Com uma notável presença no espaço público, os mendigos de certo modo resistem à organização da cidade, realizando percursos inesperados e mexendo com os sentidos de trabalho, civilidade, produtividade, habitação, saúde. Por meio de seu corpo, suas roupas, seus costumes, evocam sentidos de estranheza, comoção, incômodo, e colocam em jogo a questão dos laços sociais. Eles comumente interpelam os demais frequentadores das vias públicas, como ruas, sinaleiros, praças, imediações de igrejas, e pernoitam em calçadas, abrigos ou sob viadutos. Pedem dinheiro, alimentos, algum auxílio para se manterem nas ruas ou para serem acolhidos em outros espaços. São definidos frequentemente pela falta: de condições de vida, de moradia, de alfabetização, de higiene, de vínculos familiares. São considerados, por outro lado, personagens da urbanidade, figuras que fazem parte do imaginário social e são comumente abordadas na midia, na literatura, na música. No Brasil, notam-se na última década transformações no modo como a administração pública lida com esses sujeitos. Em 2008 foi publicada a "Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua", que após apontar para a "fragilidade dos vínculos" e a "extrema pobreza", trabalha o conceito de "população em situação de rua", enquanto "grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de moradia convencional regular" (GOVERNO FEDERAL, 2008, p. 8). Os sujeitos no espaço público tornam-se, assim, objeto de ciência, de definição, classificação, contagem e práticas de assistência social. A "rua" é vista nessas políticas como um lugar provisório ("em situação de rua"), a ser deixado em direção à família, aos albergues, à moradia regular. No trânsito, foram inseridas em muitas cidades placas que orientam os motorisas a não darem esmolas e a contibuirem para as entidades que dão assitência a essa população. Como consequência, os sinaleiros e outros pontos de parada do trânsito passaram a ser ocupados por indivíduos que oferecem algum produto ou serviço: catadores, malabares, limpadores de para-brisa, vendedores ambultantes, artistas de rua, etc, de modo a serem considerados "sujeitos produtivos" ("estou trabalhando e não roubando", "sou trablhador e não vadio"). As práticas de assistência passam a oferecer certas condições para os "moradores de rua": alimentação durante a noite, cobertores e roupas em época de frio, encaminhamento para albergues ou tratamentos de saúde, etc. Todas essas práticas fazem com que a palavra "mendigo", assim como "pedinte", deixe de funcionar como figura típica no espaço público, ao mesmo tempo em que outras palavras aparecem ou são ressaltadas. Um dos sinais disso decorre da "refuncionalização do trabalho", com o surgimento de palavras relacionadas a atividades formais ou informais, dentre as quais: vendedores ambulantes, catadores de materiais recicláveis, panfleteiros, artistas de rua, flanelinhas, limpador de parabrisas, engraxates, vigias de carro, etc. Enquanto a noção de trabalho é re-significada e potencializada na fronteira entre o formal e o informal, outras práticas levam a marginalizar os sujeitos considerados "improdutivos". É o que se nota em algumas medidas que criminalizam a "vadiagem" e tendem a abordar e fiscalizar esses sujeitos, retirando-os eventualmente do espaço público e direcionando-os para outras cidades ou a instituições de reclusão. Os sentidos de mendigo se produzem, assim, na tensão entre a assistência, o convívio na diferença e a intolerância, diante dos processos de desindustrialização que levam a lançar no espaço público indívíduos que se voltam para o mercado informal ou de serviços. Diante dessas transformações, os mendigos têm perdido parte dos sentidos românticos que os envolviam, ao mesmo tempo em que suas narrativas biográficas ganharam espaço na mídia, em blogs e no cotidiano. Desvencilhando-se do imaginário do "morador de rua", temos também os chamados "trecheiros", que buscam construir uma identidade a partir da significação do percurso que realizam na cidade (o trecho) e pelas diversas atividades que aí se dão, enquanto nômades urbanos e interurbanos. Assim, ao lado do nome "andarilho", o termo "trecheiro" aponta para um espectro mais amplo das atividades cotidianas desses sujeitos em movimento, deslocando alguns dos sentidos sedimentados de "mendigo".
Referências bibliográficas
GOVERNO FEDERAL. Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua. Brasília: Governo Federal, maio de 2008. Disponível em: http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/versao_da_pnpr_para_consulta_publica.pdf. Acesso em 24/11/2014.
SILVA, M. L. L. Trabalho e População em Situação de Rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009, p. 271.