catador

José Horta Nunes

A sociedade industrial produziu muito lixo, e o consumismo atual lhe acentuou a quantidade. Ao mesmo tempo, o lixo mudou de sentido, deixando de ser apenas algo que se joga fora, e passando a ser objeto de práticas de reaproveitamento, reutilização, reciclagem. A palavra catador indica um novo sujeito urbano nesse ciclo do lixo. Em que ela se distingue de nomes até então mais correntes, como varredor, lixeiro, gari?

Contrastando as definições do dicionário Aulete Digital (2015), notamos que catador e varredor apresentam uma mesma sintaxe mínima, seja na categoria de “adjetivo” (“que cata” e “que varre”), seja na categoria de “substantivo” (“Aquele que cata”, “Pessoa que varre”):

catador
(ca.ta.dor) [ô]
a.
1. Que cata.
sm.
2. Aquele que cata (catador de papel). (AULETE DIGITAL, 2015)

varredor
(var.re.dor) [ô]
a.
1. Que varre
sm.
2. Pessoa que varre; GARI: Chame o varredor para limpar a calçada.
[F.: varre(r) + -dor.] (AULETE DIGITAL, 2015)


Todas as definições apresentam pronome indefinido “que” e um verbo significando uma ação. Varrer evoca a imagem do indivíduo limpando a rua com uma vassoura. Catar, um indivíduo recolhendo manualmente objetos reaproveitáveis.

É a atividade (varrer, catar) que traz uma significação lexical e não o sujeito. E este último não é significado como um profissional, mas sim como um anônimo urbano: qualquer um pode catar ou varrer. O pronome “aquele” e o nome “pessoa” poderiam ser substituídos por outros nomes determinantes de subjetividades, mas isso é deixado em silêncio, aberto a um campo discursivo.

Veja-se agora a relação com lixeiro e gari, que são definidos no mesmo dicionário como atividades profissionais:

lixeiro. 1. Profissional encarregado de recolher e transportar o lixo; GARI” (AULETE DIGITAL, 2015)

gari. 1. Bras. RJ Funcionário do município, ou contratado por organismo público ou privado, para fazer e conservar a limpeza das ruas; varredor de rua.
[F.: Do antr. Aleixo Gary, antigo responsável pela limpeza das ruas do Rio de Janeiro.] (AULETE DIGITAL, 2015)

As duas definições trazem hiperônimos que marcam a relação de trabalho (profissional, funcionário do município). Há também os verbos “encarregado”, em lixeiro, e “contratado”, em gari. Assim, enquanto o catador e o varredor aparecem em atividades naturalizadas, lixeiro e gari estão envolvidos em um contrato social que aparece como realizado anteriormente ao momento da enunciação (posição de empregador), de modo que a relação trabalhista de empregado fica bem marcada na definição.

O verbete gari liga ainda esse nome ao de um “antigo responsável pela limpeza “ (Aleixo Gary), de maneira a produzir um sentido de identidade para o trabalhador, uma memória comemorativa da profissão, que se apoia em um nome distinto do termo oficial, um nome de um trabalhador.

O termo lixeiro é considerado muitas vezes como “preconceituoso”, seja por significar a “sujeira”, seja pelo sentido de um trabalho serviçal ou indigno. Mais recentemente outros termos têm surgido e sido adotados para nomear as profissões de limpeza pública, como “agente ambiental”, “agente de limpeza” e “coletor”. Vejamos a ocorrência dessas palavras em uma manchete de jornal:

“Cães 'lixeiros' ajudam na coleta em São José dos Campos; veja o vídeo. Cachorros percorrem cerca de 14 quilômetros com os agentes ambientais. Segundo coletores, a relação com os animais é de companheirismo.” (GLOBO, 2015)

Nessa manchete a palavra lixeiro só é utilizada para significar o animal, o cão, e mesmo assim entre aspas, com a indicação de uma distância enunciativa. Enquanto isso, “agente ambiental” é o nome atribuído aos sujeitos que exercem essa profissão e "coletor" tende a significar a atividade de coleta, no interior de um discurso ecológico.

São pequenos deslizamentos de sentido de um nome a outro, que colocam em jogo a presença, ausência ou indistinção da relação de trabalho, bem como o estatuto dessa relação e sua sustentação em um ou outro discurso (trabalhista, ambiental, cotidiano, moral, etc.)

 

Bibliografia

AULETE DIGITAL – O DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: http://www.aulete.com.br. Acesso em 17 de março de 2015.

JORNAL G1. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2012/12/caes-lixeiros-ajudam-na-coleta-em-sao-jose-dos-campos-veja-o-video.html. Acesso em 01/04/2015)








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