Convém de início diferenciar transporte, trânsito e tráfego. No dicionário Aurélio, vemos que transporte significa o movimento de pessoas e de cargas (transporte de passageiros, transporte de cargas) e trânsito significa circulação de veículos e pedestres no espaço urbano (o trânsito está lento hoje). Já tráfego, em algumas situações é sinônimo de trânsito, mas pode significar especificamente “fluxo de mercadorias transportadas” (tráfego de mercadorias). Dentre estas palavras, é o nome “transporte” que funciona na nomeação de um dos ministérios do governo brasileiro: o Ministério dos Transportes, que se encarrega da “formulação, coordenação e supervisão das políticas nacionais para o setor”, considerando a ramificação do “transporte” nos “modais”: “transporte rodoviário”, “transporte ferroviário” e “transporte aquaviário”, uma distinção que toma por critério o meio e a via de transporte e nessa medida está estreitamente relacionada com as tecnologias de cada um desses modais.
Uma das políticas nacionais realizadas para o setor é a “Política Nacional de Mobilidade Urbana”, que objetiva “a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município”. Tal Política Nacional coloca em circulação algumas palavras e conceitos a serem considerados nos municípios, dentre os quais os de: transporte urbano: “conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”, mobilidade urbana (“condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”) e acessibilidade (“facilidade disponibilizada às pessoas que possibilite a todos autonomia nos deslocamentos desejados, respeitando-se a legislação em vigor”). Tais palavras circulam amplamente nas instituções municipais e na mídia, passando a fazer parte do senso comum e inserindo-se largamente no discurso da mídia.
Uma outra posição de organização da cidade é a de especialistas em transportes. Nesse caso, ocorre uma reprodução e divulgação dos dicursos governamentais, mas também um questionamento, uma visão crítica das práticas do setor, que tornam o discurso polêmico. Em um livro de autoria de Vicente de B. Pereira, o setor de transportes aparece conectado com o discurso econômico, que o coloca como uma das condições imprescindíveis para o “crescimento econômico”. Segundo o autor, desde a Constituição de 1988, o setor de transportes tem sido considerado um “ponto de estrangulamento”, um “gargalo” da economia nacional, na medida em que impede um crescimento mais acelerado, já que os transportes apresentam um “poder de irradiação por toda a economia”. Um novo fator nessa conjuntura está na política de concessão dos serviços públicos de transportes à iniciativa privada (“privatizaçao do setor”), em rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, bem como a emergência de “agências reguladoras” e a participação dos segmentos públicos federal, estadual e municipal no “planejamento” e “administração” de seus sistemas. Segundo Pereira, o setor de transportes no Brasil é “extenso, complexo e desarticulado”. Há programas de obras de construção, ampliação e manutenção nos diversos meios de transporte, e uma das tendências atuais é a de privilegiar o transporte modal rodoviário. Quanto à “integração e interação das instâncias governamentais”, há tendências específicas para cada setor. No rodoviário, afirma Pereira, “o universo dos municípios e dos estados, a par do governo federal, tem atuação destacada nessa área”. No ferrovíário, há uma concentração do setor privado e “o governo federal é praticamente a única instância com participação”. No portuário, “os problemas de interação entre as esferas federal e estadual são igualmente relevantes”. A leitura de Pereira leva também a perceber que os sentidos de transporte se configuram conforme as posições dos vários sujeitos (“atores”) que estão aí envolvidos: “proprietários de cargas”, “empresários”, “governos”, “usuários” dos transportes e uma proliferação de “agências” e outros participantes.
Em outros textos vemos uma certa desestabilização dos sentidos de organização urbana dos transportes. Na literatura, especialmente nas crônicas, nos deparamos com vários sentidos de transportes presentes no dia-a-dia, como no recente livro de Vanessa Bárbara: O Louco de Palestra (BÁRBARA, 2014), em que são apontadas com humor as condições precárias dos meios de transporte, os ‘atrasos’ nas linhas, a incompreensão na leitura dos “letreiros” e dos “itinerários”, os pequenos incidentes e conflitos que envolvem o cotidiano dos sujeitos que utilizam o transporte urbano. Inserindo-se historicamente em uma série de autores de crônicas urbanas (Sérgio Porto, Luis Fernando Veríssimo, Millor Fernandes, Rubem Braga), esse discurso coloca em cena um amplo vocabulário que muitas vezes não está presente nos discursos de organização e que marcam sentidos singulares das práticas cotidianas, de personagens urbanos e dos acontecimentos públicos, invisíveis para as políticas públicas e a mídia. É interessante notar também que a terminologia administrativa comparece nesses textos, mas geralmente de modo distanciado, colocado entre aspas, ou sob o olhar crítico, irônico, tal como ocorre com o uso amplificado de vocabulário técnico ou “politicamente correto”, que sinaliza a burocracia e a ineficiência de alguns discursos administativos.
As palavras dos transportes podem também tomar sentidos de “manifestação”, de “mobilização”, como aconteceu durante as chamadas “Manifestações de junho de 2013”, com protestos contra os aumentos nas tarifas de transporte público. O papel dos movimentos sociais é visível nesses acontecimentos públicos, como se notou com a atuação do Movimento Passe Libre (MPL). Termos como “catraca” (tal como em “por uma vida sem catracas”), significando, para além do obeto técnico, os obstáculos para um transporte urbano satisfatório, ou slogans como “tarifa zero”, utilizado nas reivindicações de junho de 2013, indicam as disputas pelos sentidos do transporte, a partir da posição de usuários e de participantes dos movimentos sociais:
O MPL não tem fim em si mesmo, deve ser um meio para a construção de uma outra sociedade. Da mesma forma, a luta pela Tarifa Zero não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como direito para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da iniciativa privada, sob controle público (dos trabalhadores e usuários). (MOVIMENTO PASSE LIVRE, 2015)
O movimento faz uma imagem de si mesmo como “horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário”. Algumas palavras de ordem emergem nas manifestações e na mídia, dentre as quais “tarifa zero” (“meio mais prático e efetivo de assegurar o direito de ir e vir de toda população nas cidades”) e “luta pelo passe livre”. O nome “coletivo”, enquanto conjunto dos membros do movimento, indica igualmente uma participação “horizontal”, “sem líderes”. Surgem também questões urbanas como “crescimento desordenado das metrópoles”, “relação cidade e meio ambiente”, “especulação imobiliária”, “drogas”, “violência” e “desigualdade social”. É interessante notar como sites de movimentos como esse passam a apresentar listas de palavras com definições dos termos a partir do ponto de vista da posição sustentada pelos participantes. As palavras se tornam aí entradas para outros textos, artigos de notícias, sites de instituições ligadas e movimentos sociais, agendas de eventos, etc. Elas são dispostas em mecanismos como o das “tags” (“marcadores”), que apresentam palavras e locuções selecionadas com distinção de tamanho para serem clicadas pelos leitores.
Referências bibliográficas
BÁRBARA, Vanessa. O sem-carro. In: O Louco de Palestra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 7.0. 5ª. Edição do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo Informática, 2010.
MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES. Endereço: http://www.transportes.gov.br/conheca-a-identidade-digital-do-governo.html. Acesso em 22 de fevereiro de 2015.
MOVIMENTO PASSE LIVRE. Endereço: http://saopaulo.mpl.org.br. Acesso em 22 de fevereiro de 2015.
PEREIRA, Vicente de Britto. Transportes: História, crises e caminhos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
POLÍTICA NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA. Endereço: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm. Acesso em 22 de fevereiro de 2015.