O artefato gráfico urbano “sinpapeles”: A constituição de uma esfera de reconhecimento pela memória da condição precária


resumo resumo

Regiane Miranda de Oliveira Nakagawa
Fábio Sadao Nakagawa



Introdução

Na passagem do dia 18 para o dia 19 de setembro de 2019, vários equipamentos urbanos e arquitetônicos situados em bairros centrais da cidade de Madri, capital da Espanha1, foram grafitados com o signo “sinpapeles” (Figura 1).

 

Figura 1: A replicação do signo “sinpapeles” na cidade de Madri

Fonte: registros fotográficos realizados pelos autores

 

Escrito por meio de uma tipografia cursiva simples, com tinta spray preta ou branca, sem a separação entre a preposição e o substantivo, “sinpapeles” parece ter sido rabiscado de modo ágil e apressado por um(a) transeunte que objetivou deixar sua marca por onde passou, como se fosse uma pegada. Tais inscrições foram realizadas nos mais variados suportes, como fachadas de lojas, outdoors de divulgação de produtos e filmes em cartaz nos cinemas da cidade, interdições de obras em vias públicas, dentre outros (Figura 2). Tal acontecimento já havia ocorrido na cidade de Barcelona quando, em janeiro de 2018, “sinpapeles” foi igualmente grafitado em vários pontos da região central.

 

Figura 2: Inscrições do signo “sinpapeles” em diferentes equipamentos urbanos de Madri

Fonte: registros realizados pelos autores

 

À princípio, o sintagma preposicional “sin papeles”, cuja tradução para o português seria “sem documentos”, refere-se à condição de alguém que imigra para outro país e permanece em situação irregular e sem autorização legal para residir e/ou trabalhar. No entanto, “sin papeles”, “sinpapeles” ou “simpapeles”2, pelo uso, hábito e, principalmente, pela dimensão político-discriminatória, converteu-se num “tipo de pessoa” que representa não uma condição, mas, de modo pejorativo, a negação enquanto “sujeito” de quem sofre essa condição. Esse modo de negar a existência enquanto sujeito político-social é alertada por Augé, o qual afirma que:

 

“Clandestinos”, “sem documentos”, são palavras ou expressões que revelam um tipo à parte de certas categorias de imigrados, mas contrariamente ao que sugerem essas palavras e essas expressões, a existência delas é, com frequência, conhecida oficialmente. Simplesmente, ela não é reconhecida. Os clandestinos distinguem-se de início dos outros imigrados pela negação em torno de sua existência. A categoria geral da imigração é inteiramente atingida por essa precariedade do estatuto. A qualidade de imigrado “oficial” não é segurança absoluta para a transitividade na clandestinidade: um visto de turismo tem duração limitada, um visto de permanência também, as leis sobre a imigração podem mudar em função da conjuntura política e econômica (Augé, 2010, p. 49-50).

 

O inesperado excesso de produção do signo “sinpapeles” pelas ruas de Barcelona e Madri provocou sua visibilidade para além dos locais onde houve a inscrição e despertou o interesse dos(as) moradores(as), da polícia municipal e dos meios de comunicação em descobrir quem era o(a) emissor(a) da mensagem e qual o objetivo de sua propagação. A única pista foi um perfil no Instagram com o nome “sin.papeles”3 e, na época, não foi possível identificar o(a) responsável pela conta, mas era viável enviar mensagens a ele(a) pela rede social, além do acesso ao e-mail registrado na conta.

Os jornais El Periódico e La Vanguardia conseguiram entrevistar o rapaz por e-mail e produziram, respectivamente, as matérias intituladas “Um artista chamado “Sinpapeles”4, escrita por Mauricio Bernal e publicada em 26 de junho de 2018, e “Sinpapeles’ o grafite que movimenta consciências em Barcelona”5, realizada por Lara Gómez Ruiz e publicada no dia 01 de julho de 2018. Nas entrevistas, o criador mantém-se no anonimato, pois sua ação é considerada uma prática ilegal segundo as normas vigentes. Identifica-se como um indivíduo de origem latino-americana, um artista e não um vândalo. Vive há mais de dez anos na Espanha (levando em consideração o ano de 2018, quando da publicação das entrevistas) e sofreu com a condição de imigrante “sem documentos” até regularizar sua situação ao casar-se legalmente com uma amiga que lhe ofereceu ajuda.

Em dezembro de 2018, a Revista Piauí publicou uma matéria, escrita por Anita Krepp, sobre o grafiteiro anônimo, com o seguinte título: “Sem nome e com documento. O pichador de Barcelona é brasileiro”. Conforme indicado na manchete, trata-se de um brasileiro, natural de Brasília, que se mudou para a Espanha aos doze anos de idade, em 2004, pois a família com três filhos buscava alcançar a estabilidade financeira que não tinha no Brasil.

Mas, afinal, qual é o seu nome? Para o jornal El Periódico, ele disse que prefere manter-se no anonimato e afirma que “sinpapeles” é o seu nome (Bernal, 2018). Também declarou ao jornal El Periódico que, ao espalhar a inscrição pela cidade, sua intenção foi

 

[...] colocar um tema em debate sobre a mesa. Lembro a todos que estamos aqui limpando sua casa, colocando sua comida na mesa, reformando sua cozinha ou vendendo uma cerveja por um euro no centro de Barcelona, e que com certeza há alguém com papéis se beneficiando de tudo isso (Bernal, 2018) 6.

 

A postura contestatória do entrevistado também se manteve na matéria do La Vanguardia e, por isso, a jornalista qualificou seu trabalho como uma pintura reivindicativa, cujo objetivo era “despertar consciências” (Ruiz, 2018)7.

Não é possível aferir se tal façanha foi ou não alcançada, no entanto, a proposta de inscrever o signo verbal “sinpapeles” pelas ruas, de forma ostensiva, conquistou novos(as) adeptos(as) e expandiu-se por outras cidades como, por exemplo, a capital espanhola Madri, um ano após sua realização em Barcelona.

Com uma tipografia simples, o signo “sinpapeles” leva em torno de dez a trinta segundos (dependendo do tamanho) para ser feito. A facilidade em executá-lo também reverbera no ensinamento de sua técnica, tal como ocorreu na oficina denominada “Workshop de lettering social: Todos somos sinpapeles”8, oferecida gratuitamente para várias pessoas em 2018, numa antiga escola de Barcelona, pela Learning by Helping, um laboratório de inovação social para o desenvolvimento sustentável (Figura 3).

 

Figura 3: Imagens da realização do workshop de lettering social “Todos somos sinpapeles”

Fonte: Vídeo promocional da oficina feita pelo laboratório de inovação social para o desenvolvimento sustentável Learning by Helping, disponível na plataforma Youtube

 

Em fevereiro de 2020, dois anos após a primeira aparição do artefato “sinpapeles”, numa entrevista publicada pelo site “Agente provocador”, o grafiteiro anônimo – identificado pela matéria como um rapaz negro – reconhece a grande repercussão do seu trabalho ao afirmar que, “ao final, minha assinatura tornou-se em algo político. A lei pode me julgar por uma assinatura, não por um movimento” (La Felguera, 2020)9.

Uma mera expressão da ausência de uma condição, uma palavra que representa de modo estereotipado uma pessoa “sem documentos”, uma manifestação artística, uma marca de protesto, um nome, uma assinatura: todas essas nomenclaturas podem ser atribuídas ao signo “sinpapeles”, pois colaboram para a complexidade de sua configuração semiótica. Aliada a todas elas, neste artigo, intentamos discutir a maneira pela qual esse signo se articula como um artefato gráfico urbano e símbolo mnemônico da condição precária que, na atualidade, atinge milhares de imigrantes, que tanto emerge no âmbito da urbe quanto contribui para redefini-la.

Nossa discussão toma por base a perspectiva epistemológica de estudo da cultura formulada pelo semioticista Iuri Lotman, segundo a qual, “cultura é informação” (1978, p. 32) que ganha materialidade por meio de textos codificados por linguagens variadas, que subsistem em constante diálogo e tensionamento pela ação da fronteira semiótica, da qual decorre a contínua redefinição do espaço semiótico de relações. Além de serem responsáveis por produzir novos sentidos, os textos exercem uma importante função mnemônica na cultura, pois não se limitam a representar “[...] uma interpretação dos acontecimentos, mas são a memória deles, [e] podem cumprir para uma coletividade a função de signos de existência” (Lozano, 2015, p. 125)10 ou, em outras palavras: são os textos que conferem materialidade àquilo que uma coletividade deseja lembrar e, por consequência, esquecer.

Com base nessa discussão, intenta-se ainda indicar o tipo de memória que se constitui pelo símbolo “sinpapeles” que, segundo nossa perspectiva, volta-se para a valoração da diversidade (o que não exclui suas contradições) que o aumento da xenofobia e de outras formas totalitárias de ideologia visam, justamente, relegar ao esquecimento.

 

Artefatos gráficos como memória e texto da cultura e a relação com a cidade

Quando nos reportamos aos artefatos gráficos urbanos, antes de tudo, aludimos a:

 

[...] qualquer objeto produzido (grafado, gravado ou inscrito) pelo homem para realizar funções relacionadas à comunicação por meios visuais, incluindo objetos bi ou tridimensionais, considerados em seus aspectos de potenciais transmissores de informação (incluindo aspectos estéticos, cognitivos e semióticos) (Farias; Braga, 2018, p. 23).

 

              A amplitude dessa definição abarca qualquer tipo de arranjo e/ou representação visual, em que a função comunicativa se sobrepõe à dimensão temporal, uma vez que muitos artefatos são extremamente efêmeros, tal como ocorre, por exemplo, com o artefato aqui estudado que, por sua vez, também é um grafite pois, como enfatiza Lassala (2017), trata-se de uma intervenção urbana caracterizada por uma dada concepção gráfico-visual que envolve “noções de movimento, volume, perspectiva, cor e luz” (LASSALA, 2017, p. 36).

Ainda segundo os autores, os artefatos fazem parte da “cultura material” das coletividades, pela qual se constrói uma memória gráfica que, inevitavelmente, compõe a memória coletiva, de modo que “memória gráfica, material e cultural” é “também a (re)constituição de uma memória coletiva em seus aspectos culturais” (Farias; Braga, 2018, p. 18).

Aqui, interessa-nos pensar os artefatos gráficos urbanos como textos culturais (LOTMAN, 1996) que tanto transmitem e produzem novas informações quanto constroem a memória coletiva não hereditária da cultura (Lotman, 2000). Qualquer arranjo textual se constitui na fronteira entre, no mínimo, dois sistemas sígnicos, da qual resulta a tradução ou a intraduzibilidade dentre distintos códigos. Se a primeira parte de um algoritmo ou um padrão pré-existente para a transposição, na segunda ele inexiste, acarretando o estabelecimento de equivalências tradutórias entre esferas completamente díspares que originam novas combinações sígnicas e, por consequência, novos sentidos.

Apreender essa diversidade exige, assim, a delimitação do espaço semiótico que os textos culturais agenciam pela fronteira semiótica. Tal perspectiva contrapõe-se a qualquer viés hermenêutico pelo qual se busca desvelar um significado preexistente, dada a necessidade de delinear a maneira pela qual os sentidos são continuamente construídos na cultura. Como Lotman afirma, “o texto deste tipo é sempre mais rico que qualquer linguagem isolada [...] é um espaço semiótico em que interatuam, se interferem e se auto-organizam hierarquicamente as linguagens” (Lotman, 1996, p. 97).11

Esse traço distintivo é central para entender, de que maneira, um texto exerce função mnemônica. Para Lotman (1996), se a materialidade da cultura se constrói por meio dos textos, logo, é nessa materialidade que igualmente reside sua memória. É por isso que ele a define como memória coletiva não hereditária (Lotman, 2000), uma vez que ela não subsiste nos indivíduos, ao contrário: são as linguagens que modelizam a dimensão perceptocognitiva e exercem agenciamentos sobre os sujeitos que, com isso, também se constituem em textos e se inserem na memória da cultura.

Todo texto é capaz de dar “corpo” e/ou construir uma informação que, fora dele, seria “perdida”. Com base na ordenação sincrônica, ou seja, nas relações sintagmáticas constitutivas de um arranjo sígnico, pode-se depreender a diacronia dos vínculos que o constituíram e seus sentidos. Segundo Lotman (1996), é possível equiparar os textos a sementes, capazes não apenas de conservar uma informação genética como também produzir novos frutos. Isso decorre da função exercida pelo símbolo mnemônico que, conforme o autor aponta (Lotman, 1996), subsiste no texto e se caracteriza pela autonomia que adquire com relação aos contextos em que se manifesta, apesar de ser capaz de recriá-los.

Tal funcionamento, ao qual se correlaciona a função transmissiva da memória, pode ser melhor explicitado quando retomamos a definição de símbolo proposta pelo semioticista Charles Sanders Peirce, que o entende como um tipo de signo que não representa um particular, mas, sim, um “geral”, com base numa convenção e num hábito, que possibilitam “um retorno ao significado original” (Peirce, 1990, p. 72). Com isso, todo símbolo mnemônico permite a “conservação” e a “transmissão” de um significado que, longe de se vincular a algo específico, reporta-se a uma ideia capaz de representar um conjunto de singulares. É justamente em decorrência do hábito e da convenção que decorre o grau de autonomia do símbolo.

Independência, por sua vez, não se confunde com isolamento. Como o próprio semioticista indica, “os símbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos” (Peirce, 1990, p. 73), pois a semiose pressupõe, justamente, a capacidade do signo para crescer, expandir-se e gerar outros signos. No âmbito do pensamento lotmaniano, isso pode ser entendido, justamente, pelas relações operacionalizadas na fronteira. Um texto, para ser “decifrado” e produzir sentidos, precisa estar em relação com outros, muitas vezes, vinculados a contextos completamente díspares e separados no tempo. Ainda que conserve uma dada informação, na relação com outros signos/ códigos e na constituição de novos arranjos textuais, ocorre a expansão do símbolo e, por consequência, a criação de novos sentidos, pois, “o significado de um símbolo não é algo constante” (Lotman, 1998, p. 157)12. Um símbolo, como qualquer outro texto cultural, só produz novos sentidos quando é traduzido em outro.

A exemplo do que ocorre com o som, Lotman (1998) caracteriza o símbolo pela ressonância, cuja intensidade pode ser continuamente amplificada a depender das condições ambientais dadas, ou seja: o espaço semiótico de relações com o qual se relaciona. Quanto maior for a disparidade entre o símbolo e o contexto que o traduz, como também os vínculos tradutórios que traz na sua materialidade, maior será a capacidade de amplificação de sentidos passíveis de serem produzidos e, por consequência, mais vasta será a diacronia da sua memória. Como Lotman indica: “Neste caso, o símbolo separado atua como um texto isolado que se translada livremente no campo cronológico da cultura e que cada vez se correlaciona de uma maneira complexa com os cortes sincrônicos dela” (Lotman, 1996, p. 89)13.

É em conformidade com tal perspectiva que se deve entender a função criadora que, junto com a transmissiva, caracterizam a memória materializada nos textos culturais. Em virtude da correlação desses dois traços distintivos, que atuam sincronicamente nos textos, a memória, segundo Lotman (1996), deve ser entendida como pancrônica, pois pertence a todos os tempos: presente, passado e futuro.

Assim, interessa-nos apreender o artefato gráfico urbano “sinpapeles” como símbolo mnemônico e, por consequência, o espaço semiótico que articula, tendo em vista o modo como constrói a visualidade da condição precária de imigrantes que vivem na ilegalidade, ou seja, “outro”, o “fora”, o “estrangeiro”, assim nomeados quando vistos pela perspectiva do país onde residem.

Ainda que não tenha como base o pensamento formulado pelo semioticista da cultura, ao indicar que “estudos sobre memória gráfica muitas vezes se concentram em artefatos produzidos além do tempo de vida de possíveis testemunhas” (Farias; Braga, 2018, p. 16), nota-se que os autores reconhecem a memória como “parte da cultura material de um povo” (Farias; Braga, 2018, p. 16) que, antes de tudo, encontra-se encarnada nas peças, cuja apreensão exige a observação atenta pelo viés da linguagem.

Por sua vez, apreender tal materialidade implica o reconhecimento da linguagem dos artefatos como parte da heterogeneidade semiótica que constrói e, continuamente, redefine a cidade e sua memória. Isso porque, antes de tudo, a urbe deve ser entendida como um

 

Complexo mecanismo semiótico gerador de cultura, [que] pode cumprir sua função apenas se, nela, se mesclam um sem fim de textos e códigos heterogêneos, pertencentes a diferentes línguas e níveis [...] A cidade é um mecanismo que recria uma e outra vez seu passado, que obtém assim a possibilidade de encontrar-se com o presente no plano sincrônico. Cidade e cultura se opõem ao tempo (Lotman, 1994, p. 09-11)14.

 

Tal oposição ao decurso do tempo ocorre justamente pela ação da memória, visto que, na materialidade do texto cultural, se correlacionam diferentes entrelaçamentos espaço/ temporais.

Como uma das esferas constitutivas da urbe, a linguagem gráfico/visual dos artefatos urbanos subsiste em estreita correlação com outras, como as linguagens arquitetônicas e urbanísticas, de forma quase indissociável. Em diálogo, todas elas intervêm na constituição das espacialidades que, de fato, constroem e redefinem continuamente a cidade que, por sua vez, não se confunde com o urbano.

Segundo Choay (1998, p. 02), o urbanismo se instituiu como disciplina científica no final do século XIX e se caracterizava, essencialmente, pela “pretensão de uma universalidade científica”, voltada para resolver os graves problemas de habitabilidade resultantes do adensamento populacional nos então centros industriais emergentes, mediante o “planejamento da cidade maquinista” (Choay, 1998, p. 03), pautada pela funcionalidade dos espaços do viver que, nem sempre, considera as especificidades e a memória de um lugar.

Em consonância com tal perspectiva, Ferrara (2000) e Santos (2004) situam o urbano pela edificação do espaço físico/ construído, fruto da racionalidade de um programa que visa impor determinadas ordenações e funcionalidades, ao passo que a cidade é resultante de usos que não se coadunam com aqueles previstos pelo urbano, de modo a tensionar suas imposições. Ainda que utilize outra terminologia, Sennett (2019) igualmente estabelece a distinção entre ambos, sendo ville o equivalente para o urbano e as funções totalizantes do espaço previstas por ele, e cité para a cidade, a qual se constitui por meio de espacialidades muito específicas.

Lotman possui uma compreensão muito similar a esses autores pois, tal como apontado anteriormente, se, para o semioticista, a cidade é geradora de cultura, ou seja, de semiose pelo diálogo entre diferentes códigos e linguagens do qual resulta a produção de textos, sentidos e memória, por outro lado,

 

A cidade artificial ideal, plasmação da utopia racionalista, devia carecer de história, na medida em que o novo Estado significava a negação das estruturas que historicamente o haviam formado. Isso supunha a construção da cidade em um novo lugar e, em conformidade com isso, a destruição de todo “o velho” que nele havia. [...] No entanto, a existência de história é uma condição indispensável de um sistema semiótico operativo. A cidade, surgida de golpe graças a um gesto de demiurgo, não tem história e está submetida a um plano único e irrealizável (Lotman, 1994, p. 11)15.

 

Em outras palavras, o urbano equivale, para Lotman, à “cidade monológica”, ou seja, “um texto fora de contexto” (Lotman, 1998, p. 108)16, fruto da tentativa de impor um arranjo sígnico constituído por um só código e, por consequência, voltado à produção de um significado unívoco, desconsiderando o espaço semiótico de relações existentes e, por consequência, a história e a memória de um lugar. Apesar de definir o texto, essencialmente, pela diversidade de códigos, fruto da fronteira colocada entre diferentes esferas, Lotman (1996) igualmente reconhece a existência de arranjos sígnicos que exercem uma função eminentemente transmissiva, ainda que sejam minoria na cultura.

Por outro lado, como um gerador de cultura e estruturalidade, decorrente dos intercâmbios entre suas distintas linguagens constitutivas, dentre elas os artefatos gráficos, a cidade pode promover a redefinição das textualidades urbanas, inserindo-as em novas configurações sígnicas, das quais resulta a constituição de espacialidades que passam a construir e fazer parte da história e da memória de um lugar. Como Lotman indica, “a consciência, tanto a individual como a coletiva (a cultura) é espacial. Desenvolve-se no espaço e pensa com as categorias deste” (LOTMAN, 2000, p. 112)17, de modo que a redefinição dos espaços que constroem a urbe implica, assim, um mecanismo central de apreensão da maneira como uma cultura define a si mesma e, por consequência, constrói sua memória.

Aqui, coloca-se uma questão epistemológica central no processo de definição do arranjo textual a ser observado. Como, para Lotman, a cultura se materializa por meio de textos, logo, a delimitação desses arranjos implica a apreensão de uma organização estruturada capaz de produzir sentidos quando em interação com outros, de modo que “qualquer texto cultural (no sentido de “tipo de cultura”) pode ser examinado tanto como uma espécie de texto único, com um código único, quanto um conjunto de textos, com um determinado conjunto de códigos, a ele correspondente” (Lotman, 1979, p. 33). Além disso, um texto igualmente pode ser constituído por outros textos que, em interação, geram novos sentidos e, por consequência, a amplificação da memória.

Assim, na delimitação do material empírico observado, considerou-se a diversidade de inscrições do signo “sinpapeles” como um “texto único”, em virtude do seu funcionamento como símbolo mnemônico, voltado a expor a condição de precariedade de imigrantes que vivem em situação de ilegalidade, sobretudo em metrópoles globais em que a diversidade de nacionalidades, gênero e cor coloca-se como dominante.

 

O signo paradoxal e símbolo mnemônico “sinpapeles”

O artefato “sinpapeles” articula-se como um texto cultural produzido por uma semiosfera decorrente da correlação de diversos sistemas de signos, tais como os códigos verbal e visual, as linguagens das artes e artefatos gráficos, além da própria cidade e da política. Além disso, as várias camadas de sentidos que o compõem colaboram para a sua articulação como um signo paradoxal em que, primeiramente, destaca-se sua atuação como um tipo de artefato gráfico que esconde o(a) agente, ao mesmo tempo que exponibiliza sua mensagem, cujo jogo do desaparecer versus aparecer é próprio do ato de grafitar ou pichar.

Tal como indica Silva (2014) aliado à marginalidade e à espontaneidade, o anonimato coloca-se como uma característica indissociável do grafite, definidas pelo autor como pré-operativas18. No caso em questão, além de servir como forma de proteção contra as possíveis condenações, punições e represálias estipuladas pelas autoridades municipais, a decisão pelo anonimato também garante ao ser anônimo atuar como “ser secreto” (Delgado, 2015, p.14), que funciona “como fator estruturante da relação em público”, capaz de “consentir uma indefinição inicial que permita ganhar tempo antes de interpretar corretamente qual é a ordem da interação” (Delgado, 2015, p.15)19.

No caso da operação “sinpapeles”, essa “indefinição inicial” — que ainda perdura parcialmente —, permitiu que outros(as) – aqueles(as) que vivenciam a condição de ilegalidade ou que se solidarizam com a causa – tivessem tempo para compreender, aprender e executar essa nova proposta como ordem de inscrição e projeção nos espaços públicos. Diferente da ideia de um(a) agente sem identidade, o recurso de sua não identificação gerou a disponibilidade por meio do papel de enunciador(a), como ser de linguagem, para que outras pessoas pudessem exercer e se reconhecer nessa função. Trata-se de uma forma de delegar o poder de expressar o signo “sinpapeles” a outros(as) anônimos(as).

Como enfatiza Butler (2018, 2019, 2021), o existir implica formas de interpelação e reconhecimento por instâncias socioculturais, políticas, governamentais e econômicas mais amplas, pelas quais ocorre a constituição do “sujeito” enquanto ser social, de modo que ser completamente privado de reconhecimento põe em risco a própria condição de existência. Com isso, inviabiliza-se a autonomia absoluta de qualquer indivíduo, da mesma forma que se explicita a condição de vulnerabilidade a que todos(as) estão submetidos nesse contexto. Isso se mostra de forma mais efetiva pelo fato de que “o campo de aparecimento é regulado por normas de reconhecimento que são hierárquicas e excludentes” (Butler, 2018, p. 46), que determinam de antemão quem é passível de “ser reconhecido(a)” e aqueles(a) que, efetivamente, não podem aparecer.

Assim, num contexto altamente regulado pelo aparecer e pela visualidade, não fazer parte do campo de aparecimento/ reconhecimento público implica quase que “ser privado do direito de ter direitos” (Butler, 2018, p. 66) por completo, o que acentua ainda mais a situação de precariedade de determinados grupos. Aqui, em consonância com a autora, entendemos a precariedade pela

 

[...] condição, politicamente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas de populações expostas à violência arbitrária do Estado, à violência urbana ou doméstica, ou a outras formas de violência não representadas pelo Estado, mas contra as quais os instrumentos judiciais do Estado não proporcionam proteção e reparação suficientes (Butler, 2018, p. 41).

 

Além dos aspectos legais, a especificidade da condição precária dos “sinpapeles” encontra-se diretamente relacionada ao risco de aparição pois, como enfatiza Butler, a mera consulta a um advogado ou a instituições judiciais, na tentativa de pleitear a legalização “é, por si só um ato que poderia expor o trabalhador sem documentos à prisão e à deportação” (2018, p. 48). Para subverter tal situação, logo, seria preciso criar formas de aparecer que tanto preservem aqueles destituídos de documentos quanto forcem a própria redefinição da esfera de aparecimento que, por mais resistente que seja à transformação, pode sofrer fissuras e ou “falhar” na tentativa de impor e estabelecer modos de controle e cerceamento (BUTLER, 2018).

Nesse sentido, a inscrição “sinpapeles” constrói uma visualidade muito específica da condição de precariedade para os(as) imigrantes que vivem na condição de ilegalidade como forma de, justamente, forçar seu reconhecimento e, ao mesmo tempo, preservá-los(as). Se, de um lado, o(a) idealizador(a) da proposta é invisibilizado(a), do outro, a proposição torna viável a visibilidade dos sujeitos que são “apagados” socialmente, os “sem documentos”.

Não se trata de qualquer exposição, mas aquela que se manifesta justamente nos espaços iluminados das grandes cidades europeias, moldadas pelo turismo e pelo mercado – que, na atualidade, mostra-se sobretudo pelos processos de gentrificação, inclusive, muito presentes nas cidades de Barcelona e de Madri – onde impera a lógica da sociedade do parecer ou do espetáculo, conceito proposto por Guy Debord (1997). Tentando iluminar os apagados, a operação “sinpapeles” funciona como uma espécie de contra dispositivo às avessas da sociedade do espetáculo, uma vez que buscar infringi-la por meio de seu próprio instrumento, ou seja: a construção e a propagação das aparências e de um modo de aparecer.

Com isso, configura-se um símbolo mnemônico que, justamente por representar um “geral”, oferece “proteção” aos singulares. Ao se referir à especificidade da condição dos “sem documentos”, Butler afirma que:

 

A entrada dessas populações na esfera do aparecimento pode muito bem estar fazendo um conjunto de reivindicações sobre o direito de ser reconhecido e de ter uma vida vivível, mas também é uma maneira de reivindicar para si a esfera pública, seja ela uma transmissão de rádio, uma assembleia na praça, uma marcha pelas principais ruas dos centros urbanos ou uma insurreição na periferia da metrópole (Butler, 2018, 48-49).

                             

No âmbito do “sinpapeles” trata-se, assim, de uma operação política a qual permite, de alguma forma, que apareçam os(as) que sofreram o dano da partilha (Rancière, 1996, 2014), uma vez que não foram cogitados(as) a participar do espólio político-social vigente.

Pela perspectiva semiótica, não se pode desconsiderar o vínculo entre a condição precária vivida pelos(as) imigrantes “sem documentos” e os tensionamentos que, segundo Lotman (1996, 1998, 2000), caracterizam a relação entre centro e periferia. Longe de serem esferas relacionadas ao espaço físico, ambas se reportam a distintos modos de ordenação que constroem a heterogeneidade do espaço semiótico de relações. O centro se caracteriza por estruturas mais rígidas e resistentes ao diálogo com o entorno, ao passo que a periferia se distingue por ordenações mais flexíveis e, por consequência, mais abertas ao intercâmbio com outras esferas. Como se constituem por modos de funcionamento muito específicos, as linguagens características do núcleo nem sempre se prestam à realização da metalinguagem e inteligibilidade das ordenações periféricas o que, em parte, nos permite conjecturar sobre o porquê da dificuldade e/ou impossibilidade de prevê-las e ou controlá-las.

Assim, no âmbito dos sistemas de poder, é possível apreendê-los pela produção de linguagens mais rígidas, que pouco se transformam no decurso do tempo, diferente daquelas continuamente rearticuladas pelos sujeitos que subsistem na condição precária. Por consequência, esferas de aparecimento e visualidade constituídas por instâncias de poder jamais seriam equivalentes àquelas produzidas pelas condições de precariedade que, até mesmo para não se deixar codificar e, com isso, garantir sua sobrevivência, recriam continuamente seus modos de aparecer. Mais do que isso, como afirmam Makarychev e Yatsyk (2017), pode-se dizer que o sofrimento e o trauma não são passíveis de serem codificados por sistemas/ linguagens nucleares, visto que tais formas sígnicas não seriam “capazes” de representar a condição precária.

A reivindicação da esfera pública por parte dos sujeitos em situação de precariedade implica assim a constituição de esferas de aparecimento por meio de linguagens destituídas de formas rígidas de codificação e, portanto, incapazes de produzir significados unívocos, tal como acontece com o paradoxo presente na relação tensiva entre o anonimato e a exponibilidade do signo “sinpapeles” que, por sua vez, também carrega a contradição estabelecida entre memória e esquecimento a partir da principal linguagem pela qual se expressa, a escrita.

Lotman (1996), tentando entender a relação entre signo e memória pela ideia de símbolo mnemônico, sinaliza o uso da escrita como registro cuja função cultural, nesse caso, volta-se ao passado, pois permite “conservar” os dados como informação por meio de um código. Diferente da escrita, a oralidade primária – ou seja, destituída da escrita alfabética – utilizada pelas antigas civilizações serviu para condensar um grande volume de informações para que, pela reiteração por meio da fala, fosse possível transmiti-las para as gerações seguintes. Por isso, a oralidade volta-se para o futuro.

O paradoxo presente no signo “sinpapeles”, devido à mediação da língua escrita, deve-se ao fato de que sua permanência é muito restrita – apesar do registro da materialidade sígnica em diferentes bases de inscrição –, pois as autoridades locais conseguem apagá-lo, em geral, num período de até cinco dias. Dessa maneira, atua como um tipo de registro efêmero que, ao promover a lembrança da existência de imigrantes em situação irregular, é apagado por infringir as leis vigentes, que asseguram o funcionamento do mecanismo de esquecimento que toda cultura de natureza binária (Nakagawa; Nakagawa, 2022) utiliza para excluir aqueles(as) não são considerados(as) como seus (suas).

Tal efemeridade equivale à fugacidade, ou seja, “esse apagar ou fazer desaparecer muito rapidamente o que não deveria estar em público, por algum ente que se sente aludido ou desafiado pela inscrição rebelde” (Silva, 2014, p. 138), a qual indica uma forma de controle social sobre aquilo que não pode ser visibilizado ou, em diálogo com Butler, que não pode fazer parte da esfera do aparecer.

Outra condição paradoxal presente no signo “sinpapeles” é a sua performance tanto como nome comum quanto nome próprio. “Sinpapeles”, como já mencionado anteriormente, estrutura-se como um nome comum, ao funcionar como um termo que parte de uma situação específica – a falta de documentação legal para permanecer e/ou trabalhar num país estrangeiro – para denominar pessoas distintas que passam por essa mesma situação.

Para Lotman e Uspenski (2000), o nome comum é agenciado com base em alguma(s) particularidade(s), pois é pela recorrência de um ou mais traços entre diferentes que ele é gerado. Nesse sentido, tal procedimento dialoga com o modo de funcionamento da lógica indutiva, cuja reiteração de alguma(s) propriedade(s) em casos específicos torna provável sua generalização para atuar como premissa maior (Peirce, 1975). Como um nome comum, “sinpapeles” permite que o utilizem como um nome comum e, portanto, coletivo, para protestar contra a sua marginalização na sociedade.

No entanto, o signo “sinpapeles” também foi pensando para ser um nome próprio, não apenas pelo fato de seu criador dizer que esse signo é o seu nome e que não importa o seu nome de registro (Bernal, 2018) mas, sobretudo, pela forma de inscrição de seu significante, feita como uma assinatura e, paradoxalmente, sem estar grafada com a inicial maiúscula.

Diferente do nome comum, o nome próprio estabelece uma relação de identificação e reconhecimento entre a denominação e o(a) denominado(a), não a partir de algumas características em comum, mas pela própria capacidade totalizadora do Nome (aqui escrito com a primeira letra em maiúscula para diferenciá-lo do nome comum). Isso implica dizer que o conjunto de nomeados(as) não precisa que, entre seus(suas) integrantes, haja alguma propriedade especial em comum, exceto a de que todos(as) possuam o mesmo Nome (Lotman; Uspenski, 2000).

O nome próprio não se caracteriza por traços distintivos. Ele designa o objeto que está sendo nomeado por um processo de identificação e reconhecimento. Por conseguinte, “sinpapeles” como Nome é um modo de nomear qualquer pessoa que o assuma como nome próprio, sem necessariamente sofrer a mesma condição daqueles(as) que não têm os seus documentos legalizados.

Os paradoxos que persistem no signo “sinpapeles” permitem, por mais incoerente que seja, observá-lo como nome que visibiliza os invisibilizados sem tornar visível os(as) seus(suas) enunciadores(as), como também um artefato gráfico com memória efêmera, utilizado para lembrar os(as) esquecidos(as) e, também, como a assinatura de anônimos(as) que sofreram ou não o dano.

Conforme apontamos anteriormente, mais uma vez, ao representar um conjunto de singulares, o símbolo mnemônico, no caso em questão, resulta por proteger aqueles(as) que vivem na condição de ilegalidade e, ao mesmo tempo, criar um campo de aparecimento social no espaço público, até mesmo como forma de reafirmar de existência desses “sujeitos”. Com isso, nota-se de que maneira se ampliam os sentidos que o símbolo é capaz de produzir naquele contexto, visto que funciona como um texto que, ao se exponibilizar de forma ostensiva, tanto explicita a imensa quantidade de imigrantes que vivem sem documentos e, por consequência, sem direitos, quanto os mantêm fora do escopo da esfera de repressão governamental.

 

O gesto e a redefinição da cidade

A constituição da heterogeneidade semiótica do texto cultural e signo mnemônico “sinpapeles” – em que se aliam diferentes códigos, como o verbal escrito, a tipografia selecionada para a inscrição do signo e as cores branca e preta – não pode ser igualmente apreendida sem considerar a presença marcante de um gesto simbólico (Lotman, 1998), ou seja, escrever/grafitar.

Como Flusser indica, “gestos são movimentos pelos quais se manifesta uma maneira de estar no mundo” (1994, p. 77)20, capazes de comunicar ou “dizer algo”, a despeito do resultado para o qual são direcionados ou de suas causas. Tais movimentos, que podem ou não ser realizados em conjunto com um determinado instrumento ou extensão – como, no caso, uma lata de tinta spray – são, assim, destituídos de uma “explicação causal satisfatória” (Flusser, 1994, p. 10)21. Porém, isso não implica ser privado da capacidade de produzir sentidos, sobretudo se considerarmos que todo gesto é um texto cultural que articula um determinado espaço semiótico de relações.

Mais especificamente, com relação ao gesto de escrever, Flusser indica que sua compreensão não se limita a uma mera inscrição sobre algo pois trata-se, antes de tudo, de “raspar, arranhar uma superfície” (Flusser, 2014, p. 31)22, ou seja, adentrá-la, o que impreterivelmente “significa pressionar sobre algo” (Flusser, 2014, p. 34)23 que, de alguma forma, impõe algum tipo de resistência, a depender do tipo de material sobre o qual se inscreve. Além disso, a escrita igualmente implica uma forma de pensar, cujo agenciamento ocorre pela própria especificidade do gesto, uma vez que, como o autor indica, “não há nenhum pensamento, que não se articule por meio de um gesto” (Flusser, 2014, p. 37)24 e, por consequência, distintos gestos potencializam formas diferenciadas de pensamento.

Não há como falar de gestos sem considerar o corpo pelo qual ele ganha concretude. Da mesma forma, é sobre ele que age as formas de exercício de poder sobre a vida, às quais reporta-se a biopolítica (Foucault, 2008). Não por acaso, com base no pensamento lotmaniano, Makarychev e Yatsyk (2017) indicam a potencialidade das linguagens corporais para tornar um trauma visível, sendo elas mais características das esferas periféricas do que nucleares.

A grafia do signo “sinpapeles”, redigida de forma cursiva, permite reconstituir o gesto da escrita, configurando-se numa espécie de “marca do gesto” ou o “gesto em ato”, sendo “indicadora do tipo de modo de produção de que a imagem advém” (Santaella, 2001, p. 218). Trata-se, assim, de uma visualidade que não busca esconder o gesto que o produziu, ao contrário: explicita-o como parte da sua heterogeneidade semiótica.

Além disso, conforme pontuamos na introdução deste trabalho, a ação realizada na cidade de Madri e presenciada por nós ocorreu durante uma única madrugada e contemplou, de forma ostensiva, diferentes edifícios e equipamentos urbanos localizados na região central. Nesse caso, a profusão do gesto de grafitar, feito da noite para o dia, ao quantificar visualmente o grande número de “sinpapeles” existentes no país, torna-o muito mais visível em virtude do estranhamento “imediato” causado pela mudança repentina da visualidade de uma determinada região da cidade. Muito distinta seria a percepção produzida pela ação caso ela tivesse sido realizada no decorrer de dias seguidos.

Tal profusão de corpos e gestos que o texto cultural “sinpapeles” dá a ver nos permite aventar se, tal como afirma Pál Pelbart, “não haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados excluídos, em usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de autovalorização?” (2003, p.137) e, no caso em questão, como um vetor para a constituição de uma esfera de aparecimento, visualidade e memória que, inclusive, implica correr riscos?

Cumpre ressaltar que, se houvesse sido realizada uma única inscrição do signo “sinpapeles”, os gestos e os corpos que os inscreve seriam invisibilizados e, por consequência, o campo de reconhecimento na esfera pública dificilmente se constituiria, bem como os sentidos que ele é capaz de produzir. Ainda que, conforme indicamos no início deste trabalho, ele tenha sido feito por um único corpo, o texto cultural “sinpapeles”, na sua materialidade sígnica, nos permite ver a profusão de corpos imigrantes – e seus gestos – que, na atualidade, encontram-se na situação precária resultante da ilegalidade.

Retomando a questão relativa às linguagens periféricas, não se pode perder de vista que, por serem mais abertas ao diálogo com diferentes esferas culturais, elas igualmente tendem a fomentar a constituição de novos arranjos textuais e, por consequência, a criação de novos sentidos. A nosso ver, longe de ser “apenas” um grafite, o texto cultural “sinpapeles” é igualmente um símbolo mnemônico e um gesto que, por sua vez, resulta por redefinir a cidade no tensionamento com o urbano, aspecto que não pode ser desconsiderado do espaço semiótico de relações que o signo potencializa.

Se, conforme foi apontado, a escrita tende a adentrar uma superfície, logo, a despeito do gesto de apagar que, por si só, indica algo indesejado pelas esferas de poder, a relação que se coloca entre o inscrever e o apagar constrói memória(s) pois, de alguma forma, passa a constituir e a fazer parte de um lugar. Makarychev e Yatsyk (2017) são enfáticos ao afirmar a potência das linguagens periféricas para ressignificar a condição de “marginalidade” de determinados grupos, da qual resulta a constituição de um campo de disputas em relação a estruturas nucleares.

No caso em questão, não se pode perder de vista que a ação foi realizada em bairros centrais e cada vez mais turísticos da cidade de Madri – como La Latina, Lavapiés e Barrio Letras – de modo a forçar a constituição de um campo de reconhecimento em locais onde as lógicas do capital e da técnica (SANTOS, 2004) e suas linguagens são dominantes. Aqui, o tensionamento se dá não apenas pela presença de sujeitos em condição precária na região central da cidade em vez das periferias – tal como se é esperado pelo planejamento urbano – mas, sobretudo, pelos agenciamentos produzidos por linguagens periféricas que forçam a constituição de um campo de reconhecimento e, por consequência, tencionam aquelas relacionadas às esferas nucleares e ao urbanismo, criando assim outra dinâmica de cidade.

Como Sennett (2019) aponta, quem chega necessariamente gera mudanças num determinado local e naqueles que “já estão”, por isso, não se pode desconsiderar que a memória construída pelo texto/símbolo “sinpapeles” é fruto de disputas em que se coloca não apenas o “direito de aparecer” por parte daqueles(as) que vivenciam a condição de ilegalidade e, com isso, “o direito a ter direitos”, como também a redefinição do espaço semiótico da cidade, mediante a irrupção do novo arranjo sígnico. Com isso, o signo “sinpapeles” constrói a memória não apenas dos(as) imigrantes “sem documentos”, mas de um conjunto de linhas de força que atuam sincronicamente na cultura. Com isso, há a emersão de espacialidades que, de diferentes modos, ressignificam uma localidade e passam a construir a cidade. Trata-se, ainda, do indicativo dos conflitos sociais e culturais presentes numa região e que a qualifica enquanto espaço de diversidade tensiva.

Nesse sentido, a cidade se constitui e se expande por meio de textos culturais e memória(s) caracterizada(s), essencialmente, pela diversidade, a(s) qual(is) se constitui(em) na fronteira entre diferentes códigos, como o verbal, o tipográfico, o gestual, a escrita/ grafite, como também entre diferentes sistemas, como a cidade e o urbano. Aqui, cumpre ressaltar que, a despeito do grafite “sinpapeles” ter sido apagado poucos dias após a ação, o símbolo mnemônico persiste. Como Lotman afirma, um texto “proibido não desaparece, mas, sim, conserva na periferia seus reguladores sistêmicos” (LOTMAN, 2000, p. 76)25 e, uma vez traduzido pela fronteira instituída entre distintos sistemas e contextos culturais, muitas vezes, distantes no tempo, pode vir a irromper novamente na cultura, mesmo que com outra configuração sígnica.

 

Considerações finais

Pela discussão aqui proposta, buscou-se indicar a maneira pela qual o artefato gráfico urbano “sinpapeles” se articula como um símbolo mnemônico semioticamente heterogêneo, constituído por distintos códigos, os quais inclui o verbal, o tipográfico e o gestual – mais especificamente, o escrever/ grafitar – que contribuem para amplificar os sentidos produzidos pelo arranjo sígnico. Ao mesmo tempo, sobretudo no que concerne à profusão do gesto de grafitar que caracterizou a ação “sinpapeles”, ocorre a tradução gráfico-visual de um contexto social específico, relativo à grande quantidade de imigrantes que vivem na condição de ilegalidade – que não se limita às cidades de Barcelona e Madri, mas que, cada vez mais, coloca-se como uma questão global –, transformando-os, assim, num texto cultural.

Ao promover tal representação, constrói-se a memória daquilo que o referido grupo social “quer” e/ou deseja que seja lembrado acerca dele próprio o qual, por sua vez, passa a articular um determinado espaço semiótico de relações. Além disso, não se pode desconsiderar a dimensão performática do signo verbal “sinpapeles” no espaço da urbe que, ao nomear a condição dos “sinpapeles”, confere a eles(as) outra condição existência. Trata-se, conforme apontamos, de um modo de representar que tanto expõe a condição dos “sem documentos” quanto resguarda a individualidade de cada um(a) das inúmeras formas de repressão policial, dada a extrema condição de vulnerabilidade vivida por eles(as), visto que colocar-se em evidência pode custar a expulsão do país onde vivem.

Tal processo envolve uma dupla articulação, visto que a constituição da esfera de reconhecimento da condição de precariedade dos “sem documentos” no espaço público ocorre mediante um símbolo mnemônico que, antes de tudo, volta-se para o presente, assim como é dotado de uma virtualidade que, necessariamente, indica um vir a ser acerca da permanência, ou não, da condição de ilegalidade desses sujeitos.

A nosso ver, nesse aspecto reside a especificidade da ação, visto que ser reconhecido por outras esferas sociais ocorre, necessariamente, pela memória que intervém e, ao mesmo tempo, constrói a urbe, o que potencializa ainda mais os sentidos que o referido texto cultural é capaz de produzir. Com isso mostra-se, de que maneira, um símbolo mnemônico pode vir a ser um instrumento de mobilização social cuja perenidade, por sua vez, decorre da sua dimensão pancrônica, assim como mobiliza a constituição de uma esfera de reconhecimento social que não se esgota no presente, mas que oferece uma possibilidade de futuro.

 

Referências

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Data de Recebimento: 07/05/2024
Data de Aprovação: 20/05/2024


1  Este acontecimento foi presenciado pelos autores em virtude da realização de estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madrid entre 2018 e 2019.

2  Pela gramática normativa, a palavra gerada pela junção do sufixo “sin” e a palavra “papeles” deveria ser escrita com a letra “m”, pois não se pode utilizar a consoante “n” antes das consoantes “P” e “B”.

3  Link para a conta <https://www.instagram.com/sin.papeles/>. Conta situada na Espanha, aberta em fevereiro de 2017.

4  No original: “Un artista llamado 'Sinpapeles'”.

5  No original: “‘Sinpapeles’, el graffiti que remueve conciencias en Barcelona”.

6  No original: “Mi intención es poner un tema de debate sobre la mesa. Le recuerdo a todo el mundo que estamos aquí limpiándote la casa, poniendo tu comida en la mesa, reformando tu cocina o vendiendo una cerveza por un euro en el centro de Barcelona, y que seguramente hay alguien con papeles beneficiándose de todo esto".

7  No original: “el de remover conciencias”.

8  Link no youtube para um vídeo curto feito após a realização do workshop: <https://www.youtube.com/watch?v=u7CdeTIDW28>.

9  No original: “Al final mi firma se ha convertido en algo político. La ley me puede juzgar por una firma, no por un movimiento”.

10  No original: “[...] una interpretación de los acontecimientos, sino la memoria de ellos, pueden cumplir para una colectividad la función de signos de existencia”.

11  No original: “El texto de este tipo siempre es más rico que cualquier lenguaje aislado […] El texto es un espacio semiótico en el que interactúan, se interfieren y se autoorganizan jerárquicamente los lenguajes”.

12  No original: “El significado del símbolo no es algo constante”.

13  No original: “En este caso, el símbolo separado actúa como un texto aislado que se traslada libremente en el campo cronológico de la cultura y que cada vez se correlaciona de una manera compleja con los cortes sincrónicos de ésta”.

14  No original: “Complejo mecanismo semiótico generador de cultura, la ciudad puede cumplir su función sólo si en ella se mezclan un sinfín de textos y códigos heterogéneos, pertenecientes a diferentes lenguas y niveles […] La ciudad es un mecanismo que recrea una y otra vez su pasado, que obtiene así la posibilidad de encontrarse con el presente en el plano de lo sincrónico. Ciudad y cultura se oponen al tiempo”.

15  No original: “La ciudad artificial ideal, plasmación de la utopía racionalista, debía carecer de historia, en la medida en que el nuevo Estado significaba la negación de las estructuras que históricamente lo habían formado. Esto suponía la construcción de la ciudad en un nuevo lugar y, de conformidad con ello, la destrucción de todo “lo viejo” que en él quedase. […] Sin embargo, la existencia de historia es una condición indispensable de un sistema semiótico operativo. La ciudad, surgida de golpe gracias a un gesto de demiurgo, no tiene historia y está sometida a un plan único e irrealizable”.

16  No original: “un texto fuera de contexto”.

17  No original: “La conciencia, tanto la individual como la colectiva (la cultura), es espacial. Se desarrolla en el espacio y piensa con las categorías de éste”.

18  O autor ainda indica a existência de três características operativas, ou seja, “que significam sua realização” (SILVA, 2014, p. 137) – a cenaridade, a precariedade e a velocidade – e uma pós-operativa, ou seja, posterior à realização do grafite, a fugacidade.

19  No original: “[…] como factor estructurante de la relación en público” e “consentir una indefinición de partida que permita ganar tiempo antes de interpretar correctamente qué es lo que el orden de la interacción”.

20  No original: “gestos son movimientos corporales, en los que se manifesta la existencia”.

21  No original: “explicación causal satisfactoria”.

22  No original: “rascar, arañar una superfície”.

23  No original: “sacar algo presionando”.

24  No original: “No hay ningún pensamento, que no se articule a través de um gesto”.

25  No original: “fue prohibido no desaparece, sino que se conserva en la periferia de los reguladores sistémicos”.