Os jornais e a construção dos sentidos e representações da cidade


resumo resumo

Miranice Moreira da Silva



Introdução

A produção deste artigo é fruto do exercício de pensar o trato com as fontes, especificamente o jornal impresso, na produção de significados daquilo que é noticiado. Tal reflexão está inserida no trabalho de pesquisa sobre territorialidades e sociabilidades na micareta de Feira de Santana. A inquietação para compor esse artigo surgiu a partir de uma série de leituras e diálogos sobre o historiador e suas fontes. A partir de então, formulou-se a pergunta que orienta essa empreitada: o que dizem os jornais?

Em um ensaio a essa resposta – assume um caráter experimental porque acredito que esta não seja uma tarefa finita; é preciso rever a todo o tempo para perceber outras possibilidades de leituras das fontes – foi recortado um exemplar do Jornal Feira Hoje1 de 1981, que tem como principal foco o relato jornalístico do primeiro dia da festa. Analisei a capa e uma série de notícias que, agrupadas, apresentaram os preparativos da festa; onde as intenções e expectativas foram exibidas.

Nessa perspectiva, pautada em Chartier (2004, p.22), as festas se retiram de uma tradição meramente narrativa, possibilitando ao ofício historiográfico compreender a organização social dos sujeitos que festejam. Nesse momento, as regras e os códigos sociais também estão impressos, sobretudo, nas preocupações normativas e no estabelecimento de modelos. O contexto de 1981 deve ser apresentado minimamente, bem como o contexto de produção da fonte analisada. O final da década de 1970 e a primeira metade da década de 1980 marcaram o início da ressignificação do trio elétrico como protagonista dos festejos carnavalescos em uma perspectiva do moderno e da urbanidade; aspecto que será retomado mais adiante. Quanto ao contexto de produção da fonte, o Jornal Feira Hoje era de um periódico alternativo à tradicional Folha do Norte 2. Criado na década de 1970, nos anos 1980 chegou ao ápice de sua existência, com circulação diária; a assumir o lugar de periódico mais importante da cidade. Extinto em meados dos anos 1990, retornou suas atividades após um hiato em versão digital. O Recorte para o ano de 1981 justifica-se por perceber, a partir do comparativo dos registros dos anos anteriores, que é a primeira vez que os trios aparecem, grafados, como os donos da festa, sem os quais a micareta seria impossível de acontecer.

As perspectivas metodológicas abarcam muitas contribuições. A primeira delas é que a fonte é inesgotável, aspecto fortemente defendido por Prost (2008), isso porque se uma outra questão for lançada, sob um mesmo documento, pode-se extrair interpretações diferentes, que não invalidam as interpretações anteriores (Gadamer, 2012). Além da concepção da infinidade das possibilidades de uma fonte, há que se atentar para não confundir os espaços de experiências, o que significa compreender a fonte no seu “estrato do tempo” (Koselleck, 2012). Isso significa compreender que determinado documento foi produzido em um tempo histórico, no caso específico dos jornais, para comunicar algo a um público pertencente a esse estrato histórico (Koselleck, 2014). Nessa perspectiva, o autor defende considerar o contexto antropológico das experiências analisadas. Preocupação também defendida por Gadamer (2012), ao indicar que não se deve confundir os hábitos linguísticos em uma interpretação. O exercício em analisar os jornais é compreender as representações que se tinha da cidade e da sociedade no tempo histórico recortado.

Esses referenciais mostram sua efetividade no desenvolvimento da prática da pesquisa; onde estarão diluídos na interpretação das fontes, na forma de lê-las. Para isso, buscou-se no desenvolvimento do artigo a interpretação do que foi dito ao dizer aquilo que se disse (Skinner, 2005, p.13). O que seria buscar as intenções de quem produziu a notícia. Em um diálogo com o campo da comunicação, analisar o que é publicizado e propagado a partir de um veículo de comunicação de ampla abrangência. A estratégia para isso foi a leitura em conjunto das narrativas: a forma e o conteúdo e a observação da construção da notícia. O que traduz em uma constante procura de uma maturidade para criticar o documento; uma busca pelas intenções, confessadas ou não (Skinner, 2005).

Nessas perspectivas, o texto foi dividido em duas partes. A primeira sobre forma e conteúdo, na qual o objetivo é perceber que a forma como as notícias são apresentadas ajuda a construir um significado e reafirmar o seu conteúdo. Isso foi feito a partir da análise da capa do editorial. A capa foi reproduzida no texto como imagem, pois essa é a primeira relação que é estabelecida com o leitor, a imagem da capa que o convida à leitura.

A segunda parte é dedicada à construção das notícias; analisando como as coisas são ditas, o que é silenciado dentro de uma ação conjunta que imprime sentido a festa, que a representa. A análise foi feita a partir de uma série de notícias que tratavam sobre os preparativos da festa; desde a ação da Secretaria de Desenvolvimento Comunitário, passando pelas atividades da Secretaria de Serviços Urbanos e finalizando com o planejamento das autoridades policiais. Por se tratar de uma explanação dos planejamentos, é possível ler os projetos de cidade e festa nas projeções do que viria a ser. Além disso, a percepção do jornal como um agente que também constrói uma representação de cidades e de festa.

 

A forma e o conteúdo

Os jornais impressos constituem um conjunto de notícias com circulação diária ou semanal. Esse conjugado de informações não é disposto de forma aleatória; estes são pensados dentro de uma lógica que pode ser observada a partir da organização das manchetes, construídos a partir de uma concepção editorial. Para isso, faz-se necessário perceber, sobretudo, o lugar do objeto de pesquisa dentro dessa lógica documental. Essa seção discutirá a lógica da organização das manchetes e como elas revelam o conceito e as intenções. Demonstrar, através da análise das fontes, que a forma como as notícias são apresentadas reafirma o seu conteúdo; mais que isso, reforçam-se as intenções.

O documento recortado para essa análise circulou na cidade na manhã que antecedeu a micareta de 1981. O jornal Feira Hoje, com circulação diária, anunciava como manchete principal a festa que se avizinhava. Em letras de caixa alta, dizia: Agora é micareta, a hora de só brincar. O título principal do periódico se desdobrava em três reportagens: A festa dos trios; anúncio dos trios elétricos que fariam parte da festa. Coração às 11; indicativo do horário de coroação das princesas, rainha e rei Momo. Primeiros bailes; referência aos clubes da cidade que ofereciam bailes micaretescos.

Compreender a relação entre o lugar que ocupa a manchete dentro do conjunto de notícias do jornal é fundamental no entendimento da articulação de significados e impressão de percepções de mundo. Nessa perspectiva, a observação da primeira página do jornal, lugar onde os editores apresentam o resultado de uma compreensão dos fatos e atrai os seus leitores/consumidores, torna-se o primeiro passo para a compreensão dos sentidos construídos.

Ao recortar a capa do jornal e apresentá-la como fonte imagética (Imagem 1), tem-se por intenção perceber o que era visualizado pelos citadinos em Feira de Santana em 1981; tanto os que compravam o jornal, quanto aqueles que liam apenas as manchetes expostas nas bancas. Responder com isso quais intenções e percepções eram apresentadas a partir dessa disposição de notícia.

Cabe nesse momento uma pequena digressão para tratar do que se entende por divulgar a capa do jornal para se aproximar do que aqueles citadinos viam. Não se trata de ver como as pessoas viram em 1º de maio de 1981 as manchetes daquele dia, não é possível ter a mesma experiência, do ponto de vista antropológico; isso seria impossível. Como afirma Koselleck (2002) os espaços de experiências devem ser considerados em uma interpretação histórica, e por se tratar de estratos do tempo diferentes; não temos as mesmas experiências. Recorrendo a Ginzburg, podemos chegar muito perto do nosso objeto, tal qual o fez com o Menocchio (Ginzburg, 2006). Entretanto, esse exercício sempre será uma das múltiplas possibilidades de interpretação, que analisa as representações sobre algo. Feita essa menção, retoma-se o objeto.

Não se pode acessar o passado tal qual aconteceu, mas podemos ter contato com as representações que se desejava construir. A capa do jornal, principalmente como uma imagem, está aliada à lógica da comunicação de publicidade e propaganda. Não é por acaso que as bancas de jornais têm como lugar estratégico os pontos de maior circulação de pessoas: pontos de ônibus, estações de trens e metrô, avenidas e ruas muito movimentadas. Essa escolha tem relação direta com a demanda mercadológica, mas também garante que um número maior de pessoas tenha uma leitura, mesmo que rápida e imagética, daquilo que se deseja propagar. Inclusive, o artifício de usar imagens e transformar a capa em uma grande fotografia das notícias garante que seja lida por pessoas que não tiveram acesso à alfabetização. A partir dessas reflexões, objetivo a imagem abaixo.

 

Imagem 1: Jornal Feira Hoje. Feira de Santana. 1º de maio de 1981. Ano XI. Nº 2076

Fonte: Jornal Feira Hoje, 1981.

 

A disposição das notícias é o início dentro da metodologia escolhida para a construção de sentidos; perceber o significado do conjunto daquilo que está sendo analisado. Observar o conjunto, as partes e voltar ao conjunto (Darton, 2006) nos permite analisar em que contexto o objeto de pesquisa está inserido. O jornal está dividido em dois planos. O primeiro, localizado acima, é dedicado unicamente à festa da micareta. O Segundo, abaixo, trata dos assuntos ordinários da cidade. A cultura ocidental tem uma lógica de leitura na qual é organizada da esquerda para a direita, de cima para baixo. Nessa perspectiva, a forma como o conjunto está disposto indica o que é mais importante de ser lido aparece sempre em primeiro plano. Os jornais também ordenam a leitura, e isso tem importância na leitura dessa fonte. A escolha da informação que vem primeiro e a sequência não é algo aleatório.

A organização da capa pode ser lida à luz do contexto dos anos de 1980. Essa década foi marcada por muitas transformações urbanísticas e de sociabilidades em Feira de Santana; aspectos que reverberam na forma de conceber a festa. Havia em andamento um projeto de reformulação econômica da cidade, iniciada em 1970 com a implantação do Centro Industrial do Subaé. (Freitas, 2009) Além de uma identidade comercial, seria incluída também à dinâmica feirense o caráter industrial. Parte integrante desse projeto foi a retirada da feira-livre do centro da cidade por justificativas sanitárias e de ordenamento urbano (Pacheco, 2009), visto que a feira-livre, segundo os urbanistas da época, além de não atenderem às exigências sanitárias, atrapalhavam a dinâmica da cidade.

Esses aspectos foram apropriados pela festa, que na década de 1980 transformou o trio elétrico em símbolo de modernidade industrial e saneada. Os carros alegóricos perdiam espaço porque não tinham a agilidade e a modernidade do trio elétrico moderno, com suas luzes e amplificadores de longo alcance3. (Pacheco, 2009). Isso justifica que a notícia sobre os trios apareça como a primeira reportagem na lógica da leitura.

Além dessa primazia, o que está grafado reafirma essa lógica: Festa dos trios. Reforçava o protagonismo construído para os trios, nos quais eles eram denominados os donos da festa. Em oposição à notícia está a manchete: primeiros bailes. Antagônicas tanto pela disposição na página quanto pela concepção e prática do festejar. Os bailes, realizados em espaços de sociabilidades privados como os clubes e em sedes das filarmônicas, foram uma das características principais da micareta na década de 1970. Esses bailes, com divulgação nacional, fundamentaram o slogan estampado nas manchetes dos jornais de melhor e maior micareta do Brasil. Marcados pela realização de desfiles de fantasias bem como a premiação; onde a classe média e as elites feirenses festejavam a micareta. Modalidade, que na ocasião da capa, que agora é analisada, começou a perder espaço para os blocos privados, com indumentária produzida em escala industrial e uniformizada.

A festa dos blocos, puxados pelos trios elétricos, levou para as ruas da cidade uma percepção do privado, visto que os blocos são desde então isolados e tinham sua diferenciação social e espacial garantida mediante a utilização das cordas. A disposição dessas notícias ajuda a construir esses significados: “modernos” versus o “ultrapassado”.

Ainda dentro da temática do primeiro plano, duas manchetes, aparentemente deslocadas, também estão relacionadas ao título principal: Marginais presos e copos só de plástico. Aparentemente deslocadas porque em seu enunciado não há indicação com a prática festiva. Entretanto, há relação com a ênfase no título só brincar. Esse fragmento deixa margem para o entendimento de que não era apenas brincadeiras o que acontecia durante os folguedos. E para garantir que apenas as brincadeiras tomassem conta da avenida, as ações preventivas e prisões, do que eles estavam chamando de marginais, eram realizadas. Mas esse aspecto será aprofundado no tópico seguinte.

No segundo plano da imagem da capa, separados pela identificação do jornal, estão os demais assuntos, as questões ordinárias: esporte, infraestrutura e educação. Essa acomodação organiza o mundo, a promover a divisão que Bakhtin chamou de dois mundos.

 

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio (...) ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo, uma segunda vida (Bakhtin, 2008, p. 4).

 

O festejo é colocado à disposição do jornal, de forma separada dos dias normais; seguindo uma lógica que permaneceu desde a Idade Média e que foi recortada por Bakhtin. Todavia, o autor atenta para a necessidade de pensar a dualidade dos mundos; eles estabelecem uma ligação. As preocupações ordinárias compõem a festa. Isso porque, como afirma Bakhtin, as manifestações carnavalescas não são só artísticas, é a própria vida apresentada como os elementos característicos da representação (Bakhtin, 2008, p. 4). Característica reafirmada por Chartier, ao destacar como as peculiaridades da festa podem ser reveladoras de outras formas de ler a história:

 

As diferenças regionais ou locais nas maneiras de encarar a significação central da prática carnavalesca dizem mais que as supostas universalidades [...] com seus rituais, seus gestos, seus objetos, ela é uma gramática simbólica que permite enunciar, um projeto político (Chartier, 2004, p.38)

 

Nesse aspecto, é importante pensar o objeto e as fontes; como as concepções de mundo representaram e inventaram uma cidade a partir da micareta. A chamada do jornal indica que era o momento apenas de festejar, mas todos os aspectos perpassam por questões além dos dias de Momo.

Essa é apenas uma forma de ler a imagem da capa. Mas um outro aspecto, que não será aprofundado neste momento, merece ser citado: a questão das ausências. Trata-se do 1º de maio. Em nenhum momento desse editorial faz-se referência às comemorações ao dia do trabalhador – data símbolo de resistência na conquista dos direitos trabalhistas. Silêncio justificado por um regime ainda ditatorial, de controle dos sindicatos instaurado em 1964. Esquecimento conveniente diante da composição de um operariado proveniente da implantação do Centro Industrial do Subaé. Assim como o burguês organizou a sua cidade em sua description interpretada por Robert Darnton (2006), os jornais também o fizeram. O silêncio, aqui, assume o caráter narrativo apontado por Ani Orlandi, que afirma: “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido” (2007, p.11). O silêncio de não citar o 1º de maio dialoga com a manchete que diz: “a hora só de brincar”, não cabe mais nada, além disso. Nesse aspecto, a forma como as notícias são organizadas, a escolha das palavras constitui uma comunicação, onde aquilo que quer ser publicizado e propagado começa a ganhar sentido antes mesmo da leitura da reportagem.

 

O Jornal como agente

Feito uma discussão acerca do lugar da notícia e de como essa organização compõe um sentido, parte-se para uma possibilidade de leitura da fonte como uma produção histórica que também constrói o objeto. A partir de então, pretende-se averiguar o que diz a reportagem, para além do que ela anuncia. Isso significa perceber uma relação do que é dito, como é dito e os significados que poderiam assumir para aquele contexto. Esse exercício deve ser feito em uma perspectiva da historicidade, na qual o contexto de produção e os estratos do tempo (Koselleck, 2014) da notícia são fundamentais.

Os dois fragmentos usados neste tópico são as notícias: “A maioria dos barraqueiros está disposta a usar copos de plásticos e a polícia se prepara para garantir cinco dias de muita tranquilidade”. Juntas, essas reportagens ocupam uma página inteira do jornal. Elas foram intermediadas por uma pequena nota, intitulada “Iniciada a operação limpeza”. Operação indicada a partir do indicativo do uso de copos descartáveis:

 

Todos os proprietários de barracas de bebidas instaladas na cidade para a micareta utilizarão copos de plásticos para a venda de bebidas em lugar de copos de vidro. Eles vão acatar a ordem da Secretária de Desenvolvimento Comunitário, no sentido de só ser utilizado copos descartáveis, por ser mais higiênico. Caso desobedeçam a ordem da Secretaria, os infratores terão suas licenças de funcionamento suspensas. (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6)

 

O conteúdo desse fragmento contradiz o título, pois não havia uma disposição dos barraqueiros em aderir ao uso de copos descartáveis. O que existiu era uma determinação municipal que, inclusive, indicava uma punição aos que desobedecessem. O Jornal amortizou isso no título ao retirar o caráter impositivo, que, ao que parece, era de concordância do periódico, pois denominou os discordantes de “infratores”. O caráter impositivo aparece no momento em que a fala de dois barraqueiros ganhou espaço. O primeiro trata-se do comerciante Hermero Alves de Brito: “Eu gosto de utilizar copos de vidro, mas como a Secretaria determinou somente o uso dos descartáveis, vou ter que utilizá-los” (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6). O “ter que usar” a partir de uma determinação desmonta por completo a ideia de disposição a algo.

Como justificativa única, defendida pela Secretaria, aparece a higiênica; uma questão de saúde pública. A mesma que fundamentou a retirada dos feirantes do centro da cidade e passaram a ser alocados no Centro de Abastecimento em 1977 (Pacheco, 2009), inclusive essa justificativa foi endossada pelo jornal. Entretanto, a fala de uma comerciante, apresentada pelo jornal, Elza Lima das Virgens, proprietária da Barraca Princesa do Sertão, afirmou que:

 

Usar copos plásticos dá um prejuízo muito grande, mas como a Secretaria proibiu os copos de vidro, o que é que nós pode fazer? (...) O folião pode chegar na barraca, pedir uma cerveja, encher o seu copo e sair, enquanto com o copo de vidro ele não pode ir para as ruas, já que a polícia proíbe (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.)

 

Ao trazer a fala dos barraqueiros, o jornal acaba por permitir a leitura das contradições do discurso, além de uma insatisfação por parte dos barraqueiros quanto aos possíveis prejuízos financeiros; gastariam mais com os copos descartáveis e com o não pagamento das bebidas. Contudo, a fala da comerciante Elza das Virgens indica que copos de vidro não eram apenas uma preocupação sanitária, a segurança pública também havia impedido; imagino que por questões diferentes. O vidro tem a possibilidade de ser utilizado como arma em alguma situação de conflito, o que provavelmente ocorria, visto a necessidade de instituir uma norma coercitiva, que indica para a necessidade de coibir uma ação indesejada.

Apesar de trazer a fala dos que estavam insatisfeitos, retoma o argumento higiênico com a seguinte informação:

 

Contudo, independente das queixas dos barraqueiros, a decisão da Secretária de Desenvolvimento foi acertada, já que há uma total falta de higiene, com a utilização de copos de vidro, pois a maioria das vezes eles são mal lavados e podem transmitir doenças contidas na boca. (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.)

 

O aspecto da proibição policial aparece apenas na fala de uma comerciante e foi desconsiderado completamente pelo jornal. O veículo retificou a justificativa da Secretaria de Desenvolvimento Comunitário. Reduziu a sanção apenas à questão higiênica, que seria o único problema da utilização desse utensílio. Finaliza inclusive a reportagem com uma recomendação aos foliões. Alertou-os para que, ao utilizarem os copos descartáveis, os inutilizassem, porque, segundo o jornal, alguns barraqueiros poderiam reaproveitá-los.

A preocupação silenciada a respeito da segurança pública no episódio dos copos de vidro aparece na segunda reportagem analisada neste tópico. Que foi intermediada por uma nota sobre a atuação da Secretaria de Serviços Urbanos, que montou uma operação espacial: Operação Micareta. Ação que visava manter a cidade limpa, em uma operação limpeza. Expressão também utilizada para a ação preventiva da polícia, que discutir-se-á a partir desse ponto.

O aspecto da institucionalização da festa foi apresentado por Chartier, ao estudar a França no Antigo Regime. Apesar de Feira de Santana dos anos 1980 e a França entre o século XVI e XVII estarem distantes espacial e temporalmente, há um elemento que contempla as duas realidades: “progressivamente, a autonomia cede lugar ao financiamento público. Daí um controle mais rígido dos itinerários cerimoniais que dão um espaço privilegiado aos lugares simbólicos da identidade e do poder urbano” (Chartier, 2004, p. 30). Tanto a pesquisa sobre o contexto francês quanto no caso feirense, o que se destaca é a perda da autonomia na construção da festa, que passou a ser pensada pelo Poder Público que determina o roteiro da festa. No caso da micareta, a partir dos relatos, o traçado da festa foi estabelecido sem que houvesse diálogo com os envolvidos.

É dessa forma que as ideologias políticas constroem uma memória e alteram os significados. A alteração de significados não implica uma desqualificação da festa. Esse movimento garante, antes de tudo, a manutenção da festa; a imobilidade representaria a morte (Hobsbawn, 1997). Vale lembrar que as instâncias governamentais não são as únicas construtoras da festa, mas a partir do momento que ocorre o movimento de institucionalização da festa, os órgãos públicos ganham protagonismo, pois passam a estabelecer as normas.

Atribuiu-se a tranquilidade da festa à ação policial, que ordenaria a cidade, em uma série de construções: “Polícia se prepara para garantir cinco dias de muita tranquilidade; retrospectiva de ocorrências policiais, preparação e otimismo e cerca de 40 marginais presos!” Inicia-se com a afirmativa do protagonismo policial, como mantenedor da ordem e sucesso festivo:

 

Levando-se em consideração a dimensão da festa das micaretas realizadas nesses dois últimos anos, foram bastante tranquilas em termos de ocorrências policiais, conforme atestadas às próprias autoridades do setor que atuou na cidade. Espera-se que este clima de tranquilidade se repita na prolongada Micareta deste ano (com cinco dias de festa), uma vez que os preparativos da polícia foram aprimorados. (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.)

 

A fonte fala de uma micareta prolongada, isso aconteceu porque o feriado de 1º de maio foi incorporado à micareta e a festa ganhou mais um dia. A aglutinação contribuiu para o silenciamento do significado do feriado nas páginas dos jornais.

Nesse fragmento, a ação policial aparece como uma condição de existência para o clima de tranquilidade, a ponto de lançar mão de uma retrospectiva da ação policial no período festivo. Antes disso, trata da ação preventiva: a operação limpeza, que seria a prisão do que o jornal aponta como marginais já conhecidos antes do início da festa. O mesmo argumento de limpeza, aplicado aos copos de vidro e à ação da Secretaria de Serviços Urbanos de asseio das vias públicas, foram utilizados para os sujeitos indesejáveis da cidade. Assim como os copos de vidro e a varredura das ruas, os denominados marginais deveriam ser retirados de circulação para o bom andamento da festa. Ações que representam uma cidade pensada e arquitetada pelo poder público.

Essa arquitetura envolvia também a imprensa; evidência encontrada na fala do delegado João Veloso, transcrita pelo Jornal. Na entrevista da autoridade policial, um alerta: para além da ação policial, o folião precisa se preparar. A preparação psicológica no sentido de que o povo brinque tranquilo, em paz. Essa preparação, segundo ele, é feita principalmente através da imprensa (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.). À polícia caberia a ação preventiva e de manutenção da ordem, e à imprensa, como veículo que passaria aos foliões as instruções de como se portar, assim como o conselho do que fazer com os copos. Caberia ao folião o papel de convidado da festa, e não de construtor. Isso porque tudo já estava pensado e preparado dentro de uma categoria ideal.

O periódico, nessa empreitada de convencer o folião leitor de que tudo estaria garantido para o bom andamento, comprova a eficácia do modus operandi policial a partir de retrospectivas. O jornal recorreu aos dados quantitativos de 1979 e 1980, na qual as autoridades afirmaram a existência de casos de rotina, mas que durante a micareta alcançava níveis mais elevados.

Apesar da tranquilidade anunciada por autoridades policiais e endossada pelo Jornal Feira Hoje, as contradições na própria fala desses sujeitos oferecem elementos para explorar além das massagens que se deseja passar, mas, sobretudo, os conflitos inerentes ao contexto. Conforme Darnton (2006), os desencontros não significam um problema, mas sim uma possibilidade de outras formas de ler os documentos. E isso está para além do uso dos jornais como fonte.

A partir da análise da construção da notícia, chegou-se à tese que fundamenta esse exercício: a tranquilidade festiva é uma construção do poder público e da imprensa. A tranquilidade festiva é uma construção do poder público e da imprensa. Movimento que envolvia a organização conjunta da Polícia Militar, Civil e do Exército em uma ação ostensiva, como caracterizou o jornal.

 

Como está programado para este ano, tanto nos anos de 1979/80 houve uma operação conjunta, durante a micareta, das polícias civil e Militar, contando com a colaboração do Exercício, principalmente no policiamento ostensivo das ruas da cidade. A micareta de 1979 foi considerada pelas autoridades policiais, naquela época, como a mais tranquila dos últimos 20 anos. (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.)

 

Ainda a respeito da retrospectiva, agora referindo-se ao ano de 1980, afirmou-se ser mais tranquila ainda que a de 1979: “Esta tranquilidade durante os festejos, em grande parte, foi conseguida graças ao forte esquema de policiamento, com cerca de 120 homens trabalhando na operação limpeza.” (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. p.6.)

Se a tranquilidade tivesse sido garantida com o trabalho preventivo da operação limpeza, qual seria o motivo de tantos recursos coercitivos? Quando há necessidade de rever a todo tempo sanções, códigos de postura, significa que os sujeitos não estão seguindo a ordem estabelecida e que não há consenso das apropriações da cidade e, nesse caso, da festa.

A referida operação limpeza provocava uma reorganização espacial da cidade, a dividindo por setores. Incluía também o pedido de reforços policiais: agentes, peritos e o Pelotão Águia de Salvador (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.). Se os anos anteriores tivessem sido o sucesso anunciado é repetido diversas vezes, qual seria a necessidade de reforços? As duas perguntas lançadas não têm o intuito de escarafunchar uma verdade, nem provar que há mentiras nas informações. Isso não é o mais importante nesse exercício. O que está em questão é pensar a fonte como uma representação, que é construída a partir de um lugar social e temporal, no qual as intencionalidades fazem-se presentes (Chartier, 2002).

Aproxima-se o fim da reportagem e coincide com o desfecho da ação policial: a prisão. Anunciada com o entusiasmo de uma exclamação: Cerca de 40 marginais já presos! Indica-se a quantidade de presos que foram transferidos para a Colônia Agrícola Lafayete Coutinho, a Pedra Preta, em Salvador. O objetivo da transferência foi abrir espaço no “xadrez” para os presos do período da micareta. Os informativos quanto às prisões servem para comprovar o sucesso da operação:

 

Desde que começou a operação limpeza da cidade para o período micaretesco, há cerca de 20 dias, a polícia havia prendido até a tarde de ontem 42 ladrões. Todos eles foram enviados para a Pedra Preta, o delegado regional adiantou que ontem à noite seria feita uma blitz intensiva pela operação integrada das polícias Civil e Militar, visando limpar ainda mais a cidade para a grande festa popular (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. p. 6.)

 

Há um tom de alerta para os sujeitos que festejaram, aqueles que estavam receosos, poderiam ficar tranquilos, pois a cidade já estava limpa. Aos foliões que não se enquadrarem nas normas estabelecidas, o poder público já havia providenciado espaços para o encarceramento.

Importante lembrar que o termo marginal durante a micareta abarcava grupos que, nos dias normais, não seriam encaixados nesta categoria. Retomemos o caso dos copos de vidro; quem saísse às ruas durante a festa com copos ou garrafas de vidro eram enquadrados por descumprimento da lei. O contrário também é válido, infrações nos dias ordinários poderiam ser relevadas durante a festa. Nos dias de festa, eram permitidos, como afirma o próprio jornal.

 

Com relação à descontraída iniciativa do uso do topless em festa como a micareta, o delegado regional João Veloso se manifestou contrário, pois segundo ele, além da mulher que aderir à moda dos seios de fora correr o perigo de ser agredida, isso representa uma contravenção penal, podendo ser qualificada como atentado ao pudor público. A proibição, disse Veloso se estende aos travestis. (Jornal Feira Hoje. Feira de Santana, 1º de maio de 1981. Ano XI, Nº 2076. P.6.)

 

Apesar da prática, inclusive fotografada e publicada em outros exemplares do jornal, ninguém entre o grupo de marginais foi preso por essa prática. O sentido de um termo precisa estar de acordo com os contemporâneos, mais que o extrato do tempo, a circunstância onde esse se encontra. (Koselleck, 2012)

Ao jornal coube sua parte, aquela anunciada pelo delegado Veloso; preparar o folião psicologicamente. Fez isso apontando o passo a passo das ações do poder público para garantir a festa e que os foliões fossem às ruas despreocupados - por esse motivo talvez não tenha apontado o risco dos copos de vidros como potenciais armas. Apesar da manchete principal ser: Agora é micareta: hora de só brincar. As contradições e os ideais de festa adequada apontaram para questões além dos dias de Momo, indicaram as preocupações de uma cidade no contexto de 1980. A micareta é uma sociedade que festeja; conflitos e projetos não as abandonam nem na folia.

 

Considerações finais

Ao final do exercício aqui proposto, é importante retornar à questão inicial: o que dizem os jornais? Resposta que foi ensaiada a partir do recorte de um exemplar, mas que atenta para possíveis caminhos para o trato com os periódicos. Ao pensar nos editoriais, eles são concretizados a partir do traçado de uma linha de pensamento que esquematiza todas as informações apresentadas. Logo, é importante pensá-los sempre em conjunto; ao extrair as informações sem considerar o todo, perde-se uma multiplicidade de leituras.

A descoberta dessa característica seria o primeiro passo para entender o que dizem os jornais. E observar a relevância das outras notícias, mesmo que estas não correspondam ao objeto recortado, ajuda a compreender o lugar que as coisas ocupam na realidade que se pretende estudar. Isso porque o que está posto ao final da edição é uma narrativa.

Outro aspecto não menos importante é a espacialidade das notícias. Quando algo é anunciado na capa ou aparece no título principal, tem um significado diferente de quando este aparece em nota de fim de página. O mesmo vale para reportagens de páginas inteiras, o que significa que, dentro de um universo de acontecimentos, aquele tema ganhou dimensões relevantes. Nessa perspectiva, fundamenta-se a defesa de que a forma diz sobre o conteúdo; ela é pensada para fortalecer a mensagem que se deseja passar.

Além da interpretação dos aspectos mais técnicos dos jornais, eles podem ser pensados a partir de uma perspectiva de construção, na qual funcionam como agentes da construção dos fatos. Isso porque representam os fatos à sua maneira, a partir de suas perspectivas e do contexto no qual produz. Por esse motivo, deve-se observar o que é dito, mas, sobretudo, como é dito: quais os recursos de vocabulário são lançados, o peso das palavras dentro do seu contexto linguístico, como acontecem os encadeamentos da notícia, silenciamentos e contradições.

O trato com as fontes e sua interpretação é o aspecto que nenhuma corrente historiográfica descartou ao longo das crises da História. Acredita-se então que esse exercício de retomar as concepções metodológicas que orientam a leitura das fontes é fundamental e deve ser recorrente.

 

Referências

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Data de Recebimento: 15/08/2023
Data de Aprovação: 28/05/2023


1  O acervo completo do jornal encontra-se disponível para consulta no Museu Casa do Sertão, com sede na Universidade Estadual de Feira de Santana. O Jornal fora fundado em 1970. Iniciou com uma edição semanal, aos sábados. A partir de meados do ano de 1976 passou a ter circulação diária, tornando-se o jornal. Em 1997, o jornal declarou falência e encerrou as atividades. Até a conclusão desse artigo, não foi possível precisar a tiragem do jornal.

2  Jornal de circulação dominante no Município de Feira de Santana desde 1909 e com atuação ininterrupta até os dias de hoje. Ao longo da trajetória, teve publicações semanais, diárias e voltou, nos últimos anos, a ser semanal.

3  O trio elétrico já existia no contexto da micareta de Feira de Santana e no Carnaval de Salvador desde 1950. Porém, ele era equiparável aos outros elementos, como os carros alegóricos. Com o processo de modernização industrial, foi incrementado e aglutinado pelo movimento que, em 1985, foi divulgado como Axé Music. A propósito, o termo Axé Music foi cunhado por um jornalista, Hagamenon Brito. Demonstra o poder de construção de significados e memórias da imprensa. O que reforça a importância de observarmos a fonte jornalística, e as demais, também como um objeto que constrói significados.