Viaduto em São José do Rio Preto. Foto: JHN |
Quando consideramos os sentidos de “viaduto” não somente pelo viés da técnica urbanística (construção para passagem de veículos) mas também pelo prisma da história e da sociedade, notamos uma série de transformações recentes que afetam a significação dessa palavra: o crescimento desordenado das cidades, a aumento da população, o desemprego e as novas ocupações, a privatização, a crise do modelo urbano rodoviário, tudo isso atravessado por uma certa falta do Estado.
De símbolo da modernidade urbana, o viaduto passa a significar um espaço perigoso, frequentado por sujeitos colocados sob suspeita pela administração pública, pela mídia, por moradores e lojistas. Diante disso, algumas práticas urbanas visam a reformar esses espaços, procurando re-organizar a cidade (re-urbanizar, revitalizar, resgatar, etc.). Que discursos estão em jogo na relação tensa que se estabelece entre os sujeitos dessa nova configuração citadina?
Em uma análise de textos atuais nos deparamos com diversos sentidos ligados a espaços, sujeitos, práticas e acontecimentos urbanos, o que nos tem mostrado que para uma melhor compreensão da significação das palavras da cidade, convém levar em conta os discursos governamentais, mediáticos, do cotidiano, dos movimentos sociais, as escritas no espaço público (outdoors, grafites, pichações), músicas populares, dicionários, dentre outros.
Começando pelo Dicionário Aurélio Século XXI[1], vemos que ali o viaduto é definido pelo discurso técnico daquele que constroi a cidade (o organizador da cidade, o urbanista, o administrador, o engenheiro): "construção destinada a transpor uma depressão do terreno ou a servir de passagem superior". Esse discurso produz uma imagem da cidade como destinada naturalmente ao trânsito de veículos e silencia sentidos sociais, não falando sobre os sujeitos que frequentam esse espaço nem sobre atividades que ali se realizam.
Pichações em um viaduto de São José do Rio Preto. Foto: JHN |
Já na música popular, os viadutos são cantados inicialmente com o sentido de beleza moderna e de uma construção que altera as relações entre os sujeitos, como na canção "Viaduto Santa Efigênia, de Adoniran Barbosa. "Venha ver/venha ver Eugênia/como ficou bonito/o viaduto Santa Efigênia/venha ver (...)Eu me lembro/que uma vez você me disse/que um dia que demolissem o viaduto/que tristeza você usava luto/arrumava sua mudança/e ia embora pro interior"[2]. O bêbado de João Bosco e Aldir Blanc em "O bêbado e o equilibrista", não causa temor, pois ele lembra Carlitos: "Caia a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto/Me lembrou Carlitos)”[3]. Mas em Itamar Assunção já vemos os efeitos do crescimento da cidade do automóvel, com uma cidade labiríntica, caótica: "Não há saídas, só ruas/Viadutos e avenidas"[4]. Começa, assim, a ser significada nas canções a desorganização do espaço público: o viaduto não é aí uma obra bonita mas sim um signo do descontrole urbano.
Grafite em um viaduto de São José do Rio Preto.- Fotos: JHN |
Deixando de corresponder às expectativas do urbanismo planificado, o viaduto se transforma em lugar de pouso, dormitório, morada: "Como a temperatura despencou na madrugada de ontem, os moradores se enrolaram em cobertores encardidos e se esconderam do vento atrás do concreto"[1]. Esse texto jornalístico aponta para o descaso com os moradores de rua, porém a mídia também é repleta de textos que tratam esses espaços e sujeitos do ponto de vista jurídico-criminal quando abordam o espaço do viaduto: "ponto crítico para pequenos delitos", lugar de roubo e uso de drogas. Sob o cenário dos acontecimentos violentos despontam os moradores de rua, viciados, ladrões, bandidos, criminosos, o que leva aos sentidos de "medo" e de "reclusão": "Meu filho quase foi assaltado outro dia. Quando você passa aí a noite, eles vem pedir dinheiro e todo mundo fica com medo. Ninguém sabe se é assalto ou não". O viaduto torna-se também palco de "chacinas" promovidas contra os moradores de rua: “Seis rapazes com idades entre 25 e 35 anos -cinco deles moradores de rua- foram assassinados a tiros na madrugada de ontem debaixo de um viaduto no bairro do Jaçanã, na zona norte de SP”[2].
Diante da violência urbana, as práticas de reurbanização dos viadutos, as reformas, as revitalizações, trazem novos sentidos para esse espaço, trazendo de volta a visão técnica e estética mas também produzindo outros esquecimentos. Os blogs são textos interessantes para se flagrar esses novos sentidos, pois neles vemos diversas manifestações sobre as transformações do espaço, como no caso desta reforma do viaduto Laurão em Campinas. Vejamos estes enunciados de um blog[1]: "Era meio complicado o local, creio que agora o tráfego irá fluir bem melhor" (postagem de Rogério Brasileiro), "Boas fotos, bom terem feito uma plastica naquele viaduto, era muito feinho, ficou legal!" (postagem de Erico Williams). Os internautas trazem de volta o sentido técnico e estético do viaduto, sem tocar nos gestos de exclusão que decorrem das mudanças. Uma foto do local mostra a colocação de pedras pontiagudas onde antes dormiam mendigos e moradores de rua.
[1] Rogério Brasileiro. http://www.skyscraperlife.com/brazil/2662-campinas-avenida-norte-sul-e-arredores.html. Acesso em 130510.
[1] Trecheiros transformam Viaduto Laurão em morada. Notícia de 03/03/2010 - 14h39. http://cosmo.uol.com.br/noticia/48033/2010-03-03/trecheiros-transformam-viaduto-laurao-em-moradia.html. Acesso em 130510.
O viaduto torna-se também palco de "chacinas" promovidas contra os moradores de rua: “Seis rapazes com idades entre 25 e 35 anos -cinco deles moradores de rua- foram assassinados a tiros na madrugada de ontem debaixo de um viaduto no bairro do Jaçanã, na zona norte de SP”[6].
Viaduto Laurão em Campinas, após reforma. Foto: JHN |
Vejamos estes enunciados de um blog [7] "Era meio complicado o local, creio que agora o tráfego irá fluir bem melhor" (postagem de Rogério Brasileiro), "Boas fotos, bom terem feito uma plastica naquele viaduto, era muito feinho, ficou legal!" (postagem de Erico Williams). Os internautas trazem de volta o sentido técnico e estético do viaduto, sem tocar nos gestos de exclusão que decorrem das mudanças.
Pedras pontiagudas no Viaduto Laurão em Campinas. - Foto: JHN |
Uma foto do local mostra a colocação de pedras pontiagudas onde antes dormiam mendigos e moradores de rua. Tal gesto de violência simbólica leva a uma forma de expulsão dos sujeitos que permaneceriam no local. Porém, como se nota em uma notícia do jornal Correio Popular, a reforma que buscava re-organizar a cidade não controla o real urbano e os sujeitos voltam a ocupar um espaço adjacente: "Em um dos lados do viaduto (ao lado do McDonalds), obstáculos de pedra deixam o piso irregular e impedem que alguém durma por ali. Mas o lado oposto, que não recebeu a intervenção, continua sendo moradia improvisada para mendigos"[8].
Alguns neologismos surgem dessas novas formas de subjetividade urbana, como é o caso do "trecheiro": "Trecheiros transformam o viaduto Laurão em morada"[9]. Os trecheiros são sujeitos nômades urbanos; eles percorrem "trechos" no interior de uma cidade ou vão de uma cidade a outra sem estabelecer morada fixa. Por isso, muitas vezes eles não são contemplados pela organização da cidade, que geralmente espera que a chamada população em situação de rua encontre emprego e moradia. Os trechos são os espaços percorridos por esses sujeitos, no qual eles realizam atividades como pedir esmolas, olhar carros, praticar furtos, trabalhar informalmente..[10][1] Rogério Brasileiro. http://www.skyscraperlife.com/brazil/2662-campinas-avenida-norte-sul-e-arredores.html. Acesso em 130510.
Os frequentadores do espaço público na maioria das vezes são silenciados nos discursos em circulação, no entanto vemos em alguns textos indícios de sua fala, como nesta citação de um gerente de posto de gasolina, que afirma que os mendigos pedem para usar o banheiro do posto: "Em um dos postos de combustíveis próximos, o gerente reclama que os mendigos pedem para usar o banheiro. Como o pedido é invariavelmente negado, fazem as necessidades no chão mesmo, sob a marquise, diante dos olhos de quem passa. Na opinião dele, a Prefeitura devia instalar banheiros em espaços públicos. Se é impossível tirar todos da rua, diz, pelo menos a medida ia colaborar com a higiene do local"[11]. Esse traço da fala do mendigo, um sujeito que pede, nos leva a questionar o que desejam os mendigos, os moradores de rua, quais são suas reivindicações, suas necessidades no espaço público? E poderíamos estender esse questionamento a todos os freqüentadores dos espaços públicos.
Para além da visão técnica, os sentidos de viaduto, como vemos, estão ligados à história do crescimento das cidades, à movência social e à reurbanização dos espaços, assim como à constituição de novas formas de subjetividade urbana. E se a técnica faz parte do mundo da cidade, não seria o caso de atentar para o aparecimento dessas novas formas de subjetividade, considerando-se nos projetos urbanos o espaço em que elas se constituem?
[1] Aurélio B. de H. Ferreira. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3ª ed. totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
[2] ADONIRAN BARBOSA. Viaduto Santa Efigênia. http://vagalume.uol.com.br/adoniran-barbosa/viaduto-santa-efigenia.html. Acesso em 130510.
[3] JOÃO BOSCO; ALDIR BLANC. O bêbado e a equilibrista. http://vagalume.uol.com.br/joao-bosco/o-bebado-e-a-equilibrista.html. Acesso em 130510.
[4] ITAMAR ASSUMPÇÃO. Não Há Saídas. http:// vagalume.uol.com.br/itamar-assumpcao/nao-ha-saidas.html. Acesso em 130510.
[5] Trecheiros transformam Viaduto Laurão em morada. Notícia de 03/03/2010 - 14h39. http://cosmo.uol.com.br/noticia/48033/2010-03-03/trecheiros-transformam-viaduto-laurao-em-moradia.html. Acesso em 130510.
[6] http://www.geledes.org.br/noticias-de-direitos-humanos/cinco-moradores-de-rua-sao-mortos-no-jacana-12/05/2010.html. Acesso em 22/12/10
[7] Rogério Brasileiro. http://www.skyscraperlife.com/brazil/2662-campinas-avenida-norte-sul-e-arredores.html. Acesso em 130510.
[8] Ver a referência na nota 1.
[9] Idem.
[10] Para um estudo dos trecheiros do ponto de vista antropológico ver GARCIA, C. Z.; CARVALHO, M. C.; MARTINEZ, M.; ZANETTI, M. Vivendo no trecho: um ensaio etnográfico sobre “moradores de rua”. Pontourbe. Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Ano 2, versão 3.0, julho de 2008.
[11] Ver a referência na nota 1.