favela

Fábio Ramos Barbosa Filho

O nome “favela”, inicialmente restrito ao saber botânico, ingressa na fala comum sendo atravessado e reconfigurado pelo imaginário urbano. Como podemos compreender o modo pelo qual esse gesto de deslocamento do saber botânico para o saber comum funciona discursivamente, enquanto movimento do sentido na história? O movimento do sujeito da/na cidade, a tensão entre a ordem e a organização (ORLANDI, 2007), reclama sentidos e se faz presente na textualização do espaço urbano. O fato de que “em vez das cidades de ferro e vidro, sonhadas pelos arquitetos, o mundo está, na verdade, sendo dominado pelas favelas” (MARICATO, 2006, p. 209) nos afeta enquanto habitantes do espaço urbano. Somos injungidos por esse aumento crescente dos espaços marginais e isso nos leva a significá-los e a significar a cidade, de forma geral, através de uma memória específica: a memória urbana, que se constitui como o imaginário que atravessa a constituição do sujeito contemporâneo.

Por uma questão de conjuntura, muito se fala sobre a favela. Ela está na mídia, significada pelo imperativo do desvio nos telejornais diários e estampado no impresso. Está no cinema, sendo representada, encenada. Está nas falas cotidianas. Figurando em diversos sentidos, nos interpela pela visibilidade cada vez mais aparente. Não se esconde. Não está à margem, no sentido geográfico. Está no centro, está na margem: dispersa. De acordo com Mike Davis (2006) os favelados constituíam, em 2006, 78,2% dos habitantes urbanos nos países subdesenvolvidos. A porcentagem é de 6% nos países desenvolvidos. No caso brasileiro, tem-se 36,6% de habitantes vivendo em favelas o que o torna o terceiro país (atrás apenas da China e da Índia) com maior número de favelados. Esses indicadores não são apenas números dispersos. Eles injungem a determinadas formas de ler o país e as formas de vida que nele se produzem, especialmente na questão urbana.

O dicionário figura, nesse movimento dos sentidos, como uma instância de estabilização semântica. De acordo com Nunes (2006)

o dicionário é visto geralmente como um objeto de consulta, que apresenta os significados das palavras com a certitude do saber de um especialista e eventualmente com a legitimidade de autores reconhecidos que abonam as definições. Ele se mostra, desse modo, como uma obra de referência, à disposição dos leitores nos momentos de dúvida e de desejo de saber. Trata-se de um dos lugares que sustentam as evidências dos sentidos, funcionando como um instrumento de estabilização dos discursos (NUNES, 2006, p. 11)

Então, como lugar da evidência(lização) do sentido, o dicionário permite que se compreenda como o novo e o mesmo convivem no funcionamento da significação e, sobremaneira, de que forma a memória se atualiza no movimento da designação. Essa tensão entre paráfrase e polissemia, onde o silenciamento (estreitamente relacionado com a noção de formação discursiva) intervém com toda força, nos mostra como os sentidos legítimos se estabelecem como evidência e de que modo os instrumentos de consulta se mostram atravessados pela ideologia, a despeito da suposta neutralidade da informação. Uma das razões que motivam essa leitura é o fato de que os domínios de conhecimento vão se constituir historicamente (LECOURT apud GUIMARÃES, 1998, p. 109) e os fatos não são evidências: são “materialidades históricas” (GUIMARÃES, 1998, p. 110).

Acima, afirmei que o termo favela é oriundo do saber botânico[1] e designa um tipo específico de fava[2]. Por analogia o termo passa a designar pessoa com dentes largos, grandes (ver (7) na nota 3). Essa analogia já permite observar o deslizamento de sentidos que se impõe à linguagem quando posta em funcionamento e que nos mostra, também, como a questão do uso corrente dos termos está envolvida em uma política dos saberes. Essa política dos saberes, junto à questão do silenciamento, se mostra principalmente quando o termo passa a designar fora do campo da botânica. De acordo com Medina (1964) a favela, enquanto fenômeno urbano, ganha destaque “na vida da cidade” a partir de 1930, mas as suas origens remontam ao início do século passado: especificamente após o fim da guerra de Canudos (MEDINA, 1964, p. 17).

Ora. As entradas mencionadas na nota 3 (pg. 7), que datam da décima edição da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (GEPB), são do ano de 1944. Já havia então, de acordo com Medina (1964), a noção de favela como fenômeno urbano. Porém, a GEPB só menciona a definição botânica. Aparentemente, e esse aparentemente se deve, sobretudo, à curta jornada de pesquisa que pude empreender sobre o objeto, além do acesso restrito aos dicionários, o termo só passa a ser significado na sua acepção urbana[3] em 1974 através do Dicionário Caldas Aulete. Este dicionário, português, traz a definição urbana ao lado da botânica, sinalizando que o uso de favela enquanto noção urbana é restrito ao português brasileiro.

Até aqui busquei trazer o deslizamento que se instaura, no movimento de estabilização do dicionário, do saber botânico ao saber urbanístico. O que me chama a atenção, porém, é de que modo o termo vai passar a significar – no urbano – a partir das injunções do discurso jurídico e administrativo. Listo, então, as seguintes entradas:

(16) Domicílios em espaços subnormais.[4]

(1) s.f Núcleo de habitações rústicas e improvisadas nas áreas urbanas e suburbanas, sobre terreno de propriedade alheia (privada ou estatal), ou de posse não definida.[5]

(2) s. f.1. Bras. Conjunto de casebres toscos e miseráveis, geralmente em morros e onde habita gente pobre. 2. Por ext. Lugar de má fama, sítio suspeito, frequentado por desordeiros. 3. Bot. Planta das caatingas baianas.[6]

(3) sf (de Favela, np) 1 Aglomeração de casebres ou choupanas toscamente construídas e desprovidas de condições higiênicas. 2 Bot Planta das caatingas nordestinas (Jatropa phyllacantha). F.-branca: planta leguminosa-mimosácea (Enterolobium ellipticum); brinco-de-sagüi, orelha-de-negro.[7]

            Essas três formas de designar a favela colocam diversas questões. Em primeiro lugar, como já afirmei anteriormente, elas demonstram o atravessamento do discurso jurídico-administrativo na estabilização do sentido ((1) terreno de propriedade alheia; (2) sítio suspeito freqüentado por desordeiros, onde habita gente pobre). Em segundo lugar também há a presença do discurso da ciência – do urbanista, neste caso – quando se observa a questão estético-arquitetural ((1) rústicas e improvisadas; (2) toscos e miseráveis; (3) toscamente construídas). E, o que chama mais atenção: a forma como essas duas instâncias de saber se entrelaçam em todas essas designações, inclusive na definição do IBGE: “domicílios em espaços subnormais”.

            Definir um objeto se mostra, então, como uma tarefa que não pode contornar a filiação do sujeito a uma memória circunscrita a uma formação discursiva. O discurso jurídico-administrativo e o saber urbanístico assentados na dicionarização do termo favela que, na maioria dos verbetes, silencia a “antiga” designação da botânica, espraia seus efeitos na fala comum. Por meio de um movimento de des-historicização e silenciamento o efeito de dicionarização tenta negar o atravessamento pelo imaginário, criando a imagem de uma fala asséptica e neutra: evidente. Ao que a semântica vem a responder que as designações não se instituem pela mobilização de um sistema lingüístico descolado da história. Elas se instituem na materialidade da língua constituída pela exterioridade.

 

Referências

DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

GUIMARÃES, E. História, sujeito, enunciação. In: Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, nº 35, p. 109-116, jul/dez 1998.

MARICATO, E. Posfácio. In: DAVIS, M. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006. (p. 209-224)

MEDINA, C. A. A favela e o demagogo. São Paulo: Martins Fontes, 1964.

NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes, 2006.

ORLANDI, E. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.

 


[1](8)FAVELAs.f Dente grande, o mesmo que favola. (V. Esfavelar)/ (9)ESFAVELARv.t Ant. Arrancar as favelas aos cavalos: “O cauallo... quando ho esfavellarem deuemlhy tirar as fauelas e as paas da queixada”. Mestre Giraldo, Livro de Alveitaria, cap. 14, in Revista Lusitana, XII, p. 15./ (10)FAVOLAs.f Pop. O mesmo que favarola, dentola./ (11)FAVAROLA¹ s.f Pop. Dente grande; fava, dentola. Também se diz favola./ (12)FAVAROLA² s.f Variedade de fava, o mesmo que fava-cavalinha e fava-da-holanda. (Cf. Gazeta-das-aldeias, XLVI, p. 6. (Do fr. faverole, alteração de féverole, de féve, fava, se não por infl. de favarola¹)/ Definições presentes na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume X. Editorial Enciclopédia Limitada Lisboa Rio de Janeiro, 1944.

[2]fa.va sf (lat faba) 1 Bot Erva da família das Leguminosas (Vicia faba), cultivada pelas sementes largas e chatas, comestíveis, e pelas vagens, que, quando verdes, são usadas como hortaliças e, quando maduras, empregadas na ceva de porcos. 2 Bot Vagem ou semente desta planta. 3 Bot Semente achatada de algumas leguminosas. 4 Bot Nome de várias plantas da família das Leguminosas. 5 Bot Fruto com aspecto de bainha. 6 Nome que se dá a várias coisas que têm a configuração de um dente da fava. 7 Vet Doença de eqüídeos, que consiste em uma inchação no céu da boca, junto aos dois dentes do centro. 8 Vet Doença que dá nos olhos dos galináceos. 9 Espécie de seixo rolado, considerado satélite do diamante. F.-assária: variedade de fava (Faba vulgaris major). F.-caranguejo: planta leguminosa (Phaseolus adianthus). F.-cavalinha: variedade de faveira. F.-coceira: planta leguminosa-papilionácea da Índia, cujos pêlos irritam a pele (Phaseolus trinervius). F.-da-holanda: variedade de faveira. F.-de-água: planta gencianácea, rizomatosa, aquática. F.-de-bolota: árvore da família das Leguminosas (Parkia pendula), também chamada faveira, faveirão e visgueiro. F.-de-cacau: nome vulgar por que se designa a semente do cacaueiro. F.-de-calabar: planta leguminosa (Physostigma venenosum), cujas sementes altamente venenosas contêm a calabarina e a fisostigmina, alcalóides de propriedades terapêuticas. F.-de-cavalo: designação indiana da leguminosa-papilionácea alimentar Psophocarpus tetragonolobus. F.-de-chapa: árvore leguminosa-papilionácea da Índia, de boa madeira e sementes oleaginosas (Pongamia glabra). F.-de-cobra ou de angola: designação indiana da árvore bignoniácea Stereospermum chelanoides de cuja raiz (casca) se prepara um remédio contra a mordedura das cobras. F.-de-malaca: o mesmo que anacárdio. F.-de-santo-inácio: semente venenosa de cor palha-esverdeada, semelhante a feijão, de uma trepadeira lenhosa das Filipinas (Strychnos ignatii), que contém os alcalóides estricnina e brucina e tem propriedades semelhantes às da noz-vômica. F.-de-santo-inácio-falsa: nome comum a duas trepadeiras brasileiras da família das Cucurbitáceas: a) (Fevillea deltoidea) de caule estriado e semente comprida, que fornece um óleo usado como anti-reumático e outrora para iluminação; b) (Fevillea trilobata) de caule e ramos finos, pubescentes ou tomentosos, folhas lobadas, flores pequenas e fruto que é um peponídeo globoso. A raiz fornece uma fécula purgativa empregada contra doenças exantemáticas, e as sementes são empregadas como remédio tônico febrífugo e emético. Também chamada jabutá, jandiroba, jendiroba, nandiroba e nhandiroba. F.-de-tonca: semente de vários cumarus, especialmente da espécie Dipteryx odorata, o cumaru-verdadeiro, que tem cheiro agradável por causa da presença de cumarina e é usada para extração desta, em perfumes, para aromatizar fumo e no fabrico de extratos de baunilha artificiais; também chamada fava-da-índia, fava-de-cheiro e fava-tonca. F.-pichurim: o mesmo que pichurim. F.-ratinha: variedade cultivada de faveira com semente pequena. F.-rica: a fava seca, que, depois de cozida em água e sal, se come temperada em azeite, alho e pimenta. F.-tonca: planta leguminosa medicinal (Dipterix tetraphylla). F.-preta: voto de reprovação. Favas-de-engenho: árvore leguminosa-papilionácea (Butea frondosa). Favas-de-lázaro: árvore leguminosa da Índia (Albizzia odorantissima) Favas contadas: coisa certa, inevitável, infalível. Mandar à fava ou às favas; mandar plantar favas: despedir, fazer retirar alguém que importuna. (Definição do Dicionário On-Line Michaelis, disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=fava.

[3] (13) FAVELAs.f (Bras.) o mesmo que faveleiro. || Conjunto de casebres toscos e miseráveis, geralmente em morros, onde habitam marginais; maloca (Rio Grande do Sul)./ (14) FAVELEIROs.m (Bras.) arbusto euforbiáceo (jacotrophaphyllacanta, Muell. Arg.), também denominado favela e faveleira./ (15) EUFORBIÁCEASs.f pl. (bot.) família de plantas que tem por tipo o gênero eufórbio e que vertem geralmente, por incisão, um suco leitoso, branco, acre e muitas vezes venenoso. [também adj.] || F. eufórbia. (Definições presentes no Dicionário Caldas Aulete. 3ª ed. Lisboa: Editora Delta, 1974)

[4] Definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), presente em Maricato (2006, p. 222)

[5] Definição do Dicionário Enciclopédico Larousse. Rio de Janeiro: Editora Larousse do Brasil, 1979.

[6] Definição do Dicionário Priberam On-Line, disponível em www.priberam.pt/dlpo.

[7] Definição do Dicionário Michaelis On-Line, disponível em www.michaelis.uol.com.br








Palavras-chave:

metrópole
cidade
moradia
espaço
pobreza
botânica
desigualdade
favelização
precariedade
habitação



Noções

divisão social do espaço
política urbana
social/urbano
ordem/organização








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