Entre a circulação e a fixação: a ocupação da Praça da Matriz e seus arredores pela população em situação de rua em São José dos Campos/SP, Brasil


resumo resumo

Thamires Vieira Martins de Melo
Lidiane Maria Maciel
Fabiana Felix do Amaral e Silva



Introdução

Este artigo discute a condição da população em situação de rua em São José dos Campos, no estado de São Paulo, e, em especial, concentra sua reflexão no microcosmo de interação social do Largo da Matriz durante as obras de revitalização do centro. Em 2022, a Prefeitura Municipal de São José dos Campos/SP lançou o projeto “Urbaniza Centro”, neste mesmo período se discutiam também os dados municipais publicados em 2019 sobre o aumento significativo da população em situação de rua na cidade. Segundos tais dados, cerca de 800 pessoas estariam nesta situação (Silva, 2023), e elas eram cada vez mais visíveis, pois se encontravam embaixo das marquises dos comércios, nos semáforos e nas portas de supermercados.

Neste cenário, além dos conflitos rotineiros vinculados à ocupação dos espaços anteriormente citados, observa-se a disputa pelos espaços públicos que normalmente são pontos de paradas dessas populações, como as praças, as calçadas e, propriamente, a rua. As interrelações são travadas com o poder público, atento por meio de seus programas de retirada da população em situação de rua desses espaços, e com outros indivíduos na mesma situação. A Praça da Matriz foi um desses espaços de circulação e parada que foi completamente alterado pelo projeto de revitalização.

Desta forma, com a finalidade de estudar essa tensão, realizou-se por meio da observação de campo na região central, ou melhor, na área localizada na Praça Padre João Marcondes Guimarães, antiga Praça João Pessoa, também conhecida popularmente por Largo da Matriz ou Praça da Matriz. A partir do recorte espacial escolhido — o Largo da Matriz —, utilizou-se como método a descrição etnográfica (Magnani, 2002).

Por meio de entrevistas, conversas informais, observações das ações cotidianas e pessoas que habitam esses espaços, foi possível compreender “suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc.” (Magnani, 2002, p. 15)1. As observações se deram em diferentes etapas, iniciando em abril de 2022 e finalizando em outubro de 2023, considerando sempre que o comércio central em dias de funcionamento conferia grande movimentação de pessoas à região. Os sábados também foram incluídos por apresentarem uma diminuição no fluxo de pessoas. Nas citações diretas, para as pessoas abordadas, foram utilizados nomes fictícios nos diálogos transcritos no artigo2.

As observações foram feitas conforme a realização das etapas da revitalização. Ao final, constatou-se que a revitalização estimulou a circulação da população em situação de rua nas áreas comerciais, promovendo uma mudança na cartografia da circular e da resistência dessa população (Silva, 2023). Neste momento em que se implementou a “urbanização do centro” também se registrou a mudança de endereço dos equipamentos que atendem a população em situação de rua3.

O artigo está organizado em três partes. A primeira delas abre a discussão com uma reflexão sobre o uso dos espaços públicos pela população de rua, para em seguida concentrar-se na exposição do plano de revitalização do centro, realizando uma reflexão mais ampla sobre essa estratégia atual na gestão de diferentes municípios que visam a “retomar” a potência comercial das áreas centrais. A terceira parte do artigo se dedica a apresentar as percepções etnográficas das autoras que assinam esse artigo sobre o processo de deslocamento da população em situação de rua durante o processo de revitalização do centro, bem como alguns atos de resistência ocorridos neste momento.

 

A urbanização e os usos do espaço público pela população em situação de rua

 A população nomeada como de “rua” se apresentou ao longo da história como residual no processo de urbanização e industrialização, configurando uma população sobrante que, devido a particularidades, não se adequou às exigências do mercado de trabalho. Com base em uma análise histórica, sabe-se desde Engels (1845) que, na nova organização social capitalista, apenas o trabalho assalariado garantiria o sustento das condições de vida, incluindo o acesso à moradia, à alimentação, ao vestuário e aos demais serviços necessários à vida urbana.

Logo, em uma perspectiva histórica, os deslocados da terra — sobretudo migrantes frutos do êxodo rural, que não se “adaptaram” à nova ordem vigente — compuseram o grupo dos marginalizados. Para ele, o espaço de acolhimento existente são o nascente espaço público (as ruas, as calçadas, as praças) e os espaços institucionais das igrejas católicas, que, por princípios éticos, acolhem os miseráveis, sempre sob protestos daqueles para quem a conquista de espaços privativos foi sinônimo de sucesso e adaptação à nova ordem. É longa a disputa da população em situação de rua pelo direito de utilizar a rua como espaço de permanência. As funções básicas, consideradas como domínio privado, como dormir, se alimentar, se limpar ou simplesmente “estar”, nem sempre são permitidas.

A filósofa Hannah Arendt, na obra A condição humana (1958), ofereceu-nos uma reflexão fundamental sobre o conceito de espaço público, colocando sobre ele a marcação do comum, espaço da pluralidade da ação política, construído por todos. Segundo Rodríguez-Alcalá (2014):

 

“Público” foi constituindo-se, dessa forma, por oposição às noções de intimidade e de família formuladas no interior da ideologia burguesa cristã, que foram delimitando o domínio privado, vinculado, com a emergência do capitalismo, à questão econômica da propriedade (cf. SENNETT, 1988; ARIÈS, 1981, 1991; ARENDT, 1958). Esses sentidos estão na base dos mecanismos políticos, jurídicos e administrativos que incidem na constituição e regulamentação do bem público e da propriedade privada, bem como nas normas culturais, estéticas e morais de civilidade, que ditam quais são os comportamentos adequados em público, no encontro com estranhos na rua, ou em privado, na intimidade da casa, com a família e os amigos próximos. (Rodríguez-Alcalá, 2014, p. 275).

               

  Dessa forma, para o planejamento urbano, o espaço público, principalmente as ruas, estão sujeitas à funcionalidade de circulação das mercadorias e serviços privados, não permitindo qualquer ação diferente desta. Assim, não é permitida a fixação de moradia nelas, que deve ser realizada em outras estruturas físicas, como casas ou apartamentos. A formação de um contingente chamado de “moradores de rua” questiona a ordem ideológica urbana, principalmente a centralizada. Ainda mais considerando que os centros das cidades ganham destaque na organização urbana da vida pública, sendo, sobretudo, centros financeiros.

    Para a população em situação de rua, estar nas áreas centrais e públicas assume uma estratégia importante na condução da própria vida. Primeiro porque se sabe que, estando nessas áreas, é possível se beneficiar de algum tipo de trabalho, mesmo que esporádico, e que é possível obter algum recurso por meio da mendicância. Em segundo lugar, porque, nas áreas centrais, a circulação tende a invisibilizar quem está em situação de rua e, por fim, é nessas áreas em que se concentram os serviços da gestão municipal e das igrejas. As igrejas, em especial as católicas, ao longo da história sempre foram espaços de concentração da população em situação de rua nas cidades. Em São José dos Campos/SP não foi diferente. Quando os centros se deslocaram para outras regiões das cidades ou simplesmente se deterioraram pela própria circulação de mercadorias, eles se tornaram alvo de projetos de revitalização, e criaram-se formas de expulsão da população empobrecida, que também sobrevive de trabalhos nessas áreas, aumentando, assim, o nível de vulnerabilidade social.

 

O plano de revitalização do centro de São José dos Campos/SP: Urbaniza Centro

São José dos Campos/SP registrou no Censo Demográfico de 2022 uma população de 697.428 mil habitantes. É um município que cresceu em função do processo de desconcentração da indústria da capital paulista rumo ao interior. Sua história contemporânea se apoia na perspectiva do desenvolvimento tecnológico desencadeado pela produção aeronáutica, em oposição a seu passado vinculado ao tratamento de tuberculosos. Esta fase é reconhecida pelos historiadores como sanatorial (Souza; Zanetti; Papali, 2015).

Em 2020, São José dos Campos recebeu o título de primeira cidade inteligente do Brasil. A certificação foi dada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) utilizando três normas internacionais NBR ISO (37120, 37122 e 37123), regulamentadas pelo World Council on City Data, instituição vinculada ao debate de gestão de cidades da Organização das Nações Unidas (ONU).

Sabe-se que a dinâmica da implementação de certificações esteve associada a um processo de consolidação da gestão neoliberal dos territórios por meio de estratégias de marketing urbano (Forti, 2021). Em São José, essa lógica é legitimada pela produção de uma cidade altamente tecnológica, inovadora, sustentável e inteligente (Forti, 2021; Araújo, 2022), porém estrategicamente localizada em áreas já valorizadas economicamente e que ocultam e não retratam a desigualdade socioespacial da cidade em sua totalidade.

No entanto, a cidade inteligente apresenta problemas urbanos como: o modelo de urbanização disperso e desigual; a intensificação da política urbana aplicada de forma arbitrária, com participação social quase nula; o controle dos territórios por meio de novas tecnologias de vigilância; a criminalização dos movimentos sociais urbanos; uma população em situação de rua que circula entre o centro e a periferia (Silva, 2023; Souza, 2022).

Em 2022, a Prefeitura Municipal de São José dos Campos/SP iniciou uma grande obra de “revitalização” do centro, nomeada “Urbaniza Centro” e que impactou a circulação na área. A política em nada difere de outros casos vivenciados em cidades brasileiras que, nos últimos anos, foram alvo dessa discussão. Segundo a análise de diferentes autores, os projetos que possuem como objetivo “recuperar” a importância das zonas centrais para a classe média e os comerciantes tendem a retirar a população empobrecida dessas áreas. Este processo ficou conhecido na literatura internacional como gentrificação (Smith, 2006).

Frúgoli e Sklair (2009) destacam que, no Brasil, cidades como Salvador, Recife e São Paulo foram alvo dessas iniciativas de requalificação, acompanhando um processo ocorrido em outras décadas em cidades da Europa e Estados Unidos. O que nos chama atenção é que cidades interioranas como São José dos Campos também vêm assumindo essa postura de gestão do espaço urbano. A estratégia de “requalificação” do centro urbano segue uma tendência que tem sido observada em diversos territórios e experiências urbanas. Silva (2020) analisou os diversos planos de urbanização e requalificação do centro da cidade de São José dos Campos, categorizando-os em diferentes momentos históricos, a saber: fase sanitarista (1938-1939); fase funcionalista no período desenvolvimentista (1958-1974); fase funcionalista no período da abertura política (1978-1992); e fase empresarial (1995-2013). Esses projetos de requalificação frequentemente priorizam o uso do espaço para promover a circulação de capital e investimentos imobiliários, muitas vezes às custas da expulsão e do deslocamento da população pobre e vulnerável.

Nas últimas duas décadas em São José dos Campos destacaram-se dois momentos de recortes temporais emblemáticos que ilustram essa situação. O primeiro é o chamado “Programa de Desfavelização de 2000”, que recebeu o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e que promoveu a “requalificação” de áreas centrais por meio da remoção de favelas, conforme documentado por Rosa Filho (2002) e Fantin et al. (2003). O segundo período a ser considerado refere-se ao projeto “Centro Vivo”, cujas discussões iniciais aconteceram em 2010, durante a gestão de Eduardo Cury, e continuaram sob a administração de Carlos José Almeida até 2013 (Silva, 2020). Entretanto, é importante ressaltar que esse projeto não chegou a ser totalmente implementado, tendo sido a proposta elaborada com a contribuição do extinto Instituto de Pesquisa, Administração e Planejamento (IPPLAN). Nesse processo, o slogan de “requalificação urbana” frequentemente esteve associado à expulsão da população de baixa renda de áreas irregulares e/ou favelas. É relevante destacar o projeto “Centro Vivo”, o qual se alinhava ao padrão de amplas iniciativas de revitalização de núcleos urbanos, semelhantes às empreendidas em São Paulo e Rio de Janeiro. Esse projeto ganhou impulso devido à viabilidade de empregar o mecanismo urbano das Operações Urbanas Consorciadas4, que oferecem oportunidades para investimentos privados no contexto urbano (Silva, 2020).

O “Centro Vivo”, de certa forma, representou um ponto de inflexão em São José dos Campos no que diz respeito à consolidação do discurso de requalificação urbana e, mesmo que não tenha sua implementação concluída, tem servido como referência para os demais projetos e obras urbanas no centro da cidade. Isso está em concordância com Silva (2020), que reforça o debate de Smith (2006) ao apontar que: “os termos re-significar, revitalizar, re-qualificar, regenerar, e outros mais, que se iniciam pelo prefixo comum ‘re’, encobrem os conflitos sociais que deveriam ser objeto das políticas públicas e sociais” (Silva, 2020, p. 444). Silva (2020) nos indica que esses conceitos redefinem o fenômeno de exclusão das camadas populares do centro, enxergando-o como parte de um processo que é visto como “inevitável”, quase como um convite à retomada da centralidade por parte da classe média alta, como discutido por Smith (2006). Além disso, é importante observar que a população em situação de rua também é um exemplo desses grupos marginalizados, os quais, por meio de estratégias de sobrevivência, têm ocupado esses espaços urbanos.

Urbanizar o centro significa, na visão dos planejadores, criar espaços de livre circulação. Conforme mostrado na Figura 1, sugere-se que as pessoas e os carros circulem em intensidade, não havendo espaço para parada, algo que impactará diretamente a população em situação de rua. Segundo informações institucionais, “a obra [...] vai tornar a região central mais harmônica, agradável e, consequentemente, mais humana. O investimento será de R$25 milhões” (PMSJC, 2022). A antropologia da infraestrutura nos ilumina, considerando que essa postura nos traz reflexões importantes sobre o plano de revitalização. Observa-se que:

 

As infraestruturas não são uma coisa em si, mas um conjunto de relações entre tecnologia e formas de organização social. A antropologia das infraestruturas foi, inicialmente, o estudo das relações heterogêneas que constituem, estabilizam e mantêm em operação as infraestruturas. Pesquisas etnográficas passaram a abordar as infraestruturas como articulações de materialidades com atores institucionais, regimes legais, políticas, práticas de conhecimento e cultura, que estão em constante formação através do espaço e do tempo5.

 

Desta forma, verifica-se que o projeto político lançado em fevereiro de 20226 teria como prazo de finalização o mês de novembro do mesmo ano e trazia uma série de elementos que visavam a colocar a população sempre em circulação. No ínterim, o antigo prefeito de São José dos Campos abandonou a pasta para concorrer a vice-governador do Estado de São Paulo. Segundo o projeto, ele remodelou o centro considerando a drenagem, a caminhada e o paisagismo:

 

Drenagem

O projeto prevê melhoria da drenagem existente, garantindo melhor vazão à água pluvial. Com a obra, serão evitados empoçamentos, sejam eles na rua ou no passeio.

Caminhada

A revitalização dará uma nova paginação às calçadas, trazendo cores trabalhadas em um mosaico, o que dará mais vida ao dia a dia do centro. Além disso, vai ampliar o espaço de caminhada para os munícipes. Ou seja, a Prefeitura vai assegurar mais acessibilidade e segurança para todos que utilizam a região.

Paisagismo

A Prefeitura vai implantar mobiliário urbano composto de floreiras, bancos, lixeiras e paraciclos. Será implantado um novo paisagismo, complementando o existente, além de todo um mobiliário que dará além da facilidade de locomoção, um conforto para os munícipes ao longo do dia, seja para fazer compras, alimentação, turismo e trabalho (PMSJC, 2022, grifos nossos).

 

Figura 1 - Urbaniza Centro, 2022

Fonte: imagem ilustrativa (PMSJC, 2022).

 

Verifica-se, então, que os projetos de intervenção em áreas centrais têm limitado sua visão à dimensão da circulação, negligenciando a importância de outros usos do espaço público. Nesse contexto, é notável que as praças, que historicamente desempenharam um papel crucial como locais de convívio, troca social e descanso, perdem sua relevância e vitalidade. Quando a ênfase recai apenas na circulação rápida e eficiente para a comercialização, a ocupação que gera outras sociabilidades tende a ser dispensável. Acredita-se que, nesse contexto, o projeto pode ter como objetivo a expulsão da população vulnerável economicamente, uma vez que sua presença na visão do mercado imobiliário desvaloriza economicamente o espaço urbano.

Em São José dos Campos, há um conflito aberto entre os diferentes atores que vivem em função do centro da cidade. Entre eles, têm-se antigos moradores, trabalhadores informais, pessoas em situação de rua, comerciantes e consumidores. Em outros contextos municipais também se observa esta questão. O estudo de Rodríguez-Alcalá (2014) sobre as dinâmicas da área central da cidade de São Paulo apresenta, por exemplo, as diferentes experiências nas mediações da Praça da República. A autora, ao valorizar os discursos dos sujeitos que vivenciam o espaço da Praça e suas intermediações, demonstra os conflitos que nascem das relações e usos dos espaços públicos por populações em situação de vulnerabilidade — pessoas em situação de rua, trabalhadores do sexo, comerciantes informais — e outros moradores de classe média.

              No caso estudado, o Largo da Matriz, em São José dos Campos, é um espaço importante de circulação e “estadia” da população em situação de rua do município. Neste contexto, considerando a literatura pertinente, verifica-se que os espaços de memória, como as praças de nossos municípios, apresentam uma complexa e multifacetada construção identitária, muitas vezes desconsiderada pelos gestores ou planejadores urbanos como comprometida com uma visão de cidade funcional e tecnicista. Observa-se, então, uma tensão criada na condição da vida urbana. As narrativas, a arquitetura e as manifestações engessadas pela memória coletiva dos vulnerabilizados se fazem presentes, mesmo que invisibilizadas.

 

Cruzando percepções etnográficas sobre o uso e a ocupação do espaço público pela população em situação de rua

A Praça da Matriz, como é popularmente conhecida pelos munícipes de São José dos Campos e que é seu nome de batismo, atualmente tem como denominação Praça Padre João Marcondes Guimarães, em homenagem concedida pela Câmara Municipal ao pároco que celebrava as missas na igreja matriz. Anteriormente, ainda, havia sido nomeada Praça João Pessoa, em homenagem à Revolução de 1930 (Masiero, 2022).

Localizada no marco zero da cidade, o Largo da Matriz fez parte do desenvolvimento da Aldeia de São José do Parahyba7, para a Vila e, posteriormente, a cidade de São José dos Campos. Em sua história, foi inicialmente povoada por um aldeamento jesuíta de índios Guaianazes (1680), tendo sido promovida à categoria de vila por fatores geopolíticos8 (1767) e proclamada cidade em 1864 (Oliveira, 2010; Silva, 2010; Siqueira, 1991).

O Largo da Matriz se mostra carregado de memórias destes outros tempos da cidade joseense. Agê Júnior (1978) descreve a participação de São José dos Campos na abolição da escravatura, quando a notícia da sanção da lei chegou pelo correio e se espalhou: “foguetes subiram de todos os pontos da cidade [...] no Largo da Matriz, reuniram-se e, ao som de pandeiros, dançaram samba até o raiar do dia 15” (Junior, 1978, p. 127-29). Ademais, o espaço onde se localiza o Largo da Matriz já foi o primeiro cemitério da Aldeia de São José do Parahyba. Com o crescimento urbano, ele foi transferido para junto da Capela São Miguel, localizada também na região central (Junior, 1978, p. 114).

O Largo da Matriz era o centro social da cidade. Como aponta Siqueira (1991), ocorriam as festas da semana santa, leilões, quermesses e o carnaval, chamado de “entrudo” à época, que durava três dias em que “a cidade ficava num clima de euforia […]” (Siqueira, 1991, p. 154). No Largo também era compartilhada a tristeza com a morte prematura das crianças: “o Largo sofria toda vez que via partir os pequeninos […]” (Siqueira, 1991, p. 155).

O local servia de passagem dos carros de bois que levavam os animais para o matadouro municipal. Por vezes, algum animal com movimentos bruscos deixava de sobressalto quem ali estivesse: “o Largo tremia de pavor e fremia na expectativa de calamidade, só se acalmando quando os boiadeiros repunham as cordas protetoras nos lugares certos” (Siqueira, 1991, p. 155). Era, ainda, espaço de comícios políticos “com muito falatório, ovações, apupos e correrias” (Siqueira, 1991, p. 156). A igreja matriz, dada como “o maior monumento de fé joseense” tornava-se o “ponto de encontro dos namorados” (Siqueira, 1991, p. 157), momento em que os jovens iam às missas e se encontravam sem a vigilância dos pais.

Com a passagem do tempo, percebeu-se a intensificação de outros usos do espaço, que antes se destacava para recreação e lazer. Atualmente, para além destes usos, ganha notoriedade a circulação de pessoas com diferentes finalidades. Santos (2014) destaca que, no desenvolvimento das cidades capitalistas, o deslocamento é “mais intenso, incessante [...] há menos elegância; não é mais passeio — flânerie, é passagem, que busca e requer rapidez” (Santos, 2014, p. 53).

 

Figura 2 - Antiga Praça João Pessoa, atual Praça Pe. João

Fonte: Pró-Memória (s./d.).

 

Na década de 2000, pesquisas atestaram que o Largo da Matriz, antes do processo de “urbanização do centro”, era o local com maior circulação da população em situação de rua (Silva, 2023). O Largo se localiza ao lado do terminal de ônibus central, a antiga Rodoviária Velha. O local, ao passar por reforma feita pela Secretaria de Manutenção da Cidade, deveria ficar mais bonito. A obra de revitalização, ainda em execução, prevê “novo paisagismo, trocas de pisos danificados e redimensionamento das ilhas de jardim” e “reforço na iluminação” (Masiero, 2022). Dessa maneira, a feira do rolo9 que ali acontecia juntamente com a presença de vendedores ambulantes, se dispersou para o entorno, conforme os registros realizados (Figura 3 e 4).

 

Figura 3 - Reforma na Praça Pe. João

Fonte: registro das autoras.

 

Figura 4 - Vendedores ambulantes na lateral da Praça Pe. João

Fonte: registro das autoras.

 

No Largo da Matriz costuma haver um fluxo grande de pessoas se deslocando, pois ali é um trajeto entre a Rua XV de Novembro e o Terminal Central. As pessoas seguem seus destinos, muitas vezes em direção ao terminal, provavelmente para suas residências — o terminal tem destinos para diversos bairros da cidade — e no sentido contrário, as pessoas vêm ao centro da cidade, local em que se concentram diversos serviços (bancos, cartórios, centros médicos e odontológicos, lojas de conserto de eletrônicos e eletrodomésticos, serviços municipais/estaduais, como PAT, Consórcio 123, Bom Prato) e comércios (lojas de roupas e calçados, shoppings populares, lojas de armarinhos e aviamentos, casas de ferragens, lojas de eletrônicos, de utilidades, mercados, padarias e lanchonetes, o Mercado Municipal), entre outros. Além disso, há espaços de lazer, como a Praça Afonso Pena, a Praça da Telefônica (Praça Cônego Lima) e a Praça do Sapo (Praça João Mendes).

Pelo ponto em frente ao largo passam as linhas de ônibus com destino à Zona Norte, além de contar com diversas lanchonetes e salas comerciais, como consultório de dentista, por exemplo. Rotineiramente, observa-se que na porta desses estabelecimentos há trabalhadoras que oferecem consultas gratuitas e distribuem cartões para as pessoas que transitam pelo local.

 

Figura 5 - A Praça da Matriz em três tempos

Fonte: colagem de fotos de autoria própria a partir do Google Maps (2021; 2022).

 

Nesses espaços, encontramos pessoas como o senhor Pedro10, vendedor ambulante, sempre com objetos dispostos na calçada, entre eles celulares, relógios, bonés e um par de tênis. Rotineiramente bate-papo com as pessoas. Em um dia de observação, por exemplo, ele conversava com uma mulher que se aproximou e se sentou ao seu lado. Ela comentava algo sobre solicitar à assistente social na segunda-feira que lhe desse “passe” (referiu-se ao vale-transporte). Pedro parecia conhecido na região. Algumas pessoas o cumprimentavam com afetuosidade. Certa vez, durante a observação, indagou-se sobre a obra na praça, se ele sabia do que se tratava:

 

Pesquisadora: — Bom dia, com licença senhor, essa obra aí, você sabe o que estão fazendo?

Pedro: — Vão reformar tudo isso daqui, São José estava precisando, vai ficar bonito. (Em seguida me oferece um aparelho de celular) — Tenho um bom aqui pra você.

Pesquisadora: — Eu não estou precisando, já tenho um, obrigada. Mas e vocês como ficam?

Pedro: — (Aponta para o outro lado da rua, onde estão localizados os demais ambulantes e a feira do rolo que foi deslocada). A gente continua, ninguém tira a gente. Já tentaram, mas não tiram. A gente volta, isso está em todo lugar, toda cidade que você vai tem. O centro, diz que vai ficar como o Rio, parte alta e parte baixa. (Pedro, vendedor ambulante. Entrevista realizada em 22/04/2022).

                                                          

Neste espaço, percebe-se que a relação dos ambulantes com a população em situação de rua é grande. Com o Projeto de Urbanização do Centro, ao atingir a Praça da Matriz, muitas pessoas em situação de rua que antes ficavam um tanto dispersas em diferentes espaços da região tenderam a se reunir próximas à marquise de um importante banco da região e de uma loja de utilidades domésticas. Houve a limitação dos espaços de “estada”/“parada” e a intensificação das relações entre as pessoas. Na maior parte das vezes, são homens com cerca de 40 anos, descalços ou de chinelo, de bermuda e regata ou camiseta, sempre procurando por algo no chão ou próximo aos sacos de lixo.

Durante a execução do projeto de urbanização, pode-se observar a formação de um grupo de cerca de dez pessoas em situação de rua, sempre sentadas embaixo da marquise de uma loja de utilidades, onde elas conversavam e portavam sacos pretos com pertences e papelões. Havia uma mulher branca de cabelos curtos, de cerca de 35 anos, que parecia fazer parte do grupo. Havia um homem mais velho, que aparentava ter 65 anos e que não tinha uma das pernas, e um homem que aparentava ter cerca de 30 anos, que vendia balas de goma e oferecia o produto para as pessoas que transitavam pelo local.

O grupo também se deslocava durante o dia, usando a lateral da igreja matriz quando a marquise já não os protegia do sol. O senhor com deficiência se deslocava com dificuldade. Certa vez foi observado que, enquanto o restante do grupo já estava na lateral da igreja, ele fazia uma pausa ao lado de um poste e iniciava movimentos contínuos: deitado com as costas no chão e com a perna para cima, ele girava no chão em volta do poste, utilizando o seu tronco para dar impulso nos movimentos. Em seguida, ele apoiava o pé no poste e erguia o corpo, tirando as costas do chão, alongando-se, enquanto pronunciava algumas palavras que não soubemos identificar.

Uma das mulheres do grupo, a de chapéu Panamá, aproximou-se chamando-o de “papai”, acariciou seu braço, disse algumas palavras e retornou ao grupo, que estava ao lado da igreja, enquanto o senhor com deficiência retomava seu deslocamento. Para as pessoas que se deslocavam pelo Largo, o grupo passava despercebido, no entanto, quando o senhor com deficiência iniciava seus movimentos contínuos, destacando-se na multidão, passava a ser visto pelos transeuntes, que não demonstravam reações.

Durante esta ação observada, também acontecia uma interação entre o homem e a mulher que permaneceram sob a marquise da loja. A mulher se sentou e passou a escrever em um caderno, enquanto o homem observava o movimento. Um senhor se aproximou, aparentemente de 70 anos, vestido com camisa, bermuda, boné e uma pochete no ombro, com um “corote” de pinga nas mãos, o qual entregou ao homem de boné vermelho. Eles riram e conversaram, enquanto a mulher permaneceu escrevendo em seu caderno.

O senhor saiu e foi ao encontro do grupo na lateral da igreja. O homem de boné vermelho se sentou ao lado da mulher para conversar, enquanto bebia o corote e ela prosseguia escrevendo. Ele se levantou dizendo algo à mulher, que se levantou e foi em direção a um saquinho de lixo, que abriu para pegar uma garrafa pet e sentou-se embaixo da marquise novamente, colocando um pouco da pinga na garrafa. O homem de boné vermelho saiu e foi ao encontro do grupo, e a mulher continuou sentada escrevendo.

 

Figura 6 - Grupo Pop Rua na lateral da igreja matriz

Fonte: registro das autoras.

 

Figura 7 - Mulher escrevendo embaixo da marquise

Fonte: registro das autoras.

 

O grupo estava no Largo da Matriz durante os dias seguintes em que foi realizada a observação. Na sexta-feira, o que diferiu foi a dinâmica do espaço: o banco estava aberto e havia um fluxo de pessoas entrando e saindo, e havia um número maior de pessoas se deslocando pelo largo. No sábado, o número de pessoas se deslocando no local era menor. O banco estava fechado e em frente havia uma ação da Aliança da Misericórdia11, um grupo de cerca de vinte pessoas, das quais metade eram adolescentes, estavam com os rostos pintados de palhaço e perucas coloridas, havia uma pessoa com violão e uma caixa de som. Todos vestiam camisetas com imagens de Nossa Senhora da Aparecida ou com frases religiosas.

O grupo da Aliança da Misericórdia prosseguia com a ação, abordando outras pessoas presentes no local. Em determinado momento, se dirigiu ao grupo de pessoas em situação de rua12, fez orações e, em seguida, ao que parece, uma das pessoas do grupo da Aliança, uma jovem com aproximadamente 18 anos que usava luvas de látex, fez um curativo na perna de um homem do grupo Pop Rua. Enquanto isso, outros participantes do grupo da Aliança faziam uma pregação e tocavam violão. O senhor com deficiência estava encostado em uma árvore mais próxima à ação da Aliança da Misericórdia e o restante do grupo Pop Rua estava na marquise da loja de utilidades, permaneceu neste local e não se deslocou para a lateral da igreja, provavelmente para acompanhar a ação do grupo Aliança.

 

Figura 8 - Apresentação do grupo Aliança da Misericórdia

Fonte: registro das autoras.

 

Figura 9 - Abordagem do grupo Aliança ao grupo Pop Rua

Fonte: registro das autoras.

 

Após a finalização da obra de revitalização, percebeu-se um menor fluxo da população em situação de rua, conforme registro (Figura 10), tanto que o grupo Pop Rua não foi mais avistado na Praça da Matriz e no seu entorno. Durante a observação realizada no período posterior à conclusão das obras na Praça da Matriz, abordou-se um grupo de três pessoas em situação de rua que estava próximo ao chafariz da praça, constituído por uma mulher que estava sentada no chão e por dois homens em pé:

 

Pesquisadora: Estou fazendo uma pesquisa sobre a Praça da Matriz, o que vocês acharam da reforma da praça?

Paulo: A praça ficou bonita!

Pesquisadora: Mas e vocês estão podendo ficar aqui?

Carolina: Não.

Paulo: Não! A gente não pode ficar mais, a GCM13não deixa.

Antonio: A Bárbara14 tá brava.

Paulo: Agora a gente tá tendo que dormir no mato perto do Banhado15

(Carolina, Antonio e Paulo, pessoas em situação de rua. Entrevista realizada em 12/10/23).

 

Figura 10 - Praça da Matriz após a obra de revitalização

Fonte: registro das autoras.

 

No segundo semestre de 2021, o serviço de atendimento à população em situação de rua em São José dos Campos foi alterado. Antes havia uma concentração próxima à centralidade, mas, após o reordenamento da política de abrigamento, o serviço passou por uma periferização, priorizando as zonas leste e sul da cidade. Bairros como Torrão de Ouro, Majestic, Serrote e Vila Tesouro, que estão a mais de 10 quilômetros do centro, foram priorizados pela nova política. A nova gestão de abrigamento foi realizada pari passu com a revitalização do centro. Ainda em 2023, também foi lançada a campanha “Não dê esmola, dê cidadania”, cujos locais de grande divulgação estão concentrados no centro da cidade conforme a figura 11:

 

Figura 11 - Campanha municipal “Não dê esmola, dê cidadania”

Fonte: registro das autoras.

 

Sobre os modelos analíticos diante da observação etnográfica, como propõe Magnani (2002), o Largo da Matriz se associa à categoria mancha, que consiste em “áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam [...] uma atividade ou prática predominante” (Magnani, 2002, p. 22). Já o grupo Pop Rua se apresenta como a categoria pedaço, ou seja, representa um grupo de pessoas que “se reconheciam como portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo e modos de vida semelhantes” (Magnani, 2002, p. 22). A mancha do Largo da Matriz se constituiria como um ponto de referência para atividades tanto de lazer como bancária e comercial.

As interações presenciadas durante a observação do grupo Pop Rua permitiram ressaltar o que Magnani (2002) coloca contra uma banalização da vida nas cidades. Durante as observações realizadas, evidenciaram-se sistemas de troca, pontos de encontro e arranjos realizados pelo grupo Pop Rua e o espaço do Largo da Matriz, não apenas como local de passagem. Foi possível perceber uma riqueza de interações: conversas animadas, compartilhamento de bebida e criatividade na obtenção desse recurso, a mulher que escrevia em um caderno em meio ao fluxo de pessoas transitando, a demonstração de afeto com o “papai”.

Estas sociabilidades remetem ao passado reescrito no presente. O Largo, que era o centro social da cidade, com festas, comícios e encontros de namorados, sofre a ação do tempo e aponta para novas formas de socialização, mas que não deixam de apresentar resquícios deste outro tempo, pois ainda se veem encontros de namorados, troca de afetos e manifestações religiosas. Como aponta Halbwachs (2006, p. 68): “mas, basta que a atenção se volte para esse lado para que nos apercebamos que os costumes modernos repousam sobre as antigas camadas que afloram em mais de um lugar”.

As experiências vivenciadas no largo passam a compor a memória coletiva de São José dos Campos e estão relacionadas diretamente com as memórias de cada pessoa que transita ou ocupa, mesmo que temporariamente, este espaço. Segundo Halbwachs (2006, p. 53), “a construção da memória individual evoca a memória coletiva na construção das suas lembranças e vice-versa”. Ainda pode-se dizer que, atualmente, o Grupo Pop Rua atualiza a memória coletiva joseense do marco zero da cidade quando participa das atividades de sociabilidade do centro. Para além das trocas comerciais rotineiras e intensas, observa-se a troca de afeto entre o Grupo Pop Rua, a participação nas atividades religiosas e as políticas propostas por diferentes atores e vertentes. Este grupo reescreve neste espaço o uso recreativo, de lazer e sociabilidades, em que um tempo passado era central para a vida dos citadinos de São José dos Campos. Logo, considera-se, como Halbwachs (2006, p. 85), que “toda a memória coletiva tem por suporte um grupo limitado no espaço e no tempo”.

Segundo Rolnik (2004), há um movimento de segregação espacial associado à mercantilização da sociedade e à consequente separação de territórios para cada grupo social. Por fim, pode-se considerar que o largo também permanece como espaço de valor econômico. Se antes havia nele quermesses para arrecadação de dinheiro para a igreja, comícios políticos e passagem dos carros de bois para o matadouro municipal, hoje novas funcionalidades e representações simbólicas se reescrevem de acordo com o novo período histórico-social. Intensifica-se a presença de estabelecimentos financeiros e comerciais de diferentes ordens, formal e informal. Como aponta Rolnik (2004, p. 50-51), “no território popular a superposição de funções e o uso coletivo do espaço é estratégia de sobrevivência”, assim, a organização deste espaço se torna um lócus de luta pela sobrevivência na rua.

 

Considerações finais

Este artigo investigou as questões emergentes sobre a população em situação de rua durante a realização de um projeto de revitalização do centro de São José dos Campos/SP. Recuperou-se inicialmente a historicidade de espaços tais como a Praça da Matriz, a Praça Afonso Pena e a Rodoviária Velha. Discutiu-se a questão desta população frente aos processos de urbanização e mercantilização dos espaços centrais e públicos da cidade, fazendo uso de um trabalho etnográfico cruzado e de registros fotográficos de diferentes épocas. Como elemento estruturante do estudo, selecionaram-se as linhas gerais do “Plano Urbaniza Centro”, as operações realizadas pela gestão municipal e a realocação da população em situação de rua durante este processo. Destacou-se a resistência desta população por meio do “Grupo Pop rua”, dos trabalhadores da feira do rolo, dos ambulantes e dos grupos religiosos que fazem uso de diferentes espaços centrais para o desenvolvimento de suas atividades de sociabilidade e comércio informal.

 A partir do estudo, conclui-se que a população em situação de rua em São José dos Campos se defronta com uma política pública urbana que está em consonância com princípios que regem a gestão neoliberal dos espaços de vida nas cidades, segundo os quais os espaços devem estar subjugados à lógica comercial competitiva, isto é, devem ser seguros para o fluxo dos capitais. As áreas centrais estão em profunda competição com outros lócus de comercialização, como os shoppings centers. Perde-se com isso a possibilidade da construção de um espaço democrático de sociabilidades não subjugadas pelo consumo direto ou indireto de mercadorias. No projeto arquitetônico do “urbaniza centro”, por exemplo, os bancos estão majoritariamente dispostos nas entradas e saídas dos estabelecimentos comerciais e menos nas praças, o que nos chama a atenção para a vinculação direta do descanso relacionado ao consumo.

Neste contexto, não há espaço para a população em situação de rua que, segundo a visão dos projetos urbanísticos de revitalização, atrapalha os negócios, afastando os compradores em potencial dos espaços centrais. Para as pessoas em situação de rua, são poucas as políticas públicas para além das assistenciais de acolhimento, que, atualmente em São José dos Campos, “periferizam-se” em abrigos longínquos do centro, como mostrou o trabalho de Silva (2023).

O estudo dos processos de conflitos na revitalização do Largo da Matriz e das áreas adjacentes nos ajuda a reconhecer os atores vulneráveis que também constroem este território e sua luta pelo direito de permanecerem ocupando a área central, frente a uma memória estética (Rodríguez-Alcalá, 2014) que forçadamente não os incluí, colocando-os numa posição de ocupação indevida dos espaços públicos. Segundo a ideologia de nosso período histórico, os centros precisam de uma nova vida, baseada na glória do passado, por isso, estão revitalizados. A população em situação de rua representaria a decadência dos espaços urbanos.

Por fim, o artigo, ao se posicionar criticamente em relação aos projetos de revitalização, não é necessariamente contrário à existência de planos de melhoramento urbano, mas considera que eles devem também se voltar para as pessoas vulneráveis, construindo situações de maior justiça social e promovendo uma melhor integração dos membros da sociedade que constroem os territórios de vida urbana.

 

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Data de Recebimento: 24/10/2023
Data de Aprovação: 22/04/2023


1  Este outro olhar possibilita visibilizar outros pontos de vista e suas diferentes centralidades e ordenamentos sobre a dinâmica da cidade. Desta forma, a observação etnográfica não consiste numa técnica, mas sim na apreensão da realidade observada que se caracteriza por um novo entendimento, composto por fragmentos do “concreto vivido” (Magnani, 2002, p. 17). Esses fragmentos são identificados pelo etnógrafo em sua totalidade e descritos em categorias para análise e seu reconhecimento em outros contextos. Ela permite um olhar de perto e de dentro, para além das macroestruturas, juntamente com o registro fotográfico das transformações do espaço em questão.

2  Esclarece-se que a pesquisa está amparada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), tendo sido aprovada pelo parecer consubstanciado nº 6.051.541 em 10 de maio de 2023.

3  Essas informações encontram-se na matéria “Prefeitura anuncia a instalação de três novos abrigos localizados nas regiões sul, leste e sudeste/leste que substituirão o abrigo que estava localizado no bairro Monte Castelo”. Disponível em: https://spriomais.com.br/2022/09/06/sao-jose-dos-campos-implanta-3-novos-abrigos-para-populacao-de-rua/. Acesso em: 02 out. 2023.

4  A Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público Municipal com a participação de proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área específica, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental (IPPLAN, 2012).

5  Fonte: https://ea.fflch.usp.br/subcampos/antropologia-das-infraestruturas. Ver verbete de Jean Carlos Hochsprung Miguel e Felipe Figueiredo, elaborado com base na seguinte referência: STAR, Susan Leigh; RUHLEDER, Karen. Steps toward an ecology of Infrastructure: design and access for large information spaces. Information Systems Research, v. 7, n. 1, p. 111-134, 1996.

6  Segundo o Boletim nº 2769 do município, de 11 de fevereiro de 2022, a execução das obras de revitalização foi formalizada pelo Contrato nº 74/22, sob processo administrativo digital 13961/22 (PMSJC; Secretaria de Governança, 2022).

7  Sobre a relação do Largo da Matriz com a fundação da aldeia de São José do Parahyba, ver Silva (2010, p. 50).

8  Como forma de proteção contra as incursões espanholas e de controle da mão de obra indígena, elevaram-se diversas aldeias à categoria de vilas (Oliveira, 2010, p. 81).

9  Local onde se realiza o comércio de produtos, o “rolo” é um sistema de trocas informais. Podem-se encontrar celulares, aparelhos eletrônicos, roupas, e, geralmente, são produtos usados.

10  Nome fictício. Pedro aparentava ter cerca de 50 anos, estava com sua bicicleta e nela havia uma caixa plástica vermelha presa na frente em um suporte, com um saco amarrado em cima e outra caixa atrás na garupa, coberta por um plástico. Ele ainda nos contou que havia ganhado uma casa no bairro Novo Horizonte e que, por ser grande o espaço para ele morar sozinho, alugou-a para um casal por oitocentos reais para vir morar no centro, em um quarto de quinhentos reais (expressou que o aluguel estava caro em São José dos Campos).

11  Associação Privada de Fiéis, ligada à igreja católica, “desenvolve ações para dar real oportunidade de reinserção na sociedade aos marginalizados, sejam pessoas em situação de rua, residentes em favelas ou pessoas em alguma situação de risco” (Aliança Misericórdia, 2016).

12  Aqui denominaremos de “grupo Pop Rua”.

13  Guarda Civil Municipal.

14  Nome fictício. O interlocutor se referiu a uma pessoa que trabalha no Serviço Especializado em Abordagem Social (no município denominado de Apoio Social), que consiste em um serviço que realiza busca ativa e abordagem no território a pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo a população em situação de rua (Brasil, 2013).

15  Considerado o cartão postal da cidade, é um mirante que abriga uma área de proteção ambiental, onde reside há cerca de cem anos uma comunidade de moradores do bairro Jardim Nova Esperança, que é alvo de disputa pela Prefeitura, que pede a desocupação (Silva, 2020; G1, 2023).