interpretação pragmática da intencionalidade do autor dos discursos em apreço, essa sensibilidade aos temas afetos ao cotidiano citadino, revelada na obra de Chico Buarque, parece tornar possível e frutífero tomar esse compositor como um entre aqueles que Negrão de Mello, tomando o referencial da Análise do Discurso, chama de “sujeitos-suportes das falas das cidades” (1997, p.151). Nesse sentido, há, na própria obra, explicitado, o reclame por dar voz aos discursos da cidade, como na canção “Subúrbio” (2006): “Fala, Penha / Fala, Irajá / Fala, Olaria / Fala, Acari, Vigário Geral / Fala, Piedade / Casas sem cor / Ruas de pó, cidade / que não se pinta / que é sem vaidade”.
Nas falas da cidade, transmutadas em versos, elementos do cotidiano revelam-se em tematizações sobre aspectos corriqueiros que compõem “esses ‘pequenos nadas’ da vida que constituem de fato o qualitativo” (MAFFESOLI apud TEIXEIRA, 1990, p. 103). Os “pequenos nadas” são, entre outras coisas, os sons da cidade que mesmo de nossas casas somos instados a escutar.
De madrugada a gente ainda se ama
E a fábrica começa a buzinar
O trânsito contorna a nossa cama, reclama
Do nosso eterno espreguiçar (Samba e amor - 1969)
Aliás, essa mesma canção traz, de outra parte, certa indisposição ao cumprimento das exigências que o cotidiano urbano nos apresenta. Entretanto, essa aparente resistência à dinâmica cotidiana não é nada senão parte da cotidianidade, pois, como nos recorda Zaccur (2003, p. 179), “nada mais cotidiano do que assumir a vida a cada dia com maior ou menor fadiga, com maior ou menor desejo”.
O compasso acelerado do cotidiano das metrópoles e a relação conflituosa do urbanita com esse tempo que se mostra exíguo, frente ao sem-número de compromissos a comparecer e deveres a cumprir, também figuram em versos que expressam nas palavras e na cadência dos sons a celeridade do tempo na metrópole.
Tenho um peito de lata
E um nó de gravata
No coração
Tenho uma vida sensata
Sem emoção
Tenho uma pressa danada
Não paro pra nada
Não presto atenção
(Cara a cara - 1969)