lembranças escolares

Mariza Vieira da Silva

Não sei, não. Essa coisa de memória é esquisita. Não tem verdade nem mentira, fica tudo guardado no mesmo lugar de onde vem o sonho e a gente não sabe o que é sonho e o que é realidade, o que aconteceu e o que a gente inventou.
(Trajetos de José Rubem Siqueira, 2002, p. 31)

 

Velhos colegas daquele tempo, / onde andam vocês?
Sempre que passo pela casa / me parece ver a Mestra, / nas rótulas. / Mentalmente beijo-lhe a mão. / “- Bença, Mestra.” / E faço a chamada de saudade / dos colegas:
Juca Albernaz, Antônio, / João de Araújo, Rufo. / Apulcro de Alencastro,/ Vítor de Carvalho Ramos. / Hugo de Tropas e Boiadas. / Benjamim Vieira. / Antônio Rizzo. / Leão Caiado, Orestes de Carvalho. / Natanael Lafaiete Povoa. / Djalma e Breno Guimarães. / Breno – “Escuto e tua voz vai / se apagando com um dolente ciciar / de prece.”/ Alberico, Plínio e Dante Camargo. / Guigui e Minguito/ de Totó dos Anjos. / Zoilo Remígio. / Zelma Abrantes. / Joana e Mariquinha Milamexa. / Marica, Albertina Camargo. / Zú, Maria Djanira, Adília. / Genoveva, Amintas e Teomília. / Alcides e Magnólia Craveiro. / Pequetita e Argentina Remígio. / Olímpia e Clotilde de Bastos. / Luisita e Fani. / Nicoleta e Olga Bonsolhos. / Laura Nunes. / Adélia Azeredo.
Minha irmã Helena. / (eu era Aninha. / Velhos colegas daquele tempo... / Quantos de vocês respondem / esta chamada de saudades / e se lembram da velha escola.
E a Mestra?... / Está no Céu. / Tem nas mãos um grande livro de ouro/ e ensina a soletrar / aos anjos.
(Poemas dos becos de Goiás e estória mais, de Cora Coralina, 1965, p. 21-22)

 

Augusto. Você não era bom aluno, eu me lembro. Nem eu. Acho que nenhum de nós levava a sério aquilo que nos impunham. Eram besteiras, em dúvida. De vez em quando, aparecia alguma coisa. Lembra da aula de literatura, quando cada equipe apresentou um trabalho? Minha equipe fez LUCÍOLA. Eu fui a própria, a prostituta inteligente, e “carreguei” na maquiagem e no complexo. Seus olhos brilhavam, sentado na terceira carteira, quando eu entrei com o vestido de debutante da minha irmã e rímel me fazendo pesar o olho, como se andasse chapada de ópio... vi as fotos depois. Não estava mal, apesar dos olhos. Mas, daquela apresentação, eu me lembro de você. Da sua risada, que marcava a bochecha com uma covinha. Do jeito de você me olhar. E o seu jeito de ficar corado. Nunca vi homens que ficassem vermelhos, na minha memória você é único nessa difícil técnica de ficar vermelho...
(Velho papo de e-mails e confidências, de Márcia Kupstas, 2002, p. 82-83).

 

No dia em que fiz nove anos, irmã Celina não me chamou, nem fez sinal algum. Me deu um embrulho cor-de-rosa, pequeno, arredondado. Disse pra abrir com cuidado, quebrava. Nem borracha, nem plástico, pensei. Abri com cuidado e carinho, como se abrisse o caderno das aulas noturnas de caligrafia. Um barulhinho metálico me cochichou que aquilo tinha voz. Olhei de um lado, de outro, confessei: não sabia o que era. Nunca tinha visto nada igual, nem semelhante, em minhas andanças por quintais e currais da fazenda. Menos ainda em minha única passagem pelo Rio das Mortes, pelos trilhos do trem da estação de Nazareno, ou pelas ruas de São João del-Rei, testemunhas oculares de tantas histórias antigas.

- É um caleidoscópio, ela disse, com um sorriso cúmplice. Pra você não ficar triste, não sentir saudade dos bicos.

Ela sabia que eles [os bicos] estavam lá, ao alcance das minhas mãos, mas longe de mim. Um texto pelo avesso.
(Hoje tem arco-íris, de Vivina de Assis Viana, 2002, p. 126-127)

 

No pátio, esperavam-nos os veteranos. Na sombra das árvores, cuspindo dentre os dentes; atirados nos bancos de cimento, cara feia; caminhando todos cheios de balaca, queixo alevantado.
Estávamos, três ou quatro dos pequenos, olhando os peixes vermelhos no laguinho, quando eles se aproximaram, sem pressa, se fazendo de sonsos, e, sem uma palavra, nos empurraram. Por um momento, ainda nos seguramos, uns nos outros, aturdidos, tentando manter o equilíbrio. Para eles, isso era justamente o mais engraçado, porque sabiam que acabaríamos caindo todos, juntos, de cambulhada, como um bando de bêbados na saída de um baile.
Lutei muito para não cair. Já estava molhado até o meio das canelas, mas não queria ir de bunda na água. Eu só pensava na minha calça nova de vinco bem frisado. Não adiantou. O fundo do laguinho, azulejado, estava esverdeado de limo escorregadio.
Então, desabamos, de roldão.
Os peixinhos – mal saídos da tranquilidade dos meses de férias – procuraram abrigo entre as pedras do meio do lago, enquanto chorávamos e os veteranos gargalhavam.
(Volta às aulas, de Lourenço Cazarré, 2002, p. 59-60)

 

Na virada do século XX, minha mãe, depois de prometida em casamento ao meu pai, que era evangelista, foi enviada à recém-fundada Escola para Moças Santa Mônica, no nosso distrito, a primeira do seu tipo no território igbo. Como favor especial, foi morar na casa da diretora, Miss Edith Ashley Warner, e de seu pequeno grupo de professores de inglês, cuidando dos afazeres domésticos em troca de educação e sustento. [...]
Uma noite, ela [Miss Warner] disse à minha mãe para comer a comida no prato e depois lavá-lo com cuidado. Parece que ela estava aprendendo o idioma igbo e o usou nessa ocasião. Ela disse: “Awakwana afele”, que deveria significar “Não quebre o prato”, só que os verbos igbo às vezes são bem complicados. Minha mãe não se conteve e deixou escapar uma risadinha mal reprimida, o que foi um grande erro. Aquela dama vitoriana não achou a mínima graça. Pegou um enorme pedaço de pau e deu-lhe uma tremenda surra. Mais tarde, chamou-a e lhe deu um sermão sobre boas maneiras: “Se eu falar errado seu idioma, você deve me dizer qual a maneira certa; mas é errado rir de mim”, ou algo do gênero.
Ouvi minha mãe contar essa história muitas vezes, e toda vez ríamos de novo, pois “Awakwana afele” é uma maneira de falar de bebezinhos, que soa absolutamente hilária.
( A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico de Chinua Achebe, 2012, p. 19)

 

 

Escola: um espaço-tempo de lembranças que se tornam memoráveis para o sujeito urbano escolarizado. Viver, reviver; lembrar, esquecer: formulações móveis distintas, dispersas, deslocadas, invertidas, opostas, que se materializam em lembranças, em laços pessoais, em impressões e sensações, em remissões a uma cena enunciativa primeira, em que se encontram, sempre unidos, memória e esquecimento. Escola: um espaço do repetível em que se constroem os já-ditos, e com eles uma estabilidade referencial para as coisas e as pessoas no domínio da memória.

 

Referências bibliográficas

ACHEBE, C. A educação sobre o Protetorado Britânico. In: A educação sobre o Protetorado Britânico: Ensaios. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, 13-33.

CAZARRÉ, L. Volta às aulas. In: FALCÃO, A. et al. Histórias dos tempos de escola: memória e aprendizado. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, 55-66.

CORALINA, C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1965.

KUPSTAS, M. Velho papo de e-mails e confidências. In: FALCÃO, A. et al. Histórias dos tempos de escola: memória e aprendizado. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, 77-86.

PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Pepl da memória.  Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999, 46057.

SIQUEIRA, J. R. Trajetos. In: FALCÃO, A. et al. Histórias dos tempos de escola: memória e aprendizado. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, 29-54.

VIANA, V. de A. Hoje tem arco-íris. In: FALCÃO, A. et al. Histórias dos tempos de escola: memória e aprendizado. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, 117-128.

 








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