Politizar espaços e discursos: literatura, arte e direitos humanos na América Latina


resumo resumo

Rafaela Scardino



Ao refletir sobre a contemporaneidade, o filósofo italiano Giorgio Agamben propõe que sua principal característica seja uma relação especial com o próprio tempo:

a contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN, 2009, p. 59, grifos meus).

Ou seja, ser contemporâneo é ter uma relação deslocada com o próprio tempo. Um discurso hoje dominante é o da conexão; diz-se que devemos estar conectados o tempo todo, sempre aderidos aos eventos de nosso tempo. Em matéria publicada em 08 de dezembro de 2009, a revista Você S.A. propõe que uma das tendências para 2010 é a conexão a redes sociais, afirmando a seus leitores que “portanto, se você ainda não tem um profile na rede, faça o seu já!” (DWECK, s/d).

Entretanto, quem se conecta, quem adere a esta conexão, deixa-se dispersar, por não poder, assim, demorar o olhar sobre a contemporaneidade; a conexão emudece ao cegar, ao não permitir a visão efetiva propiciada pelo deslocamento que favorece as condições necessárias ao questionamento, diante da multiplicidade (ou multiplicação) de focos possíveis de atenção. O outro lado do discurso de fomento à conexão, que acaba por apenas reafirmá-lo, é o do foco: é preciso não apenas estar conectado, mas também manter o foco, ou seja, manter o olhar unidirecionado — um “teste de carreira” disponibilizado no site da mesma revista é voltado para o “diagnóstico” do conectholic, “patologia que leva à dificuldade de resistir à tentação do contato constante com a tecnologia móvel”(VOCÊ S/A, s/d).

Existem movimentos que se voltam, contudo, para a desconexão; dentre outros, destaca-se o National Day of Unplugging, iniciativa do grupo The Sabbath Manifesto, autodefinido como um “movimento criativo projetado para diminuir o ritmo da vida das pessoas num mundo cada vez mais agitado” (The Sabbath Manifesto, s/d). Uma palavra frequente no site, em especial em depoimentos, é foco: desconectar-se seria uma forma de manter o foco naquilo que se considera importante. Manter o foco é, no entanto, deixar de ver aquilo que está fora, nas margens do que se está evidenciando. Ou seja, é, também, uma forma de não ver o contemporâneo e de aderir ao tempo. Uma imagem compartilhada em redes sociais é bastante significativa para nossa discussão. Num emaranhado de palavras fora de foco — de difícil leitura, portanto — está destaca a palavra LOVE, única plenamente legível. Sob a imagem, a seguinte palavra de ordem: “Foque na solução”. Um olhar atento percebe que as palavras desfocadas são associadas a elementos negativos, como assassinato, ódio, fome, pobreza, injustiça, guerra, etc. Mas manter o foco apenas no amor, deixando fora da atenção (e do discurso) temas pungentes, é contribuir para a manutenção da ordem das coisas. Excluir do foco é excluir do pensamento e da ação. Assim, tirar do foco a pobreza é contribuir para a sua perenidade, pois aquele que não a vê não pode, efetivamente, lutar pelo seu questionamento. A desconexão captura, portanto, o sujeito num foco único, homogêneo, de não vivência da atenção, de impossibilidade da demora na atenção (demora que constitui o tempo da atenção). Deve-se, portanto, encontrar um lugar de negociação entre a conexão e a desconexão, um espaço de não aderência em que seja possível criar saídas políticas.

É preciso ressaltar, no entanto, a multiplicidade de ações e de possibilidades propositivas disseminadas na rede, também se utilizando fortemente da divulgação através das redes sociais, dentre elas, o ciberativismo, forma de manifestação social cada vez mais frequente, que tem conseguido instaurar proposições através da mobilização de cidadãos pela internet. Podemos encontrar a encenação literária desta atividade ciberpolítica no romance El delirio de Turing, do escritor boliviano Edmundo Paz Soldán. Neste romance, Miguel Sáenz, chamado de Turing por seus companheiros de trabalho, é um criptoanalista que trabalha numa instituição chamada Câmara Negra, responsável por interceptar e decifrar mensagens potencialmente subversivas. Inicia seu trabalho durante a sangrenta ditadura de Montenegro1, quem, quando o encontramos no romance, voltou ao poder por via eleitoral.

El retorno de la democracia a principio de los ochenta no desarticuló la labor que se llevaba a cabo en el edificio, pero la minimizó: se trataba de interceptar conversaciones de sindicalistas al principio, y de narcotraficantes después […]. Los noventa fueron años de espasmódica labor escuchando a los políticos opositores y turbios empresarios con los teléfonos pinchados. Cuando Montenegro regresó al poder por la vía democrática te alegraste: se te ocurrió que todo cambiaría con él, y volvería la urgencia a tu labor. Qué decepción: lo cierto era que no había un gran peligro a la seguridad nacional como en los años de su dictadura (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 15).

Uma das questões mais importantes do romance diz respeito às responsabilidades, especialmente às responsabilidades para com o tempo presente. Encontramos uma Bolívia sacudida por manifestações populares, com grande parte da população revoltada contra o modelo neoliberal que se instalou no país no final do século XX. Mas, às manifestações tradicionais, lideradas por sindicatos e lideranças populares, junta-se o ciberativismo levado a cabo pelos jovens que organizam o movimento denominado Resistência, responsável por uma série de ataques a sites do governo e cuja desintegração é o principal objetivo da Câmara Negra.

O personagem referido no título do romance, no entanto, poderia ser considerado um exemplo daqueles que aderem ao tempo, deixam de se questionar sobre o presente e sobre a responsabilidade de suas ações. Apresenta, especialmente em relação a seu trabalho, um tipo de conexão que impede o deslocamento produtivo, que se furta à política:

Has servido, sin favoritismos, a dictadores blandos y crueles, a presidentes demócratas respetuosos de la ley y a otros muy dispuestos a quebrar, de la manera que fuera, el espinazo de los sindicatos y la oposición. Para hacerlo, te has concentrado obsesivamente en tu trabajo, sin preguntarte por las consecuencias. Para ti, el gobierno es una gran abstracción, una enorme maquinaria desprovista de rostro. Cumples con las órdenes sin cuestionarlas: tus principios son los del gobierno de turno (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 96).



Com a chegada do novo século, o trabalho da Câmara Negra volta-se para o combate às atividades de hackers e ao cibercrime, e contrata para seu posto mais alto um funcionário da NSA (National Secuty Agency) de ascendência boliviana. Apesar de escrito em 2003, o romance parece dialogar diretamente com o que vem ocorrendo dez anos depois, com as condenações de Edward Snowden, também um antigo colaborador da NSA, condenado por revelar informações do programa de vigilância eletrônica levado a cabo pelo governo dos EUA; Chelsea Manning, ex-integrante do exército norte-americano condenada a 35 anos de prisão por distribuir informações sigilosas sobre a guerra do Iraque ao WikiLeaks; além do principal porta-voz do WikiLeaks, Julian Assange, asilado na embaixada do Equador em Londres desde 2012.

A preocupação com a segurança na internet parece tomar conta da cidade, que deixa de se preocupar com as reivindicações dos manifestantes que enchem as ruas. Em conversa com Turing, um de seus vizinhos diz que lhe preocupam mais os ataques a computadores que as manifestações e bloqueios nas ruas, pois com isso já está acostumado. Turing, por sua vez,

No sabes mucho de política, y no quisieras meterte a analizar las múltiples aristas del conflicto; lo único que sabes es que el país está como está por una falta escandalosa de obediencia al principio de autoridad (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 301).

Sobre as manifestações, busca ignorá-las, ainda que, como afirma o narrador, no país em que havia nascido, isso fosse impossível:

De regreso a la Cámara Negra, descubres que la policía ha logrado despejar algunas calles. Con un chicle de mentol en la boca, observas en varias intersecciones llantas y maderas ardiendo en un fuego parpadeante: el paisaje de confrontaciones que te había tocado desde la infancia, en un país en el que tus conciudadanos se resistían a aceptar los dictados provenientes de arriba. A veces, los años discurrían lánguidos, perezosos, sin asomo de movimiento en la corteza terrestre; pero esa paz no era más que un paréntesis entre sacudidas, y sólo era cuestión de esperar con paciencia hasta la llegada del nuevo temblor. El epicentro variaba: las minas, las universidades estatales; el trópico cochabambino; el altiplano paceño; las ciudades. Los motivos variaban: protestas contra un golpe de Estado; el salario mínimo vital; el alza en el costo de la gasolina y los productos de primera necesidad; la represión militar; los planes de erradicar los cultivos de coca; la dependencia de los Estados Unidos; la recesión; la globalización. Lo que permanecía invariable era la existencia de un punto neurálgico de discordia, varias razones para la protesta. Lo sabías, porque por más que hicieras un esfuerzo, era imposible aislarse del todo, dedicarte a tu trabajo y olvidar la coyuntura. No del todo, jamás en el territorio que te había tocado en suerte. Pero había que intentarlo. Ser impermeable al entorno era la única manera de sobrevivir, de no ser arrastrado por el vendaval del presente (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 211).

O modelo econômico-político neoliberal foi implantado na Bolívia a partir do início dos anos oitenta, no rastro da enorme dívida externa adquirida pela ditadura de Hugo Banzer, fato similar ao que ocorreu em outros países da América do Sul assolados por ditaduras apoiadas pelo governo dos Estados Unidos. O neoliberalismo, como sabemos, faz a apologia do livre-mercado, da competição desregulamentada e de uma retração do Estado que, segundo Bauman, incorre numa ausência total de questionamento, numa “submissão ao que é visto como a lógica implacável e irreversível da realidade social” (BAUMAN, 2000, p. 132). Assim, Turing é um autêntico filho do sistema neoliberal, que não se coloca a possibilidade de pensar politicamente, incapaz de deslocar-se de seu tempo, apenas lamentando um mundo em que a autoridade inconteste lhe proporcionasse um direcionamento. A opção (governamental) pelo modelo neoliberal implica, para os cidadãos comuns, a redução (deliberada) da proteção do Estado. O que busca Turing não é a proteção de um Estado de direito que garanta condições de vida para sua população, mas sim uma relação de autoridade paternalista que suplante a que tinha com seu antigo mentor, Albert, o criador da Câmara Negra, quem lhe ensinou tudo o que sabe sobre criptografia e se encontra inconsciente, à beira da morte. No entanto, Turing sente-se frustrado em relação a suas memórias de Albert ao descobrir que este último o usou para justificar ações ilegais e violentas da ditadura de Montenegro. Em meio aos protestos que envolvem todo o país contra a privatização do fornecimento de energia elétrica para a multinacional Globalux (que lembra a privatização do fornecimento da água na Bolívia, em 2000), o atual presidente da Câmara Negra descobre que a criação de um centro de criptoanálise não passou de uma estratégia do governo ditatorial para, através da suposta interceptação e deciframento de mensagens de grupos de oposição ao governo, exterminar toda e qualquer forma de oposição. As mensagens decifradas por Turing, portanto, não passaram de criações de Albert junto a setores duros do governo, incriminando alvos já determinados. Sem uma forma paternalista de autoridade à qual recorrer (não apenas Albert, mas Montenegro também se encontra enfraquecido tanto política quanto fisicamente, com câncer), Turing dá voltas pela cidade, sem saber o que fazer. Encontra-se com sua amante, decide buscar uma igreja (uma das principais faces da autoridade paternalista contemporânea), volta à Câmara Negra, vai para casa. No fim, aceita que teve responsabilidade nas mortes derivadas dos códigos que decifrou, apenas para justificar que cumpria ordens. Mas que, “además de asumir sus responsabilidades, [...] no puede hacer nada” (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 302).

O que vem abalar a tranquilidade de Sáenz é o recebimento de um e-mail, cifrado, em sua caixa de correspondência privada, à qual só têm acesso seus colegas da Câmara Negra. A mensagem é um recado do grupo ciberativista Resistência, composto por hackers liderados por um jovem conhecido apenas como Kandinsky, e diz diz “ASSASSINOTEMASMAOSMANCHADASDESANGUE”. O e-mail recebido por Sáenz é definido pelo hacker que o enviou como “ciberescrache”, numa referência aos escraches públicos, criados por jovens argentinos como uma forma de não deixar impunes, ainda que simbolicamente, torturadores não condenados pela justiça comum.

O grupo ativista H.I.J.O.S. (Hijos e hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio), criado em 1995 por filhos de desaparecidos políticos durante a última ditadura civil-militar argentina, utiliza os escraches como forma de reclamar não apenas a memória de seus pais desaparecidos, mas também a sua própria, que lhes foi amputada no processo de construção de uma identidade familiar — especialmente aqueles cujas famílias esconderam o ocorrido com seus pais, numa tentativa de impedir que as crianças seguissem o mesmo caminho; ou os que buscam por seus irmãos sequestrados pelos torturadores, e que foram, de maneira ainda mais violenta, privados de sua história pessoal. Sua luta pela memória e por justiça é uma luta coletiva, pela memória de todo um país (de um continente, poderíamos acrescentar) que não pode perder a dimensão do comum e do público, sempre deixada de lado pelas práticas neoliberais — é fundamental lembrar que tais práticas foram implantadas no continente, na maioria das vezes, na esteira do fim das ditaduras civil-militares, sendo apresentadas, enganosamente, como a única alternativa ao modelo autoritário-desenvolvimentista liderado pelos governos antidemocráticos. Não podemos nos esquecer, no entanto, que os mesmos interesses econômicos (em escala internacional) que conduziram aos golpes militares na América do Sul são aqueles que nos vendem o modelo neoliberal como única saída democrática de inserção no mundo do capitalismo ocidental.

Sobre suas ações de memória, os H.I.J.O.S. afirmam que as concebem como um “compromisso social”, a busca por uma memória “ativa” que contamine toda a sociedade. Caso contrário, corre-se “el riesgo de cadaverizar la memoria, de secarla, de creerla parte de un pasado incuestionable, incapaz de crear una relación con el presente” (H.I.J.O.S., s/d). Os escraches são, segundo Diana Taylor (2013), uma forma de “performance-gerrilha”, em que se expõem criminosos associados à ditadura que não foram punidos por seus crimes: um conhecido lema do grupo é “Si no hay justicia, hay escrache”. São manifestações móveis de caráter pacífico e festivo, que contam com demarcações no espaço urbano (através de pichações2, grafite, placas etc.), música, participação de artivistas (como os grupos Arte Callejero e Etcétera) e testemunhos3. O grupo H.I.J.O.S. pode ser considerado um herdeiro dos grupos de mães e avós que se reúnem na Plaza de Mayo, no centro do poder argentino. As Madres de la Plaza de Mayo, que iniciaram seus protestos no auge da repressão militar também performatizam a memória e a luta por justiça, mas de um modo diferente, carregando fotos de seus filhos desaparecidos em seu próprio corpo — “transformando seus corpos em outdoors”, escreve Diana Taylor, “elas os usavam como um conduto de memória” (TAYLOR, 2013, p. 241) — e exigindo sua “aparición con vida”, numa denúncia dos assassinatos cometidos pelo Estado, ainda que sem a possibilidade de os nomear. Após o fim da ditadura, suas reivindicações por justiça tornaram-se mais explícitas e os assassinos de seus filhos puderam ser identificados em seu discurso.

A luta desses filhos, mães e avós de desaparecidos é uma luta pela memória, o que, por sua vez, é uma luta política: por voz, pelo direito de existir, de ter uma história (até mesmo uma história familiar, que lhes foi saqueada). O escrache é um ato de justiça não apenas no momento de sua duração, pois, conforme organizadores dessas manifestações, tanto o escrache quanto o processo de justiça efetivam-se realmente após o fim da manifestação, quando os vizinhos tomam consciência de sua proximidade com um assassino e são confrontados com a necessidade de agir diante de tal informação. Dessa forma, podemos dizer que o escrache é, principalmente, uma forma de construção/ativação da memória coletiva.

Dissemos anteriormente que parte dos escraches é a marcação/escrita no espaço público que cria memória e distingue lugares4: os H.I.J.O.S., em suas manifestações, colocam placas, cartazes e também escrevem nos muros e ruas da cidade a localização de algum centro de tortura ou a proximidade com algum torturador; as Madres tomaram para si a Plaza de Mayo, inclusive ao pintar seu lenço branco no chão da praça. Essas marcações aproximam-se da pixação e do grafite, que também são formas de fazer falar o espaço público, de torná-lo representativo.

A muitos dos espaços de nossa cidade não cabe outro nome que não “espaços púbicos” (em oposição a “espaços privados”), mas não estão disponíveis ao efetivo uso por todos os membros da população. São espaços que decorrem de uma visão utilitarista e mercantilizada das cidades, que seriam refratárias ao exercício da cidadania e da civilidade por parte de todos. Podemos chamá-los, em consonância com Zigmunt Bauman, de espaços “públicos-mas-não-civis” (BAUMAN, 2001, p. 119), pois são refratários ao uso e à permanência e identificação de determinados setores sociais. A luta pela apropriação do espaço das cidades — como o fazem não apenas grupos de militância política organizada e facilmente identificável, como os H.I.J.O.S. e as Madres de la Plaza de Mayo, mas também sujeitos cuja participação política é menos institucionalizada, como os pixadores e grafiteiros — é uma luta por visibilidade: dar a ver os que foram desaparecidos, torturados e assassinados por regimes opressores e os que continuam a sê-lo em nossas autodenominadas democracias.

Existe uma mortalidade seletiva no Brasil, como se pode comprovar, por exemplo, pelos mapas da violência publicados periodicamente, que deixam ver quem são aqueles considerados cidadãos e quem são os declarados “inimigos” pelo poder governamental. Entre os anos de 2002 e 2010, por exemplo, o homicídio de pessoas negras em nosso país aumentou 29,8%, enquanto a taxa de homicídios de pessoas brancas diminuiu 25,5% (Waiselfisz, 2012, p. 14). A OAB/RJ lançou, em 2013, a campanha Desaparecidos da democracia — Pessoas reais, vítimas invisíveis”, que busca promover o debate a respeito da alta taxa de letalidade das incursões policiais em comunidades no Rio de Janeiro, onde, entre 2001 e 2011, dez mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia. Os chamados “autos de resistência”, que denominam as mortes supostamente advindas de confronto e resistência à ação policial, foram criados durante a ditadura civil-militar brasileira, mas têm sido cada vez mais utilizados nos relatórios das ações das polícias militares no período pós-ditatorial. Essa classificação propicia que grande número de mortes deixe de ser investigado, em especial quando se trata de ações em favelas. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, MarceloChalréo, compara os “autos de resistência” à pena de morte imposta pelo aparato repressor aos brasileiros que vivem em situação de pobreza e periferização. Parte da campanha consiste no registro do testemunho de parentes das vítimas, na afirmação da ausência criada pelo desaparecimento das vítimas, em incluir no discurso aqueles aos quais foi negada até mesmo a morte, dissolvida na denominação oficial de “autos de resistência”5.

Thiago Fabres de Carvalho, em seu artigo “O ‘direito penal do inimigo’ e o ‘direito penal do homo sacer da baixada’: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro”, evidencia que, no Brasil, os chamados “setores subalternos” são deixados de fora do discurso legislativo naquilo que toca seus direitos enquanto cidadãos, sendo antes considerados “inimigos internos” aos quais o sistema jurídico só se apresenta “através das sanções normalizadoras e afastando-os das garantias estabelecidas pela ordem constitucional” (CARVALHO, 2007, p. 117). Destaca ainda que o aumento de legislação punitiva conduzida pela chamada “guerra às drogas” (enfatiza-se aí o vocabulário bélico) é parte de um projeto de Estado neoliberal que visa substituir a implantação de políticas de ordem social pela punição (em geral seletiva) de ações geradas pela ausência de práticas de inclusão social, além de atender à necessidade midiática de setores da sociedade. Sabemos que também a punição obedece à mesma seleção que organiza as mortes por homicídio em nosso país: segundo dados apresentados pelo relatório “O Brasil atrás das grades”, publicado pela Human Rights Watch em 1998, 65% da população carcerária brasileira é composta por negros, sendo que 54% têm menos de 30 anos de idade e 69,5% possuem apenas o ensino fundamental (CARVALHO, 2007, p. 102).

Além do próprio direito às garantias constitucionais mais básicas como a manutenção da vida, esses mesmos setores populacionais estão submetidos à discriminação e ao cerceamento em seu direito à cidade. Em janeiro de 2014, por exemplo, trabalhadores foram proibidos de entrar em um prédio comercial da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde funciona uma clínica de medicina do trabalho, responsável pelos exames admissionais de diversas empresas. O administrador do condomínio teria alegado que a circulação de determinado grupo de pessoas, em sua maioria negras e pobres, causaria “poluição visual e mau cheiro” (MARINATTO, 2014, s/p). Outra forma de exclusão social é a adoção de políticas higienistas, ao lado da gentrificação e da periferialização das camadas mais pobres da sociedade, e também o sucateamento e encarecimento do transporte público, o que dificultaria seu acesso às áreas centrais das cidades.

O rapper paulista Criolo divulgou através do site YouTube uma versão para a canção “Cálice”, escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973. Tal releitura pode ser compreendida como um relato das opressões impostas aos habitantes das regiões periféricas da cidade. Ao iniciar-se com o questionamento “Como ir pro trabalho sem levar um tiro? / Voltar pra casa sem levar um tiro?”, a letra expõe uma face da violência que atinge mais fortemente esses grupos sociais, aos quais não cabe a polícia enquanto organismo (supostamente) protetor, como ela pode ser compreendida nos bairros de maior renda. Como vimos a partir dos dados apresentados, a essa parcela da população urbana a lei cabe apenas como aparato punitivo-repressor. A voz poética segue denunciando justamente a proibição do uso de determinados espaços, ao afirmar que “os saraus tiveram que invadir os botecos / pois biblioteca não era lugar de poesia / Biblioteca tinha que ter silêncio / e uma gente que se acha assim muito sabida”. Nestes precisos e dolorosos versos vemos uma depreciação, infelizmente ainda muito comum, das manifestações culturais e artísticas dos mais pobres. Uma elitização até hoje frequente do próprio conceito de cultura que despreza o saber de determinados grupos sociais, recusando manifestações denominadas pejorativamente de “populares” como algo exótico que não deveria ocupar a biblioteca, templo da alta cultura e do saber. Existe ainda nos versos citados a denúncia de uma normatização dos corpos e dos usos dos espaços. Os corpos indóceis dos pobres devem buscar enquadrar-se, de forma mimética, num modelo de utilização do espaço criado e mantido por aqueles que têm o poder de decidir sobre seus usos, essa “gente que se acha assim muito sabida”. Portanto, apenas uma única forma de produção cultural e uma única atitude corporal são permitidas nesses espaços chancelados pelo Estado e pelas elites.

O sujeito poético segue denunciando àqueles que se colocaram contra a opressão imposta pela ditadura civil-militar implantada em 1964, e que foram absorvidos pelo discurso da “alta cultura”, as práticas seletivas da brutalidade dos aparelhos repressores estatais — em especial a violenta policia militar, herdeira direta de práticas iniciadas durante a ditadura: “A ditadura segue, meu amigo Milton / A repressão segue, meu amigo Chico”. E deixa bem claro seu conhecimento das distinções culturais a que estão expostos tanto ele quanto seus semelhantes, ao afirmar a mestiçagem étnica e cultural que lhe conforma (“Me chamam Criolo e o meu berço é o rap”), mas também ao ressaltar o alcance de suas palavras, que servem de alento e incentivo a muitos de seus semelhantes (“Mas não existe fronteira para minha poesia”). Um discurso muito frequente entre os integrantes do movimento hip-hop, complexa rede de manifestações culturais que inclui o rap, o grafite e o pixo, é a de que o hip-hop salva vidas. Acreditamos que o hip-hop é, antes de tudo, uma forma de artivismo, um conjunto de manifestações artísticas que não se podem separar de uma prática e um discurso profundamente político, como o que se vem afirmando neste trabalho a respeito da literatura. Poderíamos acrescentar, ainda, que o hip-hop constitui uma ética da experiência, de um saber compartilhado que só se pode dar no contato com o outro. Jorge Nascimento afirma que o rap “é a verbalização performática da palavra coletiva de muitos jovens de todo o mundo, que é a busca da legitimação — através da palavra e da atitude — de muitos que estão à margem do território da cidadania” (NASCIMENTO, 2011, p. 215-216). Em seu discurso, a forma de estetização do real pelo rap se daria, então, “pela transformação da experiência (real ou imaginária, pessoal ou coletiva) em linguagem” (NASCIMENTO, 2011, p. 224). E, acrescentamos, é no processo de transmissão desse texto-atitude que efetivamente se realiza a prática política da experiência. Em outra de suas produções, “Ainda há tempo”, Criolo afirma que “se o rap está comigo eu não me sinto excluído”.

Voltando à versão do rapper para “Cálice”, verifica-se que, assim como a de Chico e Gil, quando não existem aparelhos de proteção ao cidadão, quando a cidadania mesma é negada e determinados sujeitos ou grupos sociais são tratados como inimigos pelo Estado, só é possível recorrer a forças sobrenaturais: “Afasta de mim a biqueira, pai / Afasta de mim as biate, pai / Afasta de mim a coqueine, pai / Pois na quebrada escorre sangue, pai”6. Dessa forma, para manter-se vivo, para manter-se afastado dos diversos perigos que se oferecem à sua interidade física e psíquica, o habitante da “quebrada” não tem a quem recorrer senão a Deus, a algo que transcenda os seletivamente ineficientes aparelhos estatais, portanto, em meio às impossibilidades sociais que afligem seu corpo invisibilizado.

O grafite e o pixo são formas de dar a ver não apenas um grupo social que se quer excluir da cidade, mas a própria cidade. Muitas vezes, aquele que se movimenta pela cidade só passa a notar algum de seus espaços depois que este foi marcado pela inscrição, muitas vezes considerada agressiva, de um pixador. Mas ao inscrever suas tags7 nos muros da cidade, o pixador cria demarcações que os transformam em lugares para aqueles que sabem identificá-las. As pixações fazem uma cartografia da cidade, demarcando socialmente, para aqueles que sabem “ler o muro”, espaços e territórios. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira narra, de um de seus encontros com os pixadores de São Paulo, que um desses jovens dizia orientar-se na cidade através das pixações, afirmando que “sabia que estávamos chegando ao local de encontro por causa das pixações nos prédios” (PEREIRA, 2012, p. 63). O pixo é, então, uma reivindicação da paisagem, reorganizando o mapa (simbólico e afetivo) da cidade. É, também, um exercício do direito à cidade, pois implica um uso imprevisto (e muitas vezes ilegal) dos espaços urbanos.

Os pixadores são, de forma geral, moradores de periferia, cuja circulação pelas regiões centrais da cidade deveria restringir-se às suas atividades estritamente necessárias, como aquelas ligadas ao trabalho nas empresas que ali estão sediadas. Outro fator interessante é que muitos são office-boys, o que lhes propicia, nessa movimentação “autorizada” pela cidade, localizar os pontos onde, quando a circulação de pessoas diminua, deixarão sua marca. Fissuram, assim, o uso esperado da movimentação que é permitida a seus corpos durante o dia na cidade. É de dentro de uma movimentação determinada e (autoritariamente) autorizada que criam demarcações dos usos efetivos do espaço urbano que representam suas inscrições. Assim, é à noite que exercem seu direito à cidade, modificando-a e deixando nela a marca de sua passagem, mas também de sua ausência: de um corpo rebelde que se recusa a obedecer às delimitações espaço-sociais que lhe são impostas.

Essas demarcações, assim como a presença das mães na Plaza de Mayo, dão a ver a ausência de determinados corpos, mais que sua presença que, por incômoda, foi invisibilizada, através do assassinato ou da exclusão espaço-social. Essa ausência que se demarca aponta para a exclusão do discurso, da memória, da cidadania. Dessa forma, em Piglia, a cidade torna-se ausente pela memória que se quer apagar, pelas narrativas da máquina que são impossibilitadas de circular. Mas, assim como os pixadores que se arriscam em rolês clandestinos pela madrugada das cidades, também a máquina, esse esforço de memória, continua viabilizando a circulação de narrativas que dão voz àqueles de quem se quer apagar até a mesmo a ausência. Pois fazer memória é também constituir uma ausência: um corpo invisível que faz uma marca para inscrever sua ausência desses espaços, porque, sem essa marca, sequer à sua ausência é permitido existir. Ressaltamos, com Baudrillard (2005), a escolha por pseudônimos, ao invés de nomes, nas pixações. Isso denota o conhecimento da impossibilidade de entrar na lógica positiva das identidades (e da cidadania) que, em nossos dias, só se afirma pelo consumo. Implica em fissurar essa lógica, voltando-a sobre si mesma e valorizando “identidades periféricas” que são estigmatizadas. Mas o pixo não é a presença do corpo invisibilizado, é a performance desse corpo, é o traço deixado por essa performance, que inclui a criação de uma ausência. E, nos rolês, a própria movimentação do corpo pela cidade é política. Poderíamos falar, então, numa coreografia da pixação, que cria sentidos para o espaço que ocupa/percorre. Mas também é necessário afirmar que é “coreopoliciada”8, pois se organiza no sentido de evitar o ordenamento repressor policial. Mas existe, também, um elemento de confronto: como bem o destaca o rapper Criolo, em “Doum”9, “a lata vai revidar” a repressão e o autoritarismo impostos a esses corpos.

Para Jacques Rancière (2001), a polícia (constituição simbólica do social que se opõe à política) instaura no espaço uma interrupção das manifestações subjetivas. Enquanto a política propicia a simbolização de um espaço para que ali possa emergir um sujeito, a polícia busca justamente o esvaziamento subjetivo dos espaços dito públicos. A ordem de circular (“Circulando! Não há nada para ver aqui”) reitera a lógica punitiva e de exclusão daqueles que buscarem deixar sua marca neste espaço que não é habitável (marcar o espaço e, mais importante, inscrever o nome no espaço é uma forma de habitá-lo, de transformá-lo em lugar). A política, por sua vez, “consiste na reconfiguração do espaço, do que há para fazer aí, do que há para ser visto ou nomeado nele” (RANCIERE, 2001, p. 05). Ou seja, a política opera um deslocamento simbólico do próprio deslocamento dos corpos pela cidade. Assim, a inscrição do pixador é uma politização do espaço, pois resiste, também, ao esvaziamento de significados implícito na ordem de circular. Parar (nem que seja a parada efêmera do tempo de um pixo) é o exercício político de usos do espaço (de direito à cidade) a partir da ordem coreopolicial (e econômico-social) de circulação.

O universo do pixo é também o da movimentação, especialmente quando se trata da pixação em lugares de grande circulação e destaque, como as áreas centrais da cidade. Os jovens saem em grupos para rolês, mas sua principal forma de sociabilização se dá nas paradas nos points, os espaços de encontro e trocas entre eles, onde “tecem uma vasta e complexa rede de relações de reciprocidade” (PEREIRA, 2010, p. 149). Nesses encontros, uma estratégia de sociabilização é a troca de folhinhas, nas quais os pixadores reproduzem as inscrições feitas nos muros da cidade. Nessas folhinhas ficam registradas de forma mais permanente as imagens que são apagadas da cidade sistematicamente pelo poder governamental.

O espaço do chão, destacado por Lepecki, é um espaço propício para a política, pois é um espaço fissurado, rasurado, contaminado pela história. Quando os H.I.J.O.S. e as Madres privilegiam inscrições no chão, eles ressignificam esse espaço que, a princípio, é apenas suporte para o caminhar: é a partir do chão que se reescreve a história e a memória de um país, é a partir do chão que se fissura um discurso hegemônico.

Já no pixo o traço é uma pulsação política porque dá a ver a violência (que, sem as marcas, estaria fora do foco). Ao vestirem as fotos de seus filhos, as mães da Plaza de Mayo denunciavam a efetiva existência desses desaparecidos de quem até mesmo os documentos comprobatórios de sua presença haviam sido apagados. O uso das fotografias tanto pelas mães quanto pelos filhos dos desaparecidos busca preencher o espaço deixado por essas vidas, mas esse preenchimento, a foto que demarca a sua existência, não constitui uma forma de presença do desaparecido, mas sim uma inscrição da sua ausência, de que já não podem estar ali a não ser através do registro. O fato de utilizarem as fotos dos documentos oficiais de identidade pressupõe um atestado por parte do poder governamental de que esses sujeitos, seus filhos desaparecidos, existiram. Não é mais possível apagá-los dos registros (como buscam fazê-lo):

Ao usar pequenas reproduções dos documentos de identidade no pescoço, as Madres transformaram seus corpos em arquivos, preservando e exibindo as imagens que haviam sido alvo de uma tentativa de apagamento. [...] Vestir as imagens como uma segunda pele realçou a relação afiliadora que os militares buscaram aniquilar. As Madres criaram uma imagem epidérmica, em camadas, sobrepondo os rostos de seus entes queridos a elas próprias (TAYLOR, 2013, p. 250).

Na pixação também um existe um código de memória e preservação da memória daqueles que já não estão em atividade, especialmente no caso daqueles que já faleceram. Muitos pixos levam a inscrição “in memoriam” ou “esteja em paz” (PEREIRA, 2012, p. 59). O chamado “atropelo”, em que um pixo se sobrepõe a outro, é considerado uma das práticas mais recusadas pelos pixadores, ainda mais grave se o atropelo ocorrer com o pixo de alguém já fora de atividade ou falecido. A importância da memória dos falecidos, em especial, é também uma forma de afirmação da precariedade das condições em que vivem (e dos riscos a que estão expostos na prática de suas intervenções). Esse corpo ausente deve ser lembrado pela manutenção da marca que evidencia sua ausência.

A violência suprime tanto o corpo quanto a ausência do corpo. Quando havia a morte pública exemplar, o que se publicizava era o corpo e a ausência que seria deixada por aquele corpo. Com o desaparecimento dos suplícios públicos, escreve Foucault, “a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada ao seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um elemento intrínseco a ela” (FOUCAULT, 2012, p. 14). A partir daí, o castigo passa a ser “uma economia dos direitos suspensos” (FOUCAULT, 2012, p. 16). E ainda:

Nas cerimônias do suplício o personagem principal é o povo, cuja presença real e imediata é requerida para sua realização. Um suplício que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado (FOUCAULT, 2012, p. 56).

Hoje, nos desaparecimentos cotidianos do “homo sacer da baixada”, o que se tem é um apagamento da mão do poder, uma ação de punição difusa para uma culpabilidade também difusa. Não existe um crime nem uma sentença (em termos jurídicos) e, menos ainda, a instauração de uma pena. Um poder difuso que não se oferece à nomeação seleciona aqueles que serão tratados como inimigos, sem apresentar sequer o corpo supliciado. É porque esse poder estabelece-se como exceção às normas jurídicas (fundamento das democracias de direito contemporâneas) — exceção que compõe a regra, deve-se ressaltar — que os corpos desaparecidos de sujeitos que foram executados e condenados por atores ligados ao ordenamento jurídico, mas agindo fora dele, devem permanecer ausentes. Não são mais exemplos de um poder soberano e localizável, mas agentes de uma ansiedade disforme e profundamente eficaz em sua função docilizadora.

A figura do homo sacer, investigada por Giorgio Agamben na série de estudos de mesmo nome, acaba por designar muito bem esses indivíduos de quem é retirada toda dimensão política e aos quais só cabe, como representante do Estado, a polícia. Reduzidos à “vida nua”, vida despolitizada, o homo sacer é a figura máxima do refugo humano indispensável à lógica econômica do capital globalizado (Cf. BAUMAN, 2005). O que define o homo sacer, para Agamben, é “a dupla exclusão em que se encontra preso e a violência à qual se encontra exposto” (AGAMBEN, 2010, p. 84). É aquele que está excluído da política, ao qual não se aplica a lei enquanto norma dos direitos do cidadão, mas sobre quem apenas recai a lógica do “inimigo interno”. Assim, é um corpo cuja ausência não deve ser notada, um corpo descartável: o refugo, enfim, que não queremos ver depois que já não nos serve.

O apagamento da ausência, em especial o apagamento da morte, é também o da presença desses corpos enquanto vivos. Não apenas às mortes dos desaparecidos políticos durantes as ditaduras que assolaram nosso continente no século XX, mas às mortes de habitantes de periferias que continuam a constar apenas como “desaparecimentos” em relatórios produzidos por órgão ligados ao poder governamental é preciso opor o discurso da visibilidade. Os imprecisos dados de que se dispõe dão conta de que vivemos no país que mais mata pessoas transgênero no mundo, mas a invisibilização dessas mortes nas estatísticas (em geral, quando se registra crime por motivo de ódio, registra-se homofobia, como se se tratasse do assassinato de um homem homossexual) e o insistente apagamento da identidade de gênero das vítimas — que se reflete não apenas na insistência em se recusar seu nome social, mas na própria língua, ao se recusar a utilização correta da flexão de gênero — dão conta do desejo de que esses corpos incômodos se dissipem. Apagar a ausência é apagar a presença duplamente. O próprio gesto de fazer memória deve incluir a marca da ausência, como a afirmação de que algo (alguém) existiu. Por isso é preciso, com o pixo, marcar a ausência da cidade.

Na esteira da crise econômica desencadeada em 2008, jovens espanhóis aderiram ao escrache cibernético como forma não apenas de constranger políticos a quem se responsabiliza pela crise, mas também como forma de pressioná-los para que votem por medidas de bem-estar social, especialmente através das manifestações organizadas pela Plataforma de Afectados por la Hipoteca. A utilização da internet para fins de mobilização e modificação social pode ser considerada um exercício de ciberpolítica, como dissemos anteriormente: a instauração simbólica de espaços virtuais que propiciem a constituição de sujeitos, em especial sujeitos cujos discursos dissonantes façam-se ouvir. Assim, ao fazer da internet um lugar, abre-se espaço para manifestações de vozes dissidentes que poderiam (e deveriam, segundo a lógica do poder) ser abafadas por um discurso que não se propusesse a olhar o mundo de viés. E tal prática se dá, também, através das inscrições e marcas de sujeitos ou grupos de resistentes, como um “pixo virtual”. Retomando o romance de Paz Soldán, tal prática é levada a cabo pelo personagem Kandinsky no início de suas ações de hackativismo. É justamente com uma inscrição cibernética, o que podemos aproximar da pixação, que o personagem marca o surgimento de uma resposta, através de ações na internet, às práticas neoliberais bolivianas:

Al rato, la emoción todavía en su piel, Kandinsky volverá a ingresar al sitio del Citibank en la red. Esta vez no robará números de tarjetas de crédito; destruirá la página de bienvenida a los clientes, y la reemplazará por una foto de Karl Marx y un graffiti proclamando la necesidad de la resistencia.

Es el nacimiento del ciberhacktivismo de Kandinsky (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 122)10.



Outra importante forma de ciberativismo que vem ganhando relevo é a que ocorre através das redes sociais. Podemos destacar sua importância nas manifestações que vêm ocorrendo desde 2011, começando com a grande mobilização de protestantes na Tunísia após o suicídio por imolação de Mohamed Bouazizi. Após o levante na Tunísia, manifestações tomaram os países do mundo árabe, espalharam-se pela Europa e chegaram à América. Essa movimentação foi acompanhada e incentivada de perto pelos usuários de redes sociais como Facebook e Twitter, jovens em sua maioria. O ciberativismo desempenhou um papel importante nesses movimentos, sendo a internet mais um dos espaços públicos ocupados na busca pela escuta de suas diversas demandas, que muitas vezes foram expressas majoritariamente como um repúdio à organização dos poderes, tanto locais quanto mundiais. Um grande marco na utilização da internet como ferramenta dos protestos foi a reação dos islandeses à crise que atingiu o país em 2008. Com uma das rendas per capita mais altas do planeta e mais de 90% de sua população conectada à internet, a população utilizou a rede não apenas para organizar os protestos, mas também para pressionar os políticos em favor da redação de uma nova constituição. Após eleições em que os partidos tradicionais tiveram grandes derrotas, o novo governo criou uma Assembleia Constituinte aberta a todos os cidadãos do país. Os vinte e cinco eleitos buscaram sugestões da população através da internet e, também utilizando a rede, submeteram a primeira versão do texto à população. A nova constituição da Islândia foi chamada de wikiconstituição, em referência à Wikipédia, enciclopédia digital construída em grande parte por voluntários, cujos artigos são de edição aberta.

A partir das imagens e informações difundidas através de telefones celulares e pela internet, que chega a constituir canais de mídia alternativa, as manifestações extrapolam as localidades, tornam-se movimentos globalizados, atingindo, às vezes, diversos países (cabe lembrar que ações artivistas como o pixo, o rap e até mesmo os escraches são performances globais): as manifestações de 2013 no Brasil, por exemplo, foram apoiadas por pessoas em diversos países; os “ocupas” de Wall Street inspiraram movimentos por todo o mundo. Em O delírio de Turing, uma questão que se colocam a todo momento os personagens de classe média é: “o que querem os manifestantes? Quais são suas propostas?”. Também nas manifestações que incendeiam os primeiros anos desta década as perguntas se repetem. O repúdio à divisão da riqueza, à organização partidária ou mesmo à forma como se configura a democracia representativa no ocidente é uma importante marca desses eventos. Essas lutas não indicam, ainda, saídas políticas, mas apontam, sim, para um desejo de não aderência ao presente, de deslocamento em relação ao estado dado de coisas. Sobre a tão acusada falta de propostas desses movimentos — formados majoritariamente por jovens, vale destacar —, é pertinente o que escreveu Slavoj Žižek a respeito do Occupy Wall Street:

é assim que o início deve ser, com um gesto formal de rejeição, mais importante do que um conteúdo positivo — somente um gesto assim abre espaço para um conteúdo novo. Portanto, não devemos ficar aterrorizados pela eterna questão: “Mas o que eles querem?”. (...) e a questão “O que você quer?” procura exatamente impedir a resposta verdadeira. Seu ponto é “Fale nos meus termos ou se cale!” in (HARVEY, 2012, p. 23).

Quem afirma “fale nos meus termos” é aquele que está no centro (do poder, da cultura, da língua) e coloca-se também em posição de legitimador de práticas e discursos. Os manifestantes que se negam a falar nos termos do poder estabelecido recusam-se a jogar um jogo em que já foram decididas posições e ganhadores. Ao negarem um discurso dito “coerente”, em que um líder falaria em nome da multidão, recusam uma forma de representatividade que é justamente aquela que exigem que seja reformulada, a (suposta) representatividade das democracias de direito. Negam-se, como os pixadores que recusam um nome civil, a participar de um jogo positivo de identidades que delas se serve apenas para a criminalização. Temos visto, no caso brasileiro, a sistemática criminalização de manifestantes e de midiativistas que denunciam os abusos cometidos pelo poder policial. Grupos como os Black Blocs, que, recusando-se a mostrar o rosto, recusam-se à apropriação de sua imagens para a localização (de ordem punitiva) da insatisfação de muitos na “persona civil” de uns poucos mais aguerridos. A proposta do governo brasileiro de criação de uma lei “antiterrorismo” no modelo do Patriot Act norte-americano busca institucionalizar a figura do “inimigo interno”. Esse outro do sujeito de direito recebe agora o nome de terrorista, em convergência com discursos internacionais de instauração de figuras de exclusão dentro do sistema jurídico, que mereceriam punição diferenciada. O Projeto de Lei do Senado brasileiro de número 499/2013 busca “defin[ir] crimes de terrorismo”, mas chama a atenção justamente por não apresentar em nenhum momento de seu texto definição menos vaga que a de que terrorismo consiste no ato de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, infrações que estão todas previstas no código penal brasileiro. Não se pode esquecer das motivações por trás deste Projeto de Lei: as manifestações populares que vêm ocorrendo desde 2013 e que prometem acirrar-se durante a realização dos grandes eventos internacionais previstos para os anos seguintes. Após o registro de onze mortes durante as manifestações, a maioria delas decorrente de ações policiais e sem maiores repercussões midiáticas ou processuais, a morte de um cinegrafista da rede de televisão Bandeirantes em fevereiro de 2014, da qual rapidamente foram acusados dois manifestantes, incitou inúmeros debates sobre um nascente terrorismo em nosso país, ao qual o Senado prontamente respondeu com o referido Projeto de Lei. A tipificação imprecisa e intencionalmente ampla dos atos considerados terroristas abre brechas para a criminalização de movimentos sociais e mesmo de quaisquer grupos, a partir de três integrantes, que organizem manifestações que se venha considerar que causem “pânico generalizado”. É — e isto talvez seja o mais importante — a assunção por parte do poder que não há interesse em negociar com a multidão nas ruas. Na própria justificativa do documento, os parlamentares afirmam que o único documento “de tipo penal que expressamente menciona o terrorismo remont[a] ao final do regime militar”, a Lei de Segurança Nacional. O que mais nos alarma, no entanto, é que consideram que a ausência da figura do terrorista de nossa legislação seja algo “constrangedor e irresponsável”.

Sobre a excessiva (e seletiva) legislação punitiva brasileira, cabe citar Thiago Fabres de Carvalho, em texto de 2007 que, no entanto, parece dialogar com as novas propostas de criminalização de movimentações sociais:

Esta incisiva abrangência e severidade das normas penais, em face deste movimento de criminalização de várias atividades em inúmeros setores da vida social, objetivam, claramente, [...] acentuar a violência do controle social sobre os segmentos marginalizados da população. Assim, as conquistas do direito penal liberal são gradativamente suprimidas em nome da necessidade de respostas ao estabelecimento de um verdadeiro estado de natureza hobbesiano. Vislumbra-se, portanto, um crescimento desordenado de normas penais que impõe ao arrepio das pautas deontológicas firmadas em níveis constitucionais a relativização dos princípios da legalidade e da tipicidade, em face da utilização de regras com conceitos indeterminados, porosos e ambíguos. Tal hipertrofia legislativa promove, ainda, a ampliação da discricionariedade das atividades policiais e judiciais, implicando na redução de garantias processuais, mediante, por exemplo, a inversão do ônus da prova, passando a considerar culpado quem não provar sua inocência (CARVALHO, 2007, p. 116-117).

A recusa a falar nos termos do poder é a afirmação de que é possível a negociação, desde que construa um espaço do comum — não por acaso as manifestações de 2013, no Brasil, tiveram início na reivindicação ao transporte público, ou seja, no direito à circulação pela cidade. A recusa dos manifestantes ao rosto, como a que faz o subcomandante zapatista Marcos, é a escolha por muitos rostos, por um corpo que não se deixa docilizar no enquadramento de uma foto de documento de identidade. Diferentemente dos filhos desaparecidos das mães da Plaza de Mayo, o poder governamental/policial não quer apagar a evidência de que esses corpos existem, mas sim nomeá-los numa individualização da insatisfação que poderia repercutir, midiaticamente, como a insatisfação de uns poucos, e não um descontentamento, mesmo que não delimitado, de amplos setores, que não podem resumir-se a concepções de classe ou movimentos.

Grupos que são deixados de fora do discurso de maneira proposital apropriam-se da margem para criar sua própria forma de sociabilização, que exclui aqueles que, por sua vez, iniciaram o processo de exclusão. No caso das periferias das grandes cidades, chama a atenção a utilização de gírias, que, em processo constante de deslocamento, modificam-se à medida que são apropriadas por grupos externos àqueles aos quais se dirige. O rap, muitas vezes, oferece barreiras à compreensão por parte daqueles que não pertencem ao seu contexto produtivo, gerando questionamentos semelhantes ao que se faz à multidão indignada, novamente exigindo que se fale nos termos do poder. A essa exigência, responde: “fia, eu odeio explicar gíria”11. Assim como o pixo, que não se oferece à leitura de todos. No documentário Pixo, dirigido por João Wainer, podemos encontrar o seguinte depoimento do pixador Choque: “A pixação de São Paulo era uma comunicação fechada, da pixação para a pixação. Então, na verdade, ela não se comunica com a sociedade, ela é uma agressão. Ela é feita para agredir a sociedade”. O pixo e a gíria são, assim, a negação de uma comunicação legitimada, que não se permite decifrar, revertendo a ordem de “fale nos meus termos”. É o pixador, o MC, o habitante da “quebrada” quem coloca os termos do discurso nessa prática de uma língua menor que desterritorializa os usos da cidade. Dessa forma, exigir explicação — como fazem repórteres ao entrevistar MC’s, por exemplo — pode ser uma forma de violência, de afirmação de que tais sujeitos encontram-se fora do (de um) discurso, do único discurso reconhecido pelos mecanismos do poder.

Esse gesto de rejeição é, também, uma proposta de luta. Quando cidadãos tomam para si o direito de reivindicar outras formas de vida, ainda que tal reivindicação se dê através do repúdio ao que se encontra à disposição, estamos diante de um ato propositivo, criativo. Aprendemos, das muitas manifestações que vêm ocorrendo desde 2011, que é preciso (re)politizar o espaço público, através dos corpos. Mas também politizar todos os espaços de discussão possível, como a internet. É preciso deslocar seus usos, como o fazem os hackers, cujas ações são, muitas vezes, chamadas pelo poder de “terroristas”, ou seja, ações que atingem justamente esses centros de poder. Um exemplo bastante conhecido de tais ações foi ataque do grupo de hackers Anonymous a diversos sites do governo norte-americano e de grandes empresas internacionais como forma de retaliação à proposta de legislação contra o compartilhamento de dados online, denominado SOPA (Stop Online Piracy Act). As ações do grupo Anonymous e de outros hackers, como o ciberativista Aaron Swartz, morto em 2013 enfrentando uma provável condenação por violação de direitos autorais na internet, desafiaram o poder, estabelecendo novas possibilidades de luta.

A comunidade hacker criou-se praticamente junto com a internet, através de uma proposta de colaboração em projetos de autoria coletiva e, na maioria das vezes, de código aberto e livre distribuição, como o conhecido sistema operacional Linux. Sobre as possibilidades do chamado hackativismo, Manuel Castells escreve:

a vulnerabilidade tecnológica da internet permite, em expressões de protesto individuais ou coletivas, a interferência em websites das redes eletrônicas de agências do governo ou de empresas, visados como representativos de opressão ou exploração. Esse é o caso dos “protestos hackerativistas”, que variam da sabotagem individual à invasão dos websites restritos de agências militares ou de companhias financeiras para patentear sua insegurança e protestar contra seus objetivos (CASTELLS, 2003, p. 115).

O personagem Kandinsky de O delírio de Turing é um hackativista, líder do grupo Resistência, apoiado pelas lideranças tradicionais dos movimentos sociais, representados, principalmente, pelo grupo denominado Coalizão. Vindo de uma família pobre, Kandinsky decide utilizar seus conhecimentos de informática para lutar por uma Bolívia mais justa, inspirando-se no uso da internet que fazem movimentos como o EZLN: “Había que reapoderarse del espacio virtual, y no sólo de éste sino que también del espacio real. Había un Estado, había corporaciones contra las cuales se debía luchar(PAZ SOLDÁN, 2003, p. 122).

No se olvida de las protestas de Seattle en noviembre del 99: le han hecho ver que nos está solo, que hay un descontento generalizado ante el nuevo orden mundial. Si los jóvenes de los países más prósperos era capaces de explotar de la forma en que hicieron en Seattle, no era imposible pensar que una explosión más devastadora podía ocurrir en una región con la pobreza y los contrastes de América Latina. Río Fugitivo debía convertirse en la Seattle de Bolivia y del continente. La labor de Kandinsky, junto a unos cuantos activistas, sería a de lograr que el vendaval del descontento saliera a la superficie (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 168).

Um dos principais alvos dos membros da Resistência, além de sites do Governo e da Globalux, é a Câmara Negra. Como dissemos anteriormente, utilizam o ciberescrache para trazer à memória de antigos colaboradores da ditadura suas responsabilidades nos crimes cometidos, mas atuam também apagando o sistema, impedindo o funcionamento do órgão. A jovem Flávia, contratada pela Câmara Negra para descobrir a identidade real de Kandinsky, tenta explicar aos empregados da Câmara Negra a ética hacker:

Los hackers están a favor del libre flujo de la información. Ingresan a los sistemas para abrir lo que nunca debía haberse cerrado, y luego comparten la información con todo el mundo. Un edificio como éste es, por naturaleza, su enemigo. Y alguien como ustedes lo opuesto a los que ellos representan. Les será imposible entenderlos (PAZ SOLDÁN, 2003, p. 203-204).

Assim, podemos dizer que a atuação não apenas de Kandinsky, mas da cultura hacker é uma atuação política, que desloca os usos esperados e determinados da internet, criando possibilidades de luta e de disseminação de conhecimento (ou seja, poder). Os hackers querem liberar e disseminar informação na rede, assim como a máquina de A cidade ausente faz com seus relatos, conectando o passado com o presente, denunciando responsabilidades. Também a máquina, fruto da tecnologia, criação de um engenheiro estrangeiro, exilado nas planícies argentinas, desloca discursos de poder, minando sua aparente força inquebrantável. Fissura sistemas de manutenção da ordem das coisas e de discursos, como o neoliberal, que buscam impedir o questionamento. Passam a existir, a partir de ações políticas de deslocamento como as citadas, possibilidades de traçar linhas de fuga e de luta, novas formas de habitar os espaços sociais.

REFERÊNCIAS

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Data de Recebimento: 21/03/2017
Data de Aprovação: 22/05/2017

1 Montenegro é claramente uma referência a Hugo Banzer, que governou a Bolívia entre 1971 e 1978 através de uma ditadura iniciada por golpe de estado e apoiada pelos EUA e pelo Chile. Em 1997, Banzer volta ao poder, desta vez por eleições diretas.

2 Fazemos aqui distinção entre a pichação, a escrita que busca deixar mensagens no espaço urbano com a finalidade de que sejam lidas e compreendidas (nos escraches, demarca-se, em geral, a proximidade do torturador, ressignificando o espaço público), e a pixação, como a ela se referem os jovens, muitas vezes oriundos das periferias, que demarcam este mesmo espaço com inscrições estilizadas nem sempre decodificáveis àqueles que não fazem parte de seu grupo.

3 Pode-se acompanhar a preparação para um escrache, além do próprio evento e depoimentos de envolvidos, no documentário “Mesa de escrache”, dirigido por Ignacio Lescano y Ronith Gitelman. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=iBQCXRXqPQg (Fevereiro 2014). Uma das organizadoras do evento afirma que “fazer justiça é uma festa”, pois transforma a dor numa potência. Reafirmando o caráter propositivo destas manifestações, outro organizador explica que “nós vamos pela vida e eles [os torturadores] a destroem”.

4 Diana Taylor, em sua análise da performance do grupo HIJOS, afirma que “os manifestantes oferecem um mapa alternativo do espaço sócio-histórico da Argentina” (TAYLOR, 2013, p. 233).

5 Aresolução n° 08 de 21 de dezembro de 2012, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, prevê que os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte” sejam substituídos por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. A mudança do nome, ainda que não mude automaticamente as ações policiais, já é um passo ao assumir que a essas vítimas deve ser concedido pelo menos o direito a uma morte nomeada.

6 A versão de Criolo para a canção de Chico e Gil foi divulgada, como se disse, através do YouTube, não tendo sido registrada em nenhum álbum. A grafia dos termos “biate” e “coqueine” é relevante, então, por apresentar um tensionamento da língua (da variante padrão da língua) praticado pelo discurso do rap. A grafia abrasileirada dos termos ligados à tradição do rap norte-americano pode opor-se a uma determinada leitura do trabalho, mas é principalmente a performance vocabular que desloca os usos previstos da língua. Chama a atenção que a revista Rolling Sone opte por grafar a palavra “coqueine” em inglês (ainda que “biate” esteja grafada em sua versão brasileira — uma forma de amenizar o conhecido insulto de língua inglesa, substituindo-o por uma palavra desconhecida de seus leitores?), e que a entrevistadora Marília Gabriela aponte estes mesmos versos como um entrave à compreensão das letras do rapper. Cabe perguntar, aqui, quem não compreende os versos, e quem não sabe como grafá-los. Por não haver registro escrito autorizado pelo autor, as palavras compõem o repertório de um dizer poético (e popular) não restringível pelo arquivo. Cabe ainda ressaltar que essa discussão é importante em se tratando da obra de Criolo, autor de “Coccix-ência” e “Grajauex”, em que as palavras ganham, a partir de modificações léxicas e gráficas, múltiplos significados.

7 Forma como são chamadas as “assinaturas” dos pixadores.

8 O termo “coreopolícia”, criado por André Lepecki, refere-se à ordenação dos corpos exercida pelo aparato repressor, como se a polícia nos coreografasse em nossa utilização dos espaços urbanos. Cf. LEPECKI, 2012.

9 Produção que integra a trilha sonora do documentário “Cidade cinza”, dirigido por Guilherme Valiengo e Marcelo Mesquita, em que se discute a política oficial de apagamentos de grafites e pixações em São Paulo.

10 É importante destacar que as diferenças que se estabelecem a partir dos vocábulos grafite e pichação/pixação só existem no Brasil. Em espanhol, como em inglês e francês, apenas existe a palavra “graffiti” para nomear essas múltiplas produções culturais. Vale a pena ressaltar que Jean Baudrillard (2005) se ressente da falta de especificidade terminológica em francês ao procurar diferenciar tais manifestações

11 Verso da letra de “Mariô”, de Criolo.