O dicionário é um observatório do aparecimento de neologismos na história, sobretudo aqueles que se estabilizam na língua. Considerada isoladamente, uma palavra nova é uma singularidade, mas quando ela se encaixa em uma série e essa série é remetida a certas condições sócio-históricas, ela se torna uma regularidade linguístico-discursiva. É o que acontece com a palavra arruaceiro, pois ela surge juntamente com outras palavras que significam os sujeitos como desordeiros ou como moralmente desqualificados (rueiro) e os acontecimentos também como sinais de desordem ou conflito (arruaça).
Em uma pesquisa que tomou como corpus oito dicionários de língua portuguesa desde R. Bluteau (1712-28), percebemos que no dicionário de Laudelino Freire (1939-44) aumentou a ocorrência de derivados da palavra rua que significavam sujeitos ou acontecimentos desordeiros. Além disso, observando no prefácio desse dicionário a menção a um sentido pejorativo de povo, como plebe , patuléia ou patuscada, concluímos que se trata de um mesmo discurso em que as palavras estavam ancoradas na primeira metade do século XX: o de uma visão depreciativa de povo, na medida em que as camadas populares ganhavam uma ascenção e ao mesmo tempo sofriam discriminações sociais (NUNES, 2013, p. 161-62).
Assim, a palavra arruaceiro, ao lado de muitas outras que significam os sujeitos populares, forma uma série que orienta sentidos para um espaço público cada vez mais diversificado e ao mesmo tempo conflituoso, perigoso, excludente. Podemos dizer que essa série continua a ser produtiva atualmente, mas os elementos vão sendo substituídos e, no mesmo momento em que, após longo declínio do espaço público, os sujeitos decidem voltar para a rua (“ir para a rua”, “manifestações de rua”, o “povo na rua”, etc.), destacam-se palavras como “marginal”, “terrorista”, “vândalo”, “ativista”, dentre outras, para significar uma parte considerada “perigosa” desses sujeitos, e nesse caso não se trata de um ou outro sujeito empírico, mas de sentidos que circulam mais amplamente na sociedade.
Bibliografia
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa: Colégio das Artes da Companhia de Jesus. 1712-1728.
FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: A Noite, 1939-44.
NUNES, J. H. . A invenção do dicionário brasileiro: transferência tecnológica, discurso literário e sociedade. Revista Argentina de Historiografia Linguistica, v. 5, p. 159-172, 2013.