Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

Em vista disso, podemos considerar que o camponês tinha, em seu universo simbólico, um ideário sobre a lei, que o fez procurá-la. Ao se deparar com a intervenção do guarda na porta, essa situação se uniu ao conjunto de saberes do camponês. As condições de produção interferem na relação de força, que funciona no interior do discurso presente na narrativa. É possível dizer que as relações de forças e saberes produzem efeitos de diferentes ordens. Haja vista a atitude do camponês que, ao logo da narrativa, permitiu que alguns saberes e práticas pudessem ser repetidos, mantendo lugar para saberes e práticas já cristalizados, mas antagônicos.
É preciso que se tenha uma representação tanto de camponês para que a leitura do texto ganhe uma representatividade necessária à narrativa, quanto de guarda em seu papel de guardião da lei. Tais pré-construídos trabalham na memória discursiva, juntamente com a questão interpretativa da leitura, já que o sujeito, afetado pelo simbólico, compartilha de saberes que ressoam nos textos, sendo entrecruzados, especialmente, quando há possibilidade de ingresso na lei.
Na análise acima, percebe-se a presença de saberes de diferentes domínios na formação discursiva literária. A partir disso, utilizamos o aporte teórico de Pêcheux (1988) para exemplificar o funcionamento do interdiscurso enquanto discurso-transverso.
 
O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria prima na qual o sujeito se constitui como “sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto “fio do discurso” do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma “interioridade” inteiramente determinada como “tal do exterior”.  (PÊCHEUX, 1988, p.154).
 
Na narrativa, continua a espera do camponês para entrar na lei. Depois de descrever as tentativas do camponês, que já duram anos, o conto aborda a relação entre ele e o guarda, contato este que se configura no exemplo da sequência a seguir:
 
(3) Com frequência, o guarda mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar ao guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz.
- Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço. (KAFKA, 1965, p. 71)