Temporalidades cotidianas, devaneios desviantes e territorialidades intervalares no pensamento de Walter Benjamin e Jacques Rancière


resumo resumo

Mariana Falcão Duarte
Ângela Cristina Salgueiro Marques



Introdução

No intuito de compreender e organizar interseções entre os pensamentos de Walter Benjamin e de Jacques Rancière, este trabalho tem como objetivo identificar aproximações entre os dois autores fazendo comparações entre algumas obras e movimentos intelectuais de ambos, ainda que a suas contribuições tenham ocorrido em tempos distintos e que a influência do trabalho de Benjamin nas reflexões de Rancière tenha aparecido de forma explícita apenas em poucos livros, textos e entrevistas dedicados aos temas da política do sensível e da relação entre o processo de emancipação e reconquista do tempo confiscado pelo capitalismo.

Buscando fazer um recorte dentro de um panorama, e construir uma reflexão acerca dos aspectos que caracterizam a quebra do tempo homogêneo, uma ação que aparece tanto nos trabalhos de Benjamin quanto de Jacques Rancière de forma não conectada, este trabalho deseja explorar a presença dos gestos criativos e ficcionais advindos de movimentos de devaneio, capazes de provocar essa fratura no tempo comum.

Através de obras de teor ensaístico, ambos os autores construíram reflexões acerca do ato de romper determinada ordem imposta para tornar legíveis outras possibilidades de experiência do presente, seja através de uma teoria urbana em Benjamin, expressa através das montagens e das constelações, seja através do método da igualdade, que faz aparecer as cenas de dissenso em Rancière. De forma complementar, Benjamin e Rancière delinearam uma estrutura gestual que organiza uma ação criativa dentro da escrita da história e das dinâmicas sociais. Eles exploram o potencial que as experiências sensíveis exercem naqueles que se deixam afetar pelo ordinário, sensibilizando seus leitores para o que é comum, uma vez que será justamente essa afetação o que tornará possível uma experiência em certa espacialidade e uma reconfiguração da partilha do sensível. A partir dessa leitura do ordinário podem ser elaboradas percepções subjetivas, muitas vezes inconscientes e até oníricas, que provoquem rupturas na ordem do mundo a fim de buscar sentido para compreendê-lo.

A partir do ponto de vista dos estudos realizados na interface entre Comunicação e Territorialidades. Nosso intuito é destacar as potencialidades das reflexões realizadas por Benjamin e Rancière acerca da criação poética de temporalidades e territorialidades intervalares que estão intimamente ligadas ao método que cada um deles elabora não apenas para guiar seu trabalho filosófico, mas sobretudo para nos auxiliar a compreender e agir politicamente em nosso cotidiano. Acreditamos que ambos contribuem para a produção de outras legibilidades do mundo vivido, a partir de um manejo com o espaço e com o tempo que questiona uma forma de ordenar a experiência que condiciona o modo como nosso olhar percorre as superfícies do entendimento para conferir sentido a acontecimentos e formas de vida. Ambos propõem outra organização do sensível e outra maneira de pensar as possibilidades de nos posicionarmos no tempo e no espaço (da cidade, do trabalho, da arte, do encontro com a alteridade, da insurgência). Assim, no pensamento de ambos há uma forte presença da espacialidade movente, dos intervalos e da montagem como elementos centrais de um método anti-hierárquico, cujo objetivo é criar uma mise en scène baseada em operações de rememoração, de reformulação e reordenação de narrativas, de deslocamentos que entrelacem discursos os mais distintos na constituição de constelações e mosaicos.

As múltiplas dimensões temporais, espaciais e fabuladoras que a composição (po)ética de constelações alcança, pode permitir, como veremos, a abertura de superfícies e espaços de jogo, capazes de gerar movimentos insurgentes através de um ato que aproxima diferenças e faz circular entendimentos e quadros de sentido dissonantes e inesperados. Ambos investem em uma proposição de abertura do tempo e do espaço como jogo que articula multiplicidades, desloca experiências e aproxima heterogeneidades em arranjos insurgentes voltados para a transformação do mundo vivido.

Rancière reflete acerca da importância da alteração da topografia e da superfície que nossos sentidos percorrem para produzir sentido acerca das experiências que vivemos. Seu método da cena produz dissenso entre o que geralmente é dado a ver (e considerado como inquestionável) e o que pode ser visto a partir das temporalidades intervalares do devaneio e da ficção. Pode dizer-se que, para Benjamin, cada avanço tecnológico interfere no sensível e amplia a margem de manobra das pessoas e coletivos; abre um espaço de jogo (Spielraum), uma zona de experimentação, não apenas individual, mas também, e sobretudo, coletiva, social e política. Sob esse aspecto, acreditamos que uma das dimensões de contemporaneidade do diálogo entre esses autores está no fato de que a produção de cenas e de espaços de jogo se aproxima de uma estética e de uma ética da experimentação, distanciada, para Benjamin e para Rancière, da lógica do espetáculo e do consumo. Ambos se dedicam a políticas do sensível que investem em um tipo de aparecimento político na esfera pública que permita a consideração, a dignidade e o reconhecimento das existências vulneráveis e o compartilhamento de suas narrativas e táticas de resistência.

Assim, ambos acreditam que, ao nos determos sobre a disposição do que está na superfície (vestígios, ruínas, rastros), se torna possível reorganizar um cenário dado, dilatando a experiência do presente e articulando fragmentos que partem da crítica de um objeto, fazendo uma costura do “real” com a imaginação, e ressaltando a importância de se compartilhar as impressões advindas deste mergulho no cotidiano.

Nas obras aqui acionadas para compor nossa abordagem é possível encontrar menções à importância de ações criativas e de escritas ficcionais que são capazes de alargar os sentidos, reelaborar as experiências do presente e construir novos significados a partir de uma reconfiguração da ordem imposta por forças hegemônicas. Partindo de experiências sensíveis na cidade, seja através da empiria delicada, seja através da observação do ordinário e do devaneio em nossos cotidianos, os gestos ficcionais são vistos aqui como parte importante de um processo que busca compreender e alterar as formas de ser e estar no mundo.

               

Cotidiano, experiência e imaginação em Walter Benjamin

Com um gênero de escrita singular, Walter Benjamin não buscou fazer teoria da forma tradicional. O caráter ensaístico de suas obras, e muitas vezes literário, foi duramente criticado em diferentes momentos de sua vida, levando o autor a alterar seus planos profissionais para buscar diferentes formas de contribuir criticamente para a filosofia e a cultura do início do século XX (Oliveira, 2020). A trajetória de composição de suas obras deve ser vista como um processo, cujo último texto, escrito em 1940, as “Teses Sobre o conceito de história”, reúne todas as influências recebidas durante sua vida, que se sustenta principalmente nas influências do romantismo alemão, do messianismo judaico e do marxismo, fazendo desse trabalho final uma “síntese de todo o seu pensamento e o testemunho ansioso de um exilado no limiar da Segunda Guerra” (Gagnebin, 1982, p.16).

Para compreender o desenvolvimento da teoria benjaminiana e de que forma ela se relaciona com as cidades na forma de uma epistemologia urbana, é importante delinear como este objeto se tornou um ponto central nos estudos deste pensador, garantindo protagonismo em diversas de suas obras. Mas antes é vital mostrar de que forma o autor fundamentou sua teoria crítica a partir das influências de Goethe, como a análise da experiência empírica com o objeto urbano foi influenciada pelo próprio objeto, e de quais formas as práticas imaginativas, tomadas como elementos constitutivos da compreensão da cidade, se conformarão como um componente importante desde o princípio de seus estudos.

Walter Benjamin (1993) já havia se detido nos escritos de Goethe sobre uma nova prática investigativa que se dedicava de forma mais rigorosa à experiência direta com o objeto pesquisado quando escreveu sua tese sobre o Romantismo Alemão em 1919 (Jacques; Velloso, 2023). Goethe, em seus estudos sobre a natureza, já havia reivindicado que, a partir de uma postura científica “empatia, intuição e imaginação pudessem ser caminhos para percepções significativas sobre o processo criativo da natureza” (Velloso, 2023, p.80), o que significava defender um empirismo rigoroso na forma de uma abordagem sensível e que possibilitasse um envolvimento maior com a natureza na forma de uma “prática investigativa que dedicasse uma atenção rigorosa a experiência direta” (Velloso, 2023, p.80). Se a “delicada empiria” (Zarte Empirie) da teoria goetheana delineava uma aproximação maior entre natureza e observador, mais apreciativa e qualitativa, e que relacionava sujeito e objeto, em Benjamin essa categoria crítica poderia se ampliar, se estendendo a outros contextos. Segundo Velloso, nos termos de Benjamin, o conceito romântico de observação de Goethe deveria avançar, propondo uma análise que prosseguisse para além da relação com a natureza, incorporando também à reflexão sobre outras formas de expressão e sobre a história.

Uma das primeiras experimentações de Benjamin em torno do urbano começou a partir da viagem a Nápoles em 1924, quando tiveram início suas práticas de observação das cidades. Num exercício mais experimental de análise, especialmente quando comparado às críticas de Berlim e Paris feitas em trabalhos posteriores, os escritos sobre a cidade italiana são consideradas por Gilloch como “a gênese e a tentativa inicial de articulação de um número de considerações metodológicas e temáticas vitais” (Graeme GILLOCH, 1996, p. 22), e que Oliveira (2020) definiu como experimentações epistemológicas e literárias que serviriam como base para o futuro projeto das Passagens.

Gershom Scholem (1989), amigo e destinatário de muitas obras de Benjamin e autor do prefácio de Diário de Moscou, escrito por Benjamin em 1926, descreve a maneira livre e desimpedida com a qual o autor havia escrito suas impressões sobre a cidade, onde ele passou dois meses entre 1926 e 1927.

 

21 de dezembro. Andei ao longo de toda a Arbat e cheguei à feira no bulevar Smolensk. O dia estava extremamente frio. Enquanto andava, comi o chocolate que comprara no caminho. As barracas montadas ao longo da rua vendiam enfeites de Natal, brinquedos e artigos de papel. Na fileira de trás, venda de ferragens, utensílios domésticos, sapatos etc. (BENJAMIN, 1989, p.47)

 

No prefácio do livro, Scholem (1989) descreve como a viagem de Benjamin havia sido fortemente influenciada por seu amor a Asja Lacis1, seu interesse em compreender com maior profundidade a situação da Rússia no contexto do regime comunista de Stalin, de sondar uma possível filiação ao partido Comunista, além de buscar estabelecer vínculos com editores de publicações as quais ele poderia vir a contribuir com seus textos. Mas Benjamin já havia firmado, antes mesmo da viagem a Moscou, compromissos literários que o levaram a fazer um mergulho na cidade para tentar compreender melhor a sua fisionomia, dando origem a quatro publicações. Em uma delas, um ensaio para a revista Die Kreatur, Benjamin apura as anotações do diário e funde “observação e imaginação de maneira peculiar e intensa” (1989, p.12). Para além das análises fisiológicas e táteis da cidade, os escritos de Diário de Moscou nos mostram um autor cuja crítica incorporou análises políticas e socioeconômicas relacionadas ao futuro da URSS e quanto às possibilidades de uma sociedade socialista, dando a ver uma cidade de muitas camadas (Gagnebin, 1982).

 

A parte inferior da Catedral de São Basílio poderia ser o andar térreo de uma magnífica mansão boiarda. As cruzes sobre as cúpulas parecem-se amiúde com gigantescos brincos pendurados no céu. Luxo que se instalou na cidade empobrecida e sofrida, como tártaro numa boca doente: a loja de chocolates N. Kraft, a elegante butique da moda na Petrovka, com seus grandes vasos de porcelana, frios e horríveis, por entre as peles. - O mendigo não é agressivo como no Sul, onde a impertinência do esfarrapado trai ainda um vestígio de vitalidade. Aqui, trata-se de uma corporação de moribundos. Sobretudo nos bairros onde os estrangeiros têm seus negócios, as esquinas são cobertas de trouxas de farrapos, como se fossem camas num grande hospital a céu aberto chamado "Moscou". A mendicância nos bondes é organizada de maneira diferente. Certas linhas circulares têm longas paradas no itinerário. Nelas, os mendigos entram sorrateiramente, ou uma criança coloca-se num canto do bonde e começa a cantar. Depois recolhe os copeques. Muito raramente vê- se alguém dando esmolas. A mendicância perdeu seu pilar mais poderoso: a consciência pesada da sociedade, que abre as carteiras mais facilmente que a piedade. (Benjamin, 1989, p.32)

 

O entendimento do conceito de empiria delicada nos permite avançar na obra de Benjamin para compreender a importância que o cotidiano das cidades e as ações criativas encontram na obra deste autor. Segundo Velloso (2023, p.83), a empiria delicada poderia se configurar como fundamento da teoria da experiência de Benjamin, onde seria “a condição de possibilidade do conhecimento cotidiano dos lugares de uma cidade”, uma vez que, ao demandar do observador a reflexão, se torna condição da narrativa e da crítica. Sendo assim, o cotidiano das cidades se torna para Benjamin um elemento tático e háptico, onde estarão reunidos fenômenos particulares e fatos singulares cujos escritos irão cristalizar o “conceito de locus da experiência moderna” (Velloso, 2023, p.83). Para se conhecer a cidade, é necessária uma atenção que fosse delicada e rigorosa ao mesmo tempo, o que transforma este grande objeto em um misto de conexões e possibilidades de conhecimento e ação.

Ao retornar para Berlim e escrever o Diário de Moscou, ocorre um ponto de inflexão na teoria benjaminiana. A partir da experiência corpórea sensível, Benjamin percebe que as cidades promovem experiências específicas, e as reflexões advindas das experiências urbanas inauguram novas formas de pensar. Benjamin percebe então a necessidade de reformular a noção de experiência e crítica, sendo necessário, após a imersão nos objetos-cidades, um certo distanciamento para que seja possível compreendê-las por inteiro: “Por meio de Moscou se aprende a ver Berlim mais rapidamente que a própria Moscou.” (Jacques, 2018, p.155).

Ao desenvolver seu conceito de experiência do objeto-cidade, Benjamin enfatizou a importância de uma imersão no cotidiano do objeto, uma vez que seria através das imagens advindas dessa experiência que derivaria sua reflexão (Jacques; Velloso, 2023). Benjamin passa a elaborar um pensamento por imagens, que transformam a crítica através de uma abertura. Na consideração da cidade como materialidade espaço-temporal e como uma ação que induz a uma experiência e seus modos de vida, soma-se a crítica imanente e programática. Na crítica imanente, é necessário mergulhar dentro do objeto analisado, trazendo à tona as “articulações internas” dos fenômenos para, posteriormente, reconfigurar suas partes. Já na crítica programática, focada na materialidade da obra, há uma busca pela compreensão das ressonâncias que o objeto-cidade provoca na atualidade de quem o experiencia.

A materialidade da obra ou de um acontecimento seria para Benjamin, justamente “a concretização de uma possibilidade no momento histórico em que obra e acontecimento se realizam” (Velloso, 2023, p.81), Segundo Gagnebin, “a crítica materialista não tem como meta estabelecer a verdade definitiva sobre uma obra ou um autor, mas tornar possível a descoberta de novas camadas de sentido até então ignoradas.” (1982, p.40). Nesse sentido, “a relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt)”. (Benjamin, 2004, p.15)

Tomando a cidade como fundamento da experiência, ela e seu cotidiano se tornam para Benjamin a condição da reflexão nas quais o autor irá se expressar em suas “imagens-pensamento-cidade” (Velloso, 2023, p.90). Experimentar a cidade significava experimentar também diferentes espaços e tempos, numa dinâmica que é simultaneamente consciente e subconsciente, onde seria fundamental permanecer sensível ao que surge diante dos olhos. Benjamin explicita a importância do mergulho e do afastamento do objeto-cidade, se colocando em um lugar de afetação para que seja possível perceber as minúcias na aparente trivialidade do espaço urbano:

 

GUICHÊ DE ACHADOS E PERDIDOS

OBJETOS PEERDIDOS. O que torna tão incomparável e tão irrecuperável a primeiríssima visão de uma aldeia, de uma cidade na paisagem, é que nela a distância vibra na mais rigorosa ligação com a proximidade. O hábito ainda não fez sua obra. Uma vez que começamos a nos orientar, a paisagem de um golpe desapareceu, como a fachada de uma casa quando entramos. Ainda não adquiriu uma preponderância através da investigação constante, transformada em hábito. Uma vez que começamos a nos orientar no local, aquela imagem primeira não pode nunca restabelecer-se. (Benjamin, 1995, p.43)

 

É fundamental compreender o contexto que irá fundamentar a teoria a partir da qual Benjamin vai explorar a importância de um mergulho no cotidiano para observação das minúcias do ordinário, explorando a experiência no tempo presente (Erlebnis), ou de uma experiência que permita a rememoração e um entendimento da dimensão histórica através das experiências urbanas (Erfahrung).

Em Rua de mão única, texto de Benjamin publicado em 1928, já é possível perceber a alteração na forma com que o autor constrói seu texto, que agora é feito através dos fragmentos de imagens-pensamento, aqui entendidas não como metáforas, mas como pares tensionados. É uma escrita que não segue um estilo argumentativo, dedutível e linear (Gagnebin, 1982, p.33), mas que incita a imaginação, pois o que os fragmentos têm de inacabado é justamente o que permite outras possibilidades de encaixes e nexos, abrindo brechas para ações inventivas acerca do que se é lido: “As citações no meu trabalho são como os ladrões de grandes caminhos que aparecem do nada e despojam o caminhante de suas convicções.”(Benjamin, 1995, p.61). Sob esse aspecto, Benjamin demonstra que as imagens de pensamento não são imagens prontas, elas não elucidam o pensamento, mas criam conexões que só encontram sentido na percepção individual, pois há sempre uma incongruência.

A forma com que Benjamin narra sua experiência urbana na cidade moderna, a principal protagonista dos fragmentos de Rua de Mão Única, tal como uma deambulação por uma rua de Berlim, foi profundamente influenciada pelas narrativas dos surrealistas, as quais ele vem a citar posteriormente no seu texto “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”, publicado na revista Literarische Welt em 1929 (JACQUES; PEREIRA, 2018). Muito mais do que uma escola artística, o movimento Surrealista se consolidou como um movimento de raiz libertária e positiva, cuja proposta pode ser descrita como uma síntese regida pelos pares tese e antítese, matéria e espírito, real e imaginário, sonho e realidade. A intenção é que o homem pudesse romper com as amarras que o aprisionavam à alienação e reificação, conquistando assim a imaginação e a liberdade plena de espírito, buscando se consolidar como uma filosofia de vida que pudesse libertar o espírito humano, num movimento de re-encantamento da vida. Ao acessar os textos dos autores surrealistas, Benjamin se viu fascinado, segundo Machado (2015), uma vez que este movimento “impulsionava dialeticamente a reconstrução da experiência (Erfahurng) ritualística do homem antigo com o cosmo, que se encontrava esfacelada com o advento da modernidade e a consolidação do capitalismo.” (Machado, 2015, p.233).

Benjamin buscou se apropriar do recurso utilizado pelos surrealistas que, ao utilizarem as imagens da sociedade parisiense dotadas de um cunho onírico, tornavam possível edificar uma proposta política de transformação, retratada através de uma espécie de embriaguez ou transe, “uma exaltação psíquica consciente que desencadearia uma profusão de imagens, próximas a um delírio revelador dos elementos ocultos socialmente” (Machado, 2015, p.238). O estado de embriaguez (Rausch) poderia ser acessado de diferentes formas, sendo que em todas elas a percepção do indivíduo que experencia o mundo é alterada, de forma que as imagens escondidas na subjetividade do ser e do cosmos possam ser comunicadas, alcançando o “re-encantamento criativo e imaginativo do mundo e do homem” (Machado, 2015, p.238).

Mesmo reconhecendo a relevância política do empreendimento e se apropriando de elementos tidos como revolucionários para alcançar de forma única “o esclarecimento acerca das construções histórico-políticas, não compreendidos ou não revelados no primeiro plano de suas imagens” (Machado, 2015, p.239), Benjamin se distancia posteriormente do movimento por acreditar que a mitologia e o sonho deveriam se impregnar da razão, justamente para que fosse possível manter a dialética e provocar a quebra no continuum da história de forma ancorada no presente.

Aqui abrimos um parêntese para mencionar um ponto importante de inserseção entre os trabalhos de Benjamin e Rancière com relação à maneira através da qual entendem as representações imagéticas. Ao recusar o regime representativo das imagens (que privilegia a imagem como reprodução mimética do referente), Rancière (2021c) avalia como o regime estético pode favorecer a criação de intervalos capazes de emancipar o olhar do espectador de uma forma de legibilidade do mundo que o torna inteligível apenas pela via da hierarquização causal dos acontecimentos. Para ele, o intervalo aberto pela operação intervalar da imagem liberta “o que estava indexado sob o registro do único real possível, apresentando a esse real ordinário e já consensual uma desieraquização e uma possibilidade outra de aparecer” (Rancière, 2021c, p. 55).

Quando Benjamin descreve o modo como os dadaístas compunham seus poemas e quadros, ele mostra como a valorização dos indícios, dos vestígios, desafia a organização causal e lógica da narrativa. Ele ressalta o caráter fragmentário dos poemas dadaístas, seu excesso, o choque e o desconcerto que provocam. A recusa à representação rompe uma maneira única de explicar os acontecimentos, fazendo-nos ver o que antes não era visto ou imaginado.

 

Os dadaístas davam muito menos importância à utilização mercantil de suas obras do que ao fato de que não pudessem elas se transformar em objetos de contemplação. Um de seus meios prediletos para alcançar esse objetivo constituiu no envilecimento sistemático da própria matéria de suas obras. Seus poemas são “saladas de palavras”, contém obscenidades e todos os detritos verbais imagináveis. O mesmo ocorre com seus quadros, sobre os quais colavam botões e passagens de trem (Benjamin, 1987, p.248).

 

Benjamin e Rancière insistem na potência emancipatória da imaginação política, das manifestações da arte que incitam resistências, transformações na percepção e inscrição do sensível, uma desorganização do olhar que demanda uma desorganização do pensamento. Rancière dialoga com Benjamin quando analisa o modo como as imagens podem produzir esse jogo de intervalos entre regimes de enunciação, temporalidades, espacialidades e sentidos ao serem articuladas fora da lógica da representação, escapando a uma hierarquia e conferindo importância à singularidade de uma única imagem quando ela introduz uma linha de fuga em relação ao desdobramento horizontal de um enunciado no qual geralmente impera a causalidade consensual. São os arranjos indeterminados entre imagens que se associam, por sua vez, a palavras, temporalidades e outros registros que se destacam na abordagem que Rancière confere à imagem, delineando-a como uma cena polêmica.

É importante lembrar que Benjamin tirou proveito da experiência onírica na cidade tanto para escrever acerca de suas possibilidades desviantes, quanto para que fosse possível compreender a modernidade e interpretar historicamente o capitalismo e seus desdobramentos na Europa da primeira metade do século XX, como é possível perceber principalmente na incompleta obra das Passagens:

 

Seria o despertar a síntese da tese da consciência onírica e da antítese da consciência desperta? Nesse caso, o momento do despertar seria idêntico ao “agora da cognoscibilidade”, no qual as coisas mostram seu rosto verdadeiro – o surrealista. Assim, em Proust, é importante a mobilização da vida inteira em seu ponto de ruptura, dialético ao extremo: o despertar. Proust inicia com uma apresentação do espaço daquele que desperta. (Benjamin, 2009, p.506 [N 3ª,3])

 

A estrutura das montagens, uma prática literária que é utilizada em Rua de Mão Única e também nos escritos das Passagens, é aqui entendida como um exercício, um procedimento literário, “uma forma de narração da própria experiência das cidades em transformação, como modo de apresentar sua própria experiência em várias cidades diferentes como Berlim, Moscou, Riga, Nápoles ou Paris”(Jacques; Velloso, 2023, p.102). Pensar por montagens significa para Benjamin pensar a partir da composição de um quebra-cabeça, com nexos inesperados, através das heterocronias, como cita Didi Huberman (2012, p. 208), tornando visíveis “as s o brevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto”.

 

Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. (Benjamin, 2009, p.502)

 

Para Paola Jacques (2018, p.213), a montagem é uma forma de produzir conhecimento que vai contra uma pureza sistêmica, onde o que mais interessa é que não haja um resultado pré-determinado ou estático, mas possibilidades em aberto que surgem a partir de conexões inesperadas, tensões, rupturas e outras interpretações imaginativas. A montagem em Benjamin também aparece como forma de conhecimento histórico quando, ao juntar fragmentos, o historiador se vê diante de tempos heterogêneos expressos em documentos, imagens ou textos. É uma forma de aproveitar o que parece estar em desuso, utilizando os resíduos da história numa espécie de remontagem de velhos cacos, numa combinação temporal que gera uma polifonia a partir de um processo em que narrativas e narradores, tempos e narrações heterogêneas, se encontram. No encontro e choque entre as diferenças dos fragmentos, irão surgir outros nexos possíveis, baseados em suas próprias diversidades e heterogeneidades (Jacques, 2018).

A importância da história no método da montagem será a semente para as “Teses sobre o conceito de História”, texto concluído em 1940, no ano da morte de Benjamin. Segundo Oliveira (1993), o autor, ao recusar a escrita da história baseada nos documentos oficiais, incentiva uma investigação arqueológica, de diferentes suportes significativos, buscando o sentido adormecido nos pequenos registros materiais sem valor aparente.

 

Ele reúne o seu arquivo das insignificâncias, do que é desprezado na ordenação da história progressiva – exercita o método do historiador materialista. (...) A história é a tarefa nunca concluída, que toda geração precisa assumir, de libertar o futuro no passado, isto é, de retomar as possibilidades malogradas do passado, daquilo que poderia ter ganho vida, mas que foi soterrado nas ruínas do continuum da história. O compromisso de libertar o futuro, contido como apelo e promessa no passado, é a possibilidade de modificação do presente, subtraído do jugo da continuidade histórica. (Muricy, 1998, p.16)

 

A teoria benjaminiana seria algo tal como uma experiência de história, que busca compreender de que forma o passado poderia se tornar um momento crítico da experiência do presente. A relação da classe oprimida, do sujeito histórico com o passado, no momento de sua ação política, poderia se configurar como um rompimento com a continuidade histórica. Para Benjamin, o passado não está definitivamente encerrado, já que a estrutura do acontecimento histórico permanece aberta tanto para o futuro quanto para o presente quando este a reconhece. A história seria então uma ciência e uma rememoração, onde o que é verificado pela ciência poderia ser prontamente retificado pela rememoração, onde o historiador materialista seria capaz de intervir e inverter a ordem e a relação do passado com o presente, anteriormente considerada, de acordo com Oliveira (1993), como uma "sucessão temporal linearmente determinada e irreversível" (Oliveira, 1993, p.175). O passado não é mais algo concluído e o presente não é mais considerado como o lugar onde a história deverá ser construída. Arrancando o passado da tradição onde ele foi aprisionado pelas forças ideológicas da classe dominante, o historiador materialista seria capaz de salvá-lo, buscando no presente a satisfação de tudo o que não foi capaz de se completar no passado.

Ao historiador cabe a sensibilidade e o posicionamento crítico para perceber que, em meio a um terreno solidificado, surge uma centelha capaz de bagunçar essa ordem e reescrever o que já havia sido considerado como acabado, contribuindo assim para que os pequenos fragmentos que surgem nesses instantes sejam reapropriados. Mais do que um conceito instrumental, este conceito denominado “imagem dialética” é, segundo Luciano Bernardino da Costa (2009, p.89), “um campo reflexivo no qual a imagem possui uma amplitude cognitiva, histórica e de pensamento, sendo tratada como um espaço de imagens”. Algo como um instante onde uma cena instigante surge no presente, e que se correlaciona com fatos do passado, transformando este passado num tempo de agora. O passado pode ser rememorado, mas pode também ser novamente perdido.A exigência do passado é, entretanto, duplamente atual: porque alude a nosso presente e porque quer tornar-se ato, abandonar o domínio do possível.” (Gagnebin, 1982, p.72)

 

Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aqui em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não arcaicas; A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.” (Benjamin, 2009, p.505 [N 3, 1])

 

Embora haja um grande enfoque na questão histórica na obra de Benjamin, sua abordagem teórica é essencialmente uma reflexão sobre o presente, uma vez que a experiência acontece no agora. O modo como Benjamin conceitua a imagem dialética, o clarão que entrelaça passado, presente e futuro, colocando em choque e tensão uma diversidade de temporalidades, apresenta muita proximidade com a reflexão de Rancière. Para ambos, a imagem opera desestabilizando e fraturando uma maneira de contar e explicar causalmente a história. Imagens são operações que surgem do gesto de “arrancar” vestígios, experiências e memórias do continuum da história. Figurar povos vulneráveis nas imagens de modo a evidenciar sua dignidade e sua humanidade é uma preocupação que, ao lado da valorização da montagem anacrônica e desviante, aproxima Rancière e Walter Benjamin.

 

Há de se exigir do pesquisador que ele abandone uma atitude serena, a típica atitude contemplativa, ao se colocar diante de seu objeto, para tomar assim consciência da constelação crítica em que esse preciso fragmento do passado se situa precisamente nesse presente (Benjamin, 2009, p.71)

 

Enquanto Benjamin busca compreender de que forma o passado poderia se tornar um momento crítico da experiência do presente, Jacques Rancière, como veremos a seguir, não apresenta uma preocupação em desvelar o que está supostamente escondido no passado, mas busca promover uma reconfiguração dos lugares e tempos ocupados por uma ordem policial2 dada no agora. Ainda assim, de forma semelhante, ambos os autores buscam alterar a paisagem sensível do mundo e nossa forma de trazer visibilidade e cognoscibilidade para rostos, corpos e fatos negligenciados pelas forças hegemônicas. A nosso ver, Benjamin e Rancière nos convocam para um caminhar entre espaços, imagens e fragmentos, adentrando as veredas, povoando intervalos e investindo nos gestos insurgentes que permitem uma maior margem de manobra para articular corporeidades, saberes, trajetórias e experiências.

 

As interfaces entre os espaços de jogo (Benjamin) e as superfícies de dissenso (Rancière)

Acreditamos que uma forma possível de compreender a contemporaneidade da interface entre Benjamin e Rancière está na potência que o método empreendido por ambos possui para construir e pensar cenários insurgentes de luta nos contextos vivenciados na atualidade, sobretudo aqueles cenários que envolvem opressões, violência e desigualdade. Ao apostarem na possibilidade de transformar a criação e circulação de sentidos e de conhecimentos partilhados que deslocam significados, imagens e ações, eles mobilizam conceitos que interferem em nossa experiência e nossa relação com o que pode ser comum, coletivo, mote para alianças entre corpos, espécies, conhecimentos e sonhos. Esse é o caso de dois conceitos que queremos desenvolver brevemente aqui: o espaço de jogo e a superfície da cena de dissenso.

Benjamin (1987, p.243) utiliza o termo “espaço de jogo” (Spielraum) para mostrar de que maneira os objetos, palavras, corpos e imagens “estão sempre prontos a mudar de lugar, a se reunir novamente. Todos eles são mais ou menos preciosos, (...) não ocupam apenas o local visível que ocupam, mas também espaços sempre novos”. Nesse deslocamento cria-se folga, brecha para um espaço de vida, lugar de resistência, de política inventiva e transformadora. Um espaço de jogo é, assim, um intervalo a partir do qual operam a flexibilidade, um trabalho de redisposição que entrelaça os elementos que são essenciais para a criação de táticas que agem sobre as estratégias de controle. Para Benjamin (1987), o espaço de jogo é essa forma de articulação que permite aos objetos transformar suas funções, mover-se com os gestos e movimentos intersubjetivos das pessoas no cotidiano, constituindo-se assim como zona de indeterminação. O espaço de jogo possui intervalos e brechas nos quais se pode respirar e redefinir o rumo das coisas. Ainda é possível experimentar porque ainda existe um espaço não preenchido, “um espaço para jogar, experimentar, transformar. Uma estética da experimentação, portanto, em vez de uma lógica do espetáculo” (Gagnebin, 2020, p. 71).

Vale mencionar aqui como Walter Benjamin (2023, p.33), no primeiro texto que integra Rua de mão única, menciona a força dos panfletos e cartazes como escrita militante (vemos aqui a influência de Asja sobre seu trabalho) capaz de criar “espaços de jogo” nos quais intervalos são abertos para a expressão da resistência e da inventividade.

Para ele, a tarefa da arte é também uma tarefa de libertação, com a produção de um conteúdo revolucionário, capaz de mobilizar o coletivo através de “inervações”, de agenciamentos que têm a possibilidade de libertar a imaginação do jugo do capitalismo e, assim, ampliar o espaço de jogo (Spielraum) dos sujeitos, um espaço de manobra no qual podem aprender a orientar-se (Benjamin, 1987).

A noção de espaço de jogo (ou margem de manobra) aparece também no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1987) e “A doutrina das semelhanças” (1994), sempre relacionada à possibilidade de desprendimento, repetição, fragmentação, reordenação experimental do mundo através da paródia, da mimese, da brincadeira e do lúdico que expressam um método de aprendizagem para lidar com a experiência política. Embora o jogo apareça em diversas dimensões do pensamento de Benjamin, ele é indissociável dessa relação de aprendizagem que implica uma forma de lidar com o tempo a partir do cuidado com a reconstrução das ruínas.

O elo entre repetição e trauma – a transformação de uma experiência dilacerante em hábito criador (po-ético) – vê-se assim transfigurado numa noção de repetição como diferença, que não se fixa num acontecimento primordial, mas antes projeta o seu potencial produtivo no futuro. Mas a noção de repetição não perde a sua ambiguidade, pois ela parece oscilar entre o eterno retorno do mesmo, a perpetuação do sempre igual, e um fazer-de-novo que encerra em si a experimentação na diferença de cada gesto repetido.

A nosso ver, seria possível dizer que a superfície da cena de dissenso em Rancière configura um espaço de jogo como um "espaço vazio", uma abertura para o redesenho e a redisposição dos elementos e ocupações do cotidiano, que trazem movimento, promovem o intervalo que sacode a vida, porque jogar é experimentar, transformar. Rancière comenta, muitas vezes usando termos benjaminianos, que seu método da cena tenta construir um espaço de jogo na escritura e nas montagens ou condensações criadas a partir das aproximações entre diferentes regimes de palavra e de pensamento em uma superfície cuja topografia está sempre mudando.

A noção de superfície surge no trabalho de Rancière quando desdobrada em seu processo de criação da cena, pois a cena faz convergir para seu espaço de jogo elementos heterogêneos e uma polifonia de vozes que são articuladas sem perderem sua especificidade. A superfície preserva todos os intervalos entre essas vozes e elementos, conferindo a eles uma legibilidade inaudita. A cena é o trabalho paciente de construção de uma topografia que altera das coordenadas da experiência daquela ou daquele que se aventura a demorar-se nas bordas das ficções que não desejam organizar a vida como “o trajeto necessário ou verossímil entre um começo e um fim” (2021c, p.13).

A superfície sobre a qual Rancière configura uma “topografia intervalar” não se contrapõe a uma profundidade escondida ou a um véu que precisa ser erguido para vermos uma suposta verdade escondida. Andrea Para Calderón (2020, p.32), a superfície configura um “lugar polêmico que acolhe uma singularidade permitindo que ela comunique assimetrias sem relação prévia”. A topografia intervalar confere à cena uma capacidade de misturar e “articular diferentes níveis de sentido, criando uma linha transversal” (RANCIÈRE, 2016, p.69) em que deslocamentos modificam o mapa do que é pensável, do que é nomeável e perceptível, e, portanto, do que é possível. (2009b, p.577). É possível dizer que a superfície composta e percorrida pelo método em ação revela uma topografia intervalar de um jogo que cria potencialidades insurgentes ao modificar as posições e coordenadas onde aparecem os corpos, as relações entre eles e as estimativas de suas capacidades, as palavras e as imagens: “esse jogo desfaz uma ordem dada de relações entre o visível e as significações a ele relacionadas e constitui outras tramas sensíveis que podem contribuir para a ação de sujeitos políticos” (Rancière, 2009, p.515) que se desdobra e aparece na cena.

Acreditamos que, por exemplo, uma metodologia que entrelace o espaço de jogo à superfície da cena pode estimular, fundamentar e criar conhecimentos partilháveis para propostas emancipatórias e insurgentes uma vez que ele propõe experiências (artísticas, científicas, sociais e políticas) não se imponham pela hierarquia do conhecimento legitimado, pela verticalidade do poder e nem pela restrição da experiência da alteridade, especialmente quando se trata de pensar as experiências da vulnerabilidade que sempre são múltiplas e interseccionais.

As operações realizadas no espaço de jogo e na cena tendem a explorar uma capacidade de verificação das redes de significação para produzir uma nova forma de legibilidade do mundo, sobretudo quando objetos, imagens e textos são apropriados e transformados por meio da montagem, de um trabalho do pensamento que coloca em risco as separações entre espaço, tempo e corpo. A proposição que envolve a abertura de cenas e espaços de jogo se baliza, a nosso ver, em uma interpelação crítica aos enquadramentos que julgam certas experiências como indignas de tomar parte do que é o comum em uma sociedade: quem pode aparecer, falar, emancipar-se, participar da construção democrática? Essa espécie de afronta à confiscação das vozes e palavras produzida por efeito das desigualdades é o que a montagem da cena e do espaço de jogo pretende expor e perturbar, principalmente ao abrir uma borda para o devaneio e para a ficção.

 

Temporalidades, devaneio e ficção: interseções entre Benjamin e Rancière

É possível dizer que há uma aproximação entre a perspectiva de Benjamin e a abordagem de Rancière quando se trata de como os autores abordam a possibilidade da quebra do tempo contínuo e das ações inventivas, uma vez que Rancière também busca compreender de quais formas é possível produzir deslocamentos e fissuras nos modos naturalizados de apreensão e explicação dos eventos (Marques; Veloso; Prado, 2021).

Quando Walter Benjamin discorre sobre a possibilidade de quebra do tempo contínuo, que ele classifica como sendo o tempo dos vencedores, ele menciona a ação dos operários parisienses em 1930 que, ao atirarem nos relógios como metáfora visual de paralisação do tempo capitalista, faz com que este movimento de insurgência se torne capaz, segundo Rancière (2018c), de promover a abertura de um novo tempo a partir de uma fenda operada no tempo dos vencedores.

 

Em um texto famoso, Walter Benjamin fala desses momentos que explodem o tempo contínuo – o tempo dos vencedores – e encontra o símbolo dessa insurgência parisiense de 1830 quando os operários atiram nos relógios para parar o tempo. Mais do que uma implosão do tempo dominante, essas insurgências produzem a abertura de um outro tempo, um outro tempo comum nascido das brechas operadas dentro do primeiro: não é um tempo de sonho, que nos faria esquecer do tempo sofrido ou projetaria um paraíso em devir. Mas é um tempo que se desdobra outramente, que confere um peso diferente a esse instante desviante, ligando-o a outros instantes, permitindo outros acessos ao passado, construindo outra memória e criando, por isso mesmo, outros futuros. O marceneiro que reinventa sua jornada de trabalho e os insurgentes que interrompem as agendas do poder e as rotinas da exploração opõem a fragmentação que os mantém indefinidamente à distância de seu próprio tempo, à fragmentação que lhes devolve a capacidade de produzir e conduzir um novo possível. (Rancière, 2018c, p.36 e 37)

 

O marceneiro ao qual Rancière se refere no trecho acima é Louis Gabriel Gauny, a quem ele chamou de “marceneiro poeta” ou “filósofo plebeu”. Rancière, tal como Benjamin, também se debruçou nos documentos de arquivos, em especial da imprensa operária do século XIX na França, e nessas deambulações documentais encontrou um jornal revolucionário dos operários que circulou durante a Revolução Francesa de 1848, que continham relatos escritos por Gauny (Marques, 2022). Em um deles, Gauny escreve:

 

Acreditando estar em casa, enquanto não acaba o cômodo onde coloca os tacos, ele aprecia sua disposição; se a janela dá para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um momento deixa de movimentar os braços e plana mentalmente na espaçosa perspectiva para apreciar, melhor do que os proprietários, as casas vizinhas (Rancière, 1988, p. 86).

 

Neste relato de Gauny, retirado de um jornal proletário revolucionário (Le Tocsin des Travailleurs) de 1948, Rancière busca identificar a quebra do tempo contínuo a partir do movimento do olhar de Gauny pela janela. Ao interromper o tempo do trabalho e da produtividade, o marceneiro entra em devaneio, momento no qual é possível que ações inventivas surjam a fim de elaborar o real, quando “o corpo emancipado aprece em cena desvinculando-se de uma dimensão produtiva: ele pode abandonar-se ao devaneio, à invenção e ao gesto que altera a condição de existência do possível” (Marques, 2022, p.159). O trabalhador, que olha como se fosse proprietário da casa, desestabiliza e perturba a ordem consensual e hierárquica, invertendo os papéis hierarquicamente organizados, além de possibilitar que, numa fresta de tempo, uma sucessão de acontecimentos ganhe espaço.

Rancière (2018c, 2021b) afirma que a experiência do devaneio explorada em sua obra recusa corroborar com uma teoria do trabalho voltada para o desvelamento da opressão, pois seu objetivo seria apresentar diferentes experiências de saída da ação associada à imposição de ritmos e tempos ao trabalhador. Seu objetivo é mostrar que se engajar na temporalidade difusa do devaneio é uma operação desviante, um agenciamento de desterritorialização. Assim, o momento do devaneio de Gauny mostra que o corpo do marceneiro deixa de estar ausente, de ser um corpo objetificado e reificado por normas para apresentar-se como corpo vivente, que observa o mundo (e não apenas é observado e controlado), tendo prazer em perceber seus próprios movimentos e imobilidades.

A relação que podemos estabelecer entre o momento do devaneio e a reflexão de Walter Benjamin acerca do conceito de História (e de sua organização temporal pela narrativa dos vencedores) aparece delineada pelo próprio Rancière (2018b, 2021c) quando comenta que o momento qualquer é o tempo partilhado dos não vencidos. O momento qualquer do devaneio resulta da quebra e da fratura do tempo dos vencedores, que passa a ser mesclado com outras temporalidades, perdendo seu poder organizador de controle. A forma de identificar, articular e montar os acontecimentos e as temporalidades permite a abertura de um intervalo (écart), uma borda sobre a qual os sujeitos oscilam entre o nada e o tudo. Essa borda é onde Rancière encontra Benjamin: ambos buscando não os avanços do tempo, mas suas paradas, suas suspensões e desvios.

Dito de outro modo, a coexistência de temporalidades permitida pela reorganização da experiência pelo momento qualquer desfaz o dilema de termos que optar pelo “tempo dos vencedores” ou pelo “tempo dos oprimidos”. O tempo dos “não vencidos” confere destaque à capacidade de agência e à dignidade dos oprimidos, uma vez que se trata de um tempo da coexistência precária de temporalidades, da articulação de um comum que apresenta e aproxima fatos, coisas, sujeitos, palavras, situações e acontecimentos de modo a alterar a percepção e a inteligibilidade do mundo, considerando o tempo em “suas paradas, superposições, voltas, rodeios e explosões” (Rancière, 2019, p.85).

É nesse sentido que Rancière argumenta que o devaneio pode também alimentar experiências de desidentificação, perturbando a divisão de lugares e tempos estabelecidos por meio de fabulações que podem se converter em enunciações ficcionais que ultrapassam o que é dado como real, assumindo grande poder de afetação sobre os corpos.

Rancière (2018b, 2018c, 2021a, b e c) já abordou em diferentes obras a importância da ficção na possibilidade de racionalização do mundo, e utiliza com frequência a literatura moderna como forma de exemplificar a manifestação desse tipo de ação criativa sobre as minúcias do cotidiano (MARQUES, 2022). Para o autor, a ficção não se refere ao ato de criar mundos que não existem, mas ela é parte constitutiva tanto do nosso mundo, quanto da nossa forma de fazer o mundo, se conformando como uma estrutura constitutiva da nossa racionalidade. Ela é, primeiramente, “uma estruturação do tempo humano que o submete a um princípio de causalidade” (RANCIÈRE, 2021a, p.8), que não se caracteriza pela criação de seres imaginários, mas uma espécie de “enquadre no qual sujeitos, coisas e situações são percebidos como pertencentes a um mundo comum” (RANCIÈRE, 2021b, p.14).

O autor critica a racionalidade ficcional aristotélica, na qual os acontecimentos ocorrem de acordo com um encadeamento que sobrepõe causalmente temporalidades, na forma de um esquema racional verossímil. Rancière ressalta, então, a forma com que estes princípios ainda hoje influenciam “a matriz estável do saber que nossas sociedades produzem sobre si próprias” (2021a, p.10). Ao revogar o modelo representativo aristotélico, cuja racionalidade específica incorpora apenas as formas de vida privilegiadas e exclui os sujeitos tidos como passivos, Rancière argumenta que a ficção não existe separada do tempo cotidiano, já que “o espaço ficcional se encontra com efeito invadido pela multiplicidade das vidas que até então não contavam: as vidas obscuras, normalmente dedicadas apenas à reprodução dos trabalhos e dos dias” (2021a, p.14). Para ele, o tempo da ficção moderna é um tempo das coexistências temporais, onde “sujeitos quaisquer” participam de forma democrática das possibilidades de ficcionalizarem suas próprias vidas, onde a densidade do cotidiano é passível de ser vivida sem distinção. Simultaneamente, é um tempo cujas temporalidades se interpenetram, de forma anacrônica, comunicando entre si de forma horizontal. “A ficção construída é mais racional que a realidade empírica descrita. E essa superioridade é a de uma temporalidade sobre outra. Essas duas teses aristotélicas formaram por séculos a racionalidade dominante da ficção” (Rancière, 2018b, p.134).

Se a ficção é uma forma de racionalização da realidade, de acordo com Rancière (2018c) o capitalismo seria a ficção dominante que nos diz como o mundo é, assim como na alegoria da caverna de Platão. É uma ficção das desigualdades das inteligências, que constrange e empurra os historicamente oprimidos para as margens. Em O trabalho das imagens, Rancière opõe a ficção dominante a outras formas de ficção que são capazes de fazer explodir a ordem capitalista dominante que diz que determinada realidade do mundo é incontornável (2021c, p.66). O trabalho ficcional dissensual “é aquele que consiste em afirmar que essa realidade não é a realidade, mas que há várias maneiras de construir a realidade” (RANCIÈRE, 2021c, p.66). Segundo Rancière, este trabalho não é possível de ser construído de forma global, pois acontece no processo de criação. É, portanto, da ordem da criatividade, e serão as cenas ficcionais que irão justamente contrariar a ficção dominante, num movimento que irá derrubar a hierarquia clássica e possibilitar reintroduzir no mundo comum aqueles que se encontram na margem e nas periferias. “A ordem dominante diz: somente é real o que é, primeiramente, possível. A ficção inverte as coisas ao desconectar o real do possível e do verossímil. Contrariamente ao que dizem, a ficção não é privilégio do imaginário, é um nó entre o real e possível” (RANCIÈRE, 2021c, p.72).

Essa formulação do conceito de ficção se aproxima das práticas criativas que Benjamin identificou nas ações dos surrealistas, e das quais ele tira partido como uma forma de impulsionar “dialeticamente a reconstrução da experiência (Erfahurng) ritualística do homem antigo com o cosmo, que se encontrava esfacelada com o advento da modernidade e a consolidação do capitalismo”23 (Machado, 2015, p.233). Portanto, mesmo que vislumbrando objetivos diferentes, ambos os autores identificam uma potência nas ações criativas, operações que se definem a partir da arte e das articulações entre diferentes agentes, que são capazes de fraturar uma ordem capitalista, ainda que, em cada autor, a descrição de como ocorre essa quebra do tempo dominante seja distinta. “No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos, cada minuto.” (Benjamin, 1994, p.35)24

O trabalho ficcional dissensual abre espaço para a criação de cenas políticas capazes de contribuir para esse questionamento do controle consensual dos tempos e espaços experimentados pelos sujeitos. Para Rancière (2018a, 2018b), a ficção moderna articula duas temporalidades insurgentes: o “momento qualquer” e o “desmedido momento”. O momento qualquer parece caracterizar a interrupção do modo dominante que orienta o processo de produção de sentido, abrindo espaço para o surgimento de um sentido comum que conecta sujeitos, elementos e enunciados sem subordiná-los ou destruí-los. A nosso ver, o momento qualquer abre a borda, o limiar de passagem entre o tudo e o nada, a ausência de vazios e o excesso, o consenso e o dissenso, instaurando a possibilidade de partilha do sensível. Por sua vez, o desmedido momento é o vetor de produção da fabulação que conduz essa passagem. Ele é um gesto, um acontecimento que “se expande sem fim no interstício do momento qualquer” (RANCIÈRE, 2018b, p.185). O desmedido momento torna possível a fabulação como a capacidade de ultrapassar a borda para entrar nos espaços onde todo um sentido de real se perde junto com as identidades impostas e suas pretensas ausências de devir. Assim, temporalidades transformadoras combinam e fazem co-existir momentos quaisquer e momentos desmedidos, de modo a promover “eventos sensíveis sem hierarquia, que incluem a existência comum, tradicionalmente excluída da ficção” (2021a, p.33).

É possível dizer que o brilho fulgurante do momento qualquer se aproxima do relâmpago benjaminiano, cujo clarão fugaz une passado, persente e futuro na imagem dialética. Contudo, um momento qualquer faz reverberar no presente uma profusão de recortes temporais do próprio presente. O momento qualquer de Rancière (2018b) caracteriza a narrativa ficcional moderna utilizada por Guimarães Rosa e Virgínia Woolf, que por um lado dissolve os limites entre os acontecimentos e as sequências de acontecimentos classificados como dignos da ficção, e por outro as sucessões de fatos tidos como a simples realidade cotidiana de pessoas comuns, se caracterizando como algo “que pode se produzir a qualquer instante, para toda circunstância insignificante; mas que é também um momento sempre decisivo, o momento de sacudida que se conserva entre o nada e o tudo” (2018b, p.154). Este momento qualquer se assemelha ao devaneio Benjaminiano, ao trajeto desviante do flaneur, que percorre a cidade e a redescobre nas pequenas sutilezas.

Considerando que a estética já está presente na base da política, já que estar no tempo e no espaço é uma experiência sensível, Rancière (2021b) se preocupa com a forma como a igualdade e a desigualdade se manifestam no nosso cotidiano, na nossa ocupação do tempo e do espaço. Nele, o presente se desdobra no próprio presente, abrindo fendas. O grande continuum da temporalidade do progresso é desfeito por meio da aproximação e coexistência de momentos que são, simultaneamente, o ponto por onde passa a reprodução da hierarquia dos tempos e o ponto de um hiato, de uma ruptura.

A cena de dissenso que se desdobra a partir do olhar que Gauny lança pela janela permite que, em seu relato, seja criada a “possibilidade de arranjos e articulações entre temporalidades e espacialidades de modo a alterar a dinâmica do aparecer dos sujeitos e dos acontecimentos” (MARQUES, 2022, p.159), abrindo espaço para que ocorra um processo de subjetivação política. A política, segundo Rancière, é terreno do desentendimento, onde a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto. Ela está profundamente ligada à consistência de uma aparência, de um processo de aparecimento que materialize sua capacidade de reconfigurar um dado da realidade, alterando também a própria relação entre aquilo que aparece e o que é percebido como realidade”:

 

A política é a atividade que reconfigura os marcos sensíveis no seio dos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem natural que destina aos indivíduos e grupos o comando da obediência, a vida pública e privada, assinalando lhes desde o início tal ou qual tipo de espaço ou de tempo, tal maneira de ser, ver e dizer. (Rancière, 2010a, p.61)

 

A política seria a configuração de uma cena, onde a "parcela dos sem parcela" reivindicariam um direito de fala e de posição. Nessa reivindicação o que Rancière chama de "partilha do sensível" seria reconfigurado e, assim, o comum de uma comunidade também seria redefinido, já que novos sujeitos e objetos ocupam a cena coletiva, “tornando visível o que não era visto, fazendo ouvir o que antes não era ouvido” (Rancière, 2004, p. 38). Rancière (2009) define a partilha do sensível como

 

(...) o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (Rancière, 2009,p.15).

 

Ela é, antes mesmo de um simples exercício de poder ou uma luta pelo mesmo, "o recorte de um espaço específico de ocupações comuns, o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações" (Rancière, 2009, p.15). Sob esse aspecto, Benjamin e Rancière clamam pela abertura de tempos, pela heterocronia, pela liberdade na racionalização do real, ou pela energia onírica que traz outros sentidos para a realidade. O deslocamento vagaroso do flanêur é também um protesto aos ritmos do capitalismo. O tempo, seja ele criado pelo operário, seja ele um protesto a um ritmo de vida perverso, é elemento determinante na obra dos autores. É a partir do tempo livre que a possibilidade de fraturar o continuum do tempo vai se tornar possível, e será a ideia de fratura no tempo e uma ação inventiva para reconfigurar os lugares e coisas, que permite uma aproximação entre as perspectivas de Rancière e de Benjamim.

 

Considerações Finais

Este artigo buscou realizar uma aproximação entre Walter Benjamin e Jacques Rancière investigando a maneira como ambos caracterizam territorialidades e temporalidades desviantes como eixo para práticas políticas e gestos de resistência no cotidiano. Muitas abordagens que os autores fazem do tempo e do espaço como componentes centrais da experiência insurgente possuem semelhanças. É possível, sobretudo nas obras mais recentes de Rancière, encontrar proposições teóricas de Benjamin que serviram como base para o desenvolvimento de seu trabalho.

Ainda que Rancière não tenha se comprometido de forma explícita a dar continuidade ao pensamento benjaminiano, e tenha citado de maneira explícita a influência de Benjamin em poucos de seus escritos, foram identificadas algumas semelhanças que podem sugerir uma maior influência das obras de Benjamin nas análises e métodos propostos por Rancière. Talvez a estrutura textual mais ensaística do texto de Rancière possa ter suprimido algumas dessas menções explícitas, mas reconhecemos nele a inspiração vinda de Benjamin, sobretudo quando se trata de mostrar a potencialidade política do tempo e do espaço na construção de possibilidades emancipatórias no cotidiano. É como se a metodologia de trabalho de ambos estivesse conectada pelo esforço de produção de intervalos, de margens de manobra e de respiro, nos quais fosse novamente possível redefinir a experiência cotidiana em busca de transformações e reexistências.

Assim, ao colocar os autores lado a lado, procuramos identificar semelhanças que pudessem originar novas reflexões. Buscamos delinear um paralelo entre conceitos e movimentos cujas estruturas se assemelham, recolhendo fragmentos de forma contextualizada nas obras de ambos os autores. Ainda assim, pelo fato das proposições e teorias de ambos os autores possuírem um alto nível de complexidade, sendo influenciadas por diferentes correntes de pensamento, e terem sido desenvolvidas em contextos históricos e de vida complexos, em especial a obra de Benjamin, este trabalho se tornou um enorme desafio. Mas foi possível identificar semelhanças nas abordagens, em especial quando elas se referem à importância de experienciar o espaço (urbano, textual, imagético, etc.) de forma sensível para que seja possível, através de uma ação criativa, promover fraturas na ordem dada do mundo a fim de possibilitar a construção de novos sentidos e temporalidades no presente.

A interseção entre os dois autores deixa claro o interesse de ambos nas pesquisas em arquivos, no protagonismo da imagem para além de uma forma visual, nas ações do cotidiano vivenciadas no momento presente por indivíduos ordinários, na possibilidade de reconfiguração de uma ordem, seja através de uma modificação no presente, que liberta o passado alterando o futuro, seja através da emancipação e da subjetivação política dos sujeitos. Os dois autores também foram profundamente influenciados pelo marxismo e pelo pensamento emancipatório que entende a igualdade como fruto de um processo conflitivo e dialético.

Com relação às diferenças entre os autores, destacamos que Benjamin buscou em sua obra precocemente interrompida desenvolver, de maneira geral, uma compreensão da modernidade e das influências da indústria cultural, além de uma concepção dialética da história, e o que Velloso (2023) identifica como a construção de uma epistemologia urbana, enquanto uma grande contribuição de Rancière vem através das relações entre política e estética a partir das possibilidades de emancipação política dos sujeitos nas cenas de dissenso, que irão reconfigurar a partilha do sensível. Ainda assim, como vimos, ambos investem na produção do espaço e do tempo como método capaz de apoiar insurgências.

Percorrendo a trilha do pensamento de Benjamin e de Rancière, argumentamos que a aproximação entre ambos traz contribuições para artistas, pesquisadores, filósofos, escritores e professores que desejam explorar, rever e redispor coisas, elementos, corporeidades e vestígios em uma superfície (a tela, o papel, o corpo, o som, o palco, etc.), desafiando o “já dado” e conferindo importância aos fragmentos dispersos, inauditos, para retraçar as rotas que nos permitem produzir e compartilhar sentido acerca de eventos e de sua legibilidade.

 

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Data de Recebimento: 23/10/2023
Data de Aprovação: 05/03/2024


1  Desde 1923-24 Benjamin é marcado pelas idéias marxistas (sob a influência de Asja Lacis, uma dramaturga bolchevique, militante ativa do partifo comunista, que apresenta a ele a literatura marxista) e passa a refletir sobre as formas de distorção que o capitalismo acarreta na consciência dos homens. Em 1924, Benjamin conhece Asja Lacis, que o apresenta ao poeta e dramaturgo Bertold Brecht, que passa a ser seu amigo e interlocutor. Em 1929, Benjamin assume seu amor por ela, mas não conta com a aprovação de Scholem, que acreditava que Benjamin deveria seguir os estudos do judaísmo. Entre seu grande amor e seu melhor amigo, Benjamin não se decide entre o comunismo e o judaísmo. Ambos cobram de Benjamin uma postura mais assertiva com relação a seu engajamento político, mas ele posterga ao máximo tal gesto, afundando-se na escrita de ensaios, sobretudo àqueles dedicados a Baudelaire (1936-38).

2  A diferenciação entre duas formas de partilha do sensível é feita por Rancière de maneira a tornar mais evidente o modo como a polícia e a política recortam diferentemente o tempo, o espaço, o visível e o invisível, criando enquadramentos consensuais ou dissensuais para orientar nossa experiência no mundo. Assim, “na partilha política do perceptível” (2011, p.8) a política acontece no espaço da polícia, fraturando-o por dentro, criando dobras, excessos, reconfigurando e reencenando questões e problemas sociais.