, ao perderem seus filhos pelas forças militares do Estado, identificam-nos como aqueles cujas práticas devem questionar. Questionar a índole de seus filhos, seus nomes, implica também colocar em xeque o caráter das mães.

A análise do funcionamento discursivo do ensaio fotográfico permitiu ver que, enquanto as forças necropolíticas do Estado recalcam a relação do filho com a mãe através da violência, vimos que a arte fotográfica, por sua vez, traz as mães para a cena pública onde seus corpos passam a ganhar novos sentidos. Diante do corte gerado pelo assassinato de seus filhos, da interrupção no laço entre mãe e filho, a arte é convocada não somente para dar voz às mães e a seus filhos, como também testemunhar e denunciar a ação do Estado por ter arrancado à força o pedaço que lhes pertencem. Assim, o fotográfico, tal como é formulado no presente ensaio, ao funcionar como operador da memória, traz à baila a luta das mães colombianas a partir de uma gramática na qual os signos “mãe”, “materno” e “corpo” são centrais para o luto, o testemunho e a mobilização política. Em síntese, é por meio do corpo materno que a luta e o luto se dão16.

Por meio do ensaio fotográfico, o enfrentamento das mães no luto e na luta por justiça é permeado por um marcador de gênero em que duas forças simbólicas e antagônicas atuam: de um lado, há o Estado (o Exército Nacional Colombiano), antropomorfizado pela figura masculina e, de outro, há as mães representadas pela figura feminina e pela maternidade que assumem um protagonismo político importante no ensaio17.

 

Referências

 

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Data de Recebimento: 21/09/2023
Data de Aprovação: 06/02/2024


1  Para situar o leitor, Soacha, cidade próxima a Bogotá, Colômbia, é cenário de dificuldades complexas de todos os tipos. Historicamente, pode-se dizer que um dos eventos mais graves e criminosos ocorridos neste país foram os chamados “falsos positivos”, que se constitui como um crime que se configura quando as forças militares matam civis para fazê-los passar por criminosos e ganhar benefícios por isso. Voltaremos a essa questão mais adiante.

2  Das quinze fotografias que fazem parte da série denominada Madres Terra, recortamos dez fotos em virtude do espaço concedido.

3  O Centro de Memoria, Paz e Reconcilión, localizado em Bogotá, surgiu da necessidade de criar um local para dignificar a memória das vítimas, contribuindo para a memória histórica.

4  Importa dizer que as mães que participaram do ensaio fotográfico são mulheres trabalhadoras, campesinas, que vivem da terra para sobreviverem.

5  Esclareceremos o conceito de necropolítica mais adiante.

6  Vale uma observação aqui. A teoria política, por meio de seus fundadores e continuadores (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Weber, Marx etc.) abordou, ainda que indiretamente, a violência como um dos aspectos da política.

7  Agambem (2004) propõe o conceito de homo sacer, que se refere àqueles destituídos de sua condição de cidadãos e se encontram em estado de exceção frente ao poder. Esses são apagados do sistema jurídico, portanto do direito à vida na política ocidental. Os filhos e parentes das mães de Soacha assassinados pelo Estado colombiano são um sintoma disso.

8  Na relação parte pelo todo, as botas convocam metonimicamente os corpos dos civis vítimas da cena armada pelo Exército que os subjetivou no lugar da criminalidade. Isto é, tais como comparecem na formulação artístico-imagética, as botas fazem lembrar, por um processo metonímico, os corpos dos civis que estão ausentes em razão do crime de Estado.

9  https://memorialdevoces.wordpress.com/2012/11/02/positivo/

10  A respeito dessa falha no ritual dos aparelhos ideológicos e repressores de Estado, discutiremos mais adiante.

11  https://www.palimpsesto.online/ensaios/antigona-o-palco-como-tribunal-historico

12  No caso de nosso corpus, estamos considerando o ensaio fotográfico na relação com o seu título “Madres Terra”.

13  O título do ensaio, Madres Terra, remete à expressão “Mãe Terra”/“Mother Earth”, em que Terra/Earth está funcionando como aposto. A expressão "Mãe Terra" no plural, "Madres Terra", nomeia essas mulheres fotografadas e suas histórias. Além disso, vale notar que a palavra “Terra” está em latim, não em espanhol. Um dos efeitos é o de universalidade, porque o latim foi a língua universal do Ocidente e deixou marcas em muitas línguas, sobretudo as ocidentais.

14  https://experiencias.centromemoria.gov.co/madres-terra/

15  https://experiencias.centromemoria.gov.co/madres-terra/

16  Em termos de memória, vale lembrar que arrancar/tirar os filhos à força lembra, metaforicamente, o parto cesariano a partir do qual Júlio César foi tirado à força do ventre materno em razão da morte de sua mãe. No caso das mães de Soacha, tiraram-lhes seus filhos à força ainda vivas.

17  Vale dizer que, diferentemente do (mal)tratamento dado aos sujeitos do campo pela sociedade colombiana – capitalista, neoliberal e latifundiária –, a arte fotográfica, por sua vez, dá dignidade tanto às mães, que são campesinas, quanto aos civis assassinados, também pertencentes ao campesinato. O elemento “terra” não somente remete ao tema da vida e da morte, mas também à questão latifundiária que o Estado colombiano não resolveu ainda.