A crise democrática e a infocracia





A crise democrática e a infocracia

The democratic crisis and the infocracy

 Mariana Marques de Lima[1]

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4010-9225

Resumo: A resenha tem por objetivo apresentar a obra do filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, Infocracia: digitalização e a crise da democracia. O autor argumenta que a ascensão da infocracia, um sistema baseado em informações digitais, deteriora os fundamentos basilares da democracia. Han preconiza que a digitalização, por meio das redes sociais, promoveu a fragmentação da opinião pública, facilitando a propagação de desinformação e polarização a partir do que denominou de tribos digitais. Desta forma, a proliferação de algoritmos e a coleta massiva de dados resulta numa sociedade de vigilância que opera pela coleta de dados e informações.

Palavras-chave: Infocracia, Democracia, Algoritmos, Dados, Redes sociais.

Abstract: The review aims to present the work of the South Korean philosopher, Byung-Chul Han, Infocracy: digitalization and the crisis of democracy. The author argues that the rise of infocracy, a system based on digital information, deteriorates the foundations of democracy. Han advocates that digitalization, through social media, has promoted the fragmentation of public opinion, facilitating the spread of fake news and polarization from what he called digital tribes. Thus, the proliferation of algorithms and the massive collection of data results in a surveillance society that operates by collecting data and information.

Keywords: Infocracy, Democracy, Algorithms, Data, Social media.

Dividido em cinco capítulos, o livro Infocracia: digitalização e a crise da democracia, de Byung Chul-Han, dá continuidade a uma série de obras que têm o intuito de analisar a sociedade contemporânea em vista do avanço da tecnologia, e da consequente utilização das redes sociais e do desenvolvimento de inteligências artificiais generativas. O texto analisa os impactos desse processo em uma sociedade marcada pelo uso desses dispositivos comunicacionais que efetivamente transformaram os processos democráticos e promoveram, como menciona o autor, o “declínio da esfera pública democrática”, pela interferência na capacidade cognitiva, e até mesmo na descredibilização dos fatos.

Se debruçar sobre o entendimento da sociedade ocidental em face a múltiplas questões fomentadas pelo uso da tecnologia não é novidade para o filósofo. Em suas obras precedentes, percebemos um exercício constante em entender os múltiplos elementos que compõem as transformações sociais no que tange ao poder, à democracia e à verdade. Logo, para que possamos compreender seu conceito de infocracia, é necessário que de antemão façamos um pequeno retrospecto de seus conceitos anteriormente trabalhados, pois eles dão a tônica para esta obra atual e complementam a análise.

Em Sociedade do Cansaço (2015), o autor diagnostica uma condição social contemporânea caracterizada pela prevalência da exaustão física e mental. As pessoas não são mais controladas pela coerção externa, como nas sociedades disciplinares, mas sim pela autoexploração e pela busca incessante por produtividade e sucesso. Recorrente em suas obras, o termo foucaltiano sociedade disciplinar (Foucault, 2014) é apresentado por Han na delimitação das diferenças existentes entre a sociedade contemporânea atual e a disciplinar. Sendo a primeira marcada pela exposição de indivíduos que são, ao mesmo tempo, ocupados e, constantemente conectados e disponíveis; e a segunda, por uma sociedade composta de instituições, como escolas, prisões, hospitais e fábricas, que exercem um controle rígido sobre os indivíduos, impondo regras, normas e hierarquias.

É nesse paralelo que o autor explica as características desses indivíduos sem tempo para descansar ou refletir, e que ainda se voltam para uma busca infindável e autoimposta por eficiência. Ocasionando na intensificação de um estado de cansaço, num pano de fundo em que as fronteiras entre trabalho e lazer estão cada vez mais difusas. Isto posto, a cultura do cansaço pode promover uma série de consequências patológicas e muito percebidas na sociedade atual, como depressão, ansiedade e o burnout.

Na obra Sociedade da transparência (2017), Byung-Chul Han explica como a exposição voluntária de informações pessoais, majoritariamente feita nas redes sociais, também diluem o que se entende por questões públicas e/ou privadas. Tal sociedade é marcada pelo compartilhamento de experiências privadas, detalhes íntimos de suas vidas que visam o reconhecimento, a validação e um sentimento de pertencimento. Neste contexto, a transparência se tornou a nova norma social, enquanto a privacidade se mostra como prescindível ou mesmo suspeita. Nesse aspecto, apesar das vantagens da sociedade da transparência, como a democratização da informação, a conexão entre pessoas e a proximidade, os aspectos negativos podem ocasionar a perda de autonomia e individualidade acarretados pelo constante monitoramento e controle por parte das empresas e instituições que detém os dados. Logo, a pressão por se expor pode ter como consequência a sensação de vazio e de alienação.

Este panorama serve como base para entendermos sua nova obra, pois, em linhas gerais, Han elucida que infocracia representa uma mudança significativa na estrutura de poder da sociedade contemporânea, onde o controle e a influência são exercidos não apenas por meio de instituições tradicionais, como na sociedade disciplinar, mas sim pelas nossas informações que são exploradas, a partir da vigilância dos dados. Para chegar neste ponto, o filósofo nos apresenta no primeiro capítulo a noção de Regime da Informação, que corresponde a “forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos” (Han, 2022, p. 7). Em confluência com o entendimento de sociedade transparente, as pessoas não são obrigadas à visibilidade panóptica, mas sim se empenham por si mesmas à visibilidade, logo, a “transparência significa a política de se tornar visível do regime da informação” (p. 14).

Desta maneira, a dominação do regime da informação, que se configura como uma faceta do capitalismo da informação e da vigilância, é praticamente imperceptível, pois, conforme o autor reforça, ela se funde completamente ao cotidiano dos indivíduos. Haja vista que é “encoberta atrás da complacência das mídias sociais, da comodidade das máquinas de busca, das vozes embalantes das assistentes de voz ou da oficiosidade prestativa dos smart apps, os aplicativos inteligentes” (p. 16).  Assim, Han destaca que as mídias digitais são as responsáveis por produzirem a dominação da informação. E neste cenário, quem visa o ganho de poder, deve, portanto, estar em posse de informações, já que são elas que garantem a dominação.

Dando prosseguimento à sua análise, o segundo capítulo se inicia identificando que a democracia se deteriorou em infocracia, devido à intensificação da comunicação e informação ocasionada pela digitalização do mundo. A democracia e, por conseguinte, a política se submetem ao entretenimento, transformando-se em telecracia, pois as “notícias se tornam similares a uma narrativa. A distinção entre ficção e realidade desaparece” (p. 29). Portanto, há um apagamento dos argumentos em favor da performance, sendo que o autor chama atenção para o processo de propagação viral da informação, intitulado de infodemia, que se torna um sintoma latente desses tempos. As informações são utilizadas como armas, e as redes sociais, o palco performático desse cenário, haja vista que as imagens são mais rápidas que textos, e isso contribui para a erosão dos processos democráticos. Em razão disso, Han comenta que tuítes e vídeos curtos não contemplam a coerência lógica, características de argumentos e fundamentações dos discursos.

Nos demais capítulos, o filósofo discute a crise da ação comunicativa que, em seu entender, acarretou no processo de desintegração da esfera pública democrática. Tal crise é propiciada pela personalização algorítmica e pela alimentação dos Filter Bubble (filtros-bolha), equivalentes às máquinas que “geram prognósticos que projetam e refinam initerruptamente uma teoria sobre sua personalidade e que preveem o que você quer e fará a seguir. Juntas essas máquinas produzem um universo de informações completamente próprios para cada um de nós” (Han, 2022, p. 53). Dessa forma, quanto mais tempo a pessoa permanece on-line, mais os filtros-bolha são preenchidos com informações que somente certificam suas preferências e convicções. Han ressalta que os filtros-bolhas alteram a forma como o conhecimento chega aos indivíduos e os envolvem num permanente “looping-do-eu”, ocasionando uma ruptura na experiência do mundo e da crescente narcisização.  Com isso, dois fatores relevantes para a crise da democracia se sobressaem: “o desaparecimento do outro e a incapacidade de ouvir atentamente” (p. 55).

Perante esse quadro, o ator demonstra que houve uma desfatualização da vida, isto é, “o desaparecimento de uma facticidade da vida mundana” que contribui para a dificuldade da comunicação orientada ao entendimento, pois a digitalização bem como a conexão agilizam a desintegração do mundo e, em contrapartida, constroem um “mundo da vida baseado na rede”, que ele intitulou de tribos digitais. “A tribalização da rede como refatualização do mundo da vida é propagada sobretudo no campo da direita, no qual é maior a necessidade de identidade do mundo da vida” (Han, 2022, p. 58). As tribos fomentam o fortalecimento de experiências de identidade e pertencimento, onde os fatos não são importantes para esses indivíduos, o que prevalece é o entendimento de identidade do grupo.

O crescimento da tribalização traz uma ameaça alarmante ao processo democrático, escapando da dimensão do outro. Quem está fora da tribo pode ser entendido como inimigo, e assim, ferindo a racionalidade comunicativa, que transaciona para uma racionalidade digital, sendo o discurso substituído por dados. “A racionalidade digital substitui o aprendizado discursivo pelo machine learning, pelo aprendizado das máquinas. Algoritmos pantomimam, portanto, argumentos” (Han, 2022, p. 66).

Ao longo de todo seu percurso discursivo, Byung Chul Han finaliza seu raciocínio alertando para a crise da verdade, na qual a crença da facticidade foi perdida. “Na era das fake news, desinformações e teorias da conspiração, a realidade com suas verdades factuais, se nos extraviou. Passam a circular, então informações totalmente desacopladas da realidade, formando um espaço hiper-real” (Han, 2022, p. 81). Em seu entender, a crise da verdade se propagou justamente nas tribos digitais, trazendo um sintoma pungente nessa nova sociedade, o novo niilismo, em que as diferenças entre mentira e verdade foram apagadas.

A obra Infocracia nos apresenta um panorama preciso e preocupante da digitalização e suas consequências já percebidas nos processos democráticos, e nos quais são visíveis no contexto político brasileiro.  No livro, o autor ilustra seus argumentos a partir de exemplos como as falas do ex-presidente estadunidense Donald Trump, entretanto, suas considerações podem ser enquadradas em variados contextos. Em vista da perda da factualidade destacado por Han, o jornalista Roberto Feith (2021) alerta que a crise do jornalismo é também uma crise da democracia, pois vivemos num período de “relativização de conceito de verdade, da informação baseada em evidências”, já que “sem um sentido compartilhado do que constitui um fato não há futuro nem para democracia e nem para a imprensa” (Feith, 2021, p. 8).

A jornalista Patrícia Campos Mello, em seu livro A Máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake News e a violência digital (2020), nos apresenta as consequências concretas no cenário brasileiro do processo apresentado na análise filosófica de Byung-Chul Han. Mello (2020) expõe os bastidores da sua apuração de uma série de reportagens acerca do financiamento de disparos em massa no Whatsapp e demais fake News, que beneficiavam o então candidato à presidência em 2018, Jair Bolsonaro. Ela discute que a versão moderna de autoritarismo não vê a necessidade de censurar a internet, já que ela funciona como um recurso, onde cada pessoa despeja a versão dos fatos de acordo com seu interesse, abafando outras narrativas, inclusive fatos reais (Mello, 2020, p. 23). Assim, conforme Han (2022) vaticinou ao relatar a crise da verdade, Mello (2020, p.49), explica que “a revolta contra os ditos experts, o desprezo pelos acadêmicos, especialista ou jornalistas, é uma das características de nosso mundo tecnopopulista”. Este último termo advém de sua leitura de Giovanni Da Empoli, que explica que uma das facetas do populismo atual é privilegiar “valores ou concepções de mundo previamente dadas em detrimento de conhecimento” (apud Mello, 2020, p. 49).

Por fim, a análise de Byung Chul-Han num primeiro momento pode parecer bastante alarmista e pessimista, porém em meio ao crescimento de governos populista de extrema direita, que privilegiam a proliferação de desinformação e a manipulação das redes sociais, é premente que a sociedade contemporânea se atente para os efeitos concretos e danosos a autonomia e a liberdade de vontade. E assim, privilegiando a construção de ação coletiva e principalmente da reflexão crítica, com a finalidade de mitigar os impactos negativos da infocracia e fortalecer os valores democráticos.


 Referências

FEITH, Roberto. Apresentação do editor. Caio Túlio; et al; Tempestade Perfeita: sete visões da crise do jornalismo profissional. Rio de Janeiro: História Real, 2021.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022

MELLO, Patrícia Campos. A Máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake News e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.


Data de Recebimento: 08/04/2023
Data de Aprovação: 25/05/2023

 

[1] Jornalista. Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: marit.mlima@gmail.com