Gilda em Curitiba: o corpo transgressor invade a cidade


resumo resumo

Caroline Marzani
Naira Nascimento



Gilda viva

Curitiba morta

Gilda é um pecado atrás da porta

Gilda mal falada

Gilda bendita

Ainda te mordem

Os dentes da boca maldita

(Trecho do poema “Gilda: um beijo na boca maldita”,

de Antonio Thadeu Wojciechowski, 2007)

Gilda de Abreu (como se denominava), ou ainda, Rubens Aparecido Rinque, nasceu em 7 de setembro de 1950, em Ibiporã, região norte do Paraná. Chegou em Curitiba no ano de 1973, aproximadamente com 22/23 anos, provavelmente encantado com as frequentes propagandas feitas sobre a “cidade-modelo” que estava se desenvolvendo. Sua presença em Curitiba foi atribuída, também, segundo boatos, pelo fato de ter vindo para a cidade junto com uma trupe de artistas do circo, depois de uma desilusão amorosa, caso que nunca foi confirmado (como tantos outros sobre sua vida) (BONI, 2009, p. 105). Pouco tempo ficou na cidade – aproximadamente 10 anos –, mas enquanto permaneceu, Gilda criou história, revolta, amigos, inimigos e ganhou fama não apenas de “a primeira gay curitibana”, mas também daquela que incomodou, transgrediu, expandiu e espalhou beijos e risos no centro da cidade. A opção por se falar dessa personagem justifica-se no intuito de colocá-la em evidência, já que, durante muito tempo, tentou-se apagar sua história da memória da cidade. Optou-se, ainda, por chamá-la por seu nome artístico, visto que a travesti foi conhecida em vida apenas por esse nome.

Em 1984, três anos após o ato violento contra a travesti durante o carnaval, no qual Anfrísio Siqueira, então presidente da Boca Maldita, chuta Gilda na boca, impedindo-a de subir em um dos carros alegóricos, o bloco carnavalesco “Embaixadores da Alegria” criou em sua homenagem um samba-enredo “Gilda sem nome”, fazendo referência ao seu anonimato no título da canção. Nunca dissera seu nome, apenas intitulava-se “Gilda de Abreu” (SIERRA, 2013, p.91). Na primeira estrofe, o samba lembra das brincadeiras que pediam para que Gilda fizesse com certo alguém, em troca de cigarros, cachaça, café ou moedas: “Ai que saudades, que me veio! Das brincadeiras que Gilda aprontava. Cinquenta mangos para beijar certo alguém”.

Afinal, não apenas roubava beijos por sua própria escolha, muitas eram sugestões daqueles que já a conheciam, a fim de aprontarem traquinagens com amigos. E não escolhia pessoa, pois Gilda “beijou doutor... o senador”. Talvez por esse fato foi vítima de agressões e exclusões da praça, especialmente pelo presidente Anfrísio Siqueira, que alegava estar ela invadindo um local “bem frequentado”:

Repudiada por parte da sociedade curitibana, a memória de Gilda (1950-1983) permaneceu e ainda suscitou o aparecimento de diversas manifestações artísticas. Como parte desse repertório, selecionamos quatro trabalhos: o samba-enredo “Gilda sem nome” (1984), “Beijo na boca maldita” (curta-metragem, 2008), “Cabaré Concerto Gilda” e “Gilda convida Maria Bueno” (apresentações artísticas com shows, teatro, vídeo e performance, 2010 e 2015, respectivamente). Busca-se compreender as interferências urbanas de Gilda como influências para esses trabalhos citados – já que a personagem performatizava pelas ruas, travestia-se com apetrechos, roupas e maquiagem e encenava com sua conhecida fala “uma moeda ou um beijo”[1]. Não se pode afirmar a intencionalidade artística de Gilda, já que muitas vezes suas interferências na rua poderiam ser brincadeiras ou uma forma de sobrevivência, apenas.

Usando essas obras como ilustração, pretende-se refletir sobre a expansividade e espontaneidade corporal de Gilda, compreendendo-as como instigadoras de produções artísticas. Entende-se as reverberações que Gilda deixou como relevante forma de se questionar os aprisionamentos corporais e sexuais nos centros urbanos, especialmente em uma cidade conhecida por seu conservadorismo como Curitiba. E em lugar de corpos disciplinados e esquecidos nas multidões dos centros urbanos, são apresentados corpos travestidos, prostituídos, subversivos, que contrastam e provocam revolta e assombro.

Evidencia-se aqui a relevância da ocupação desses espaços públicos, muitos tidos como perigosos e/ou abandonados, como a Boca Maldita, junto à Praça Osório, em Curitiba. Localizada no centro da cidade, o lugar apresenta diversificado comércio, transformando-se ao longo da década de 70 em espaço fechado e ocupado essencialmente por uma confraria masculina para discussão de todo tipo de assunto, reunindo políticos, artistas, profissionais liberais, aposentados e esportistas. Ainda nos dias de hoje concentra um número considerável de homens, que se reúnem para cafés, conversas, leituras e outros. É em meio a esse cenário que Gilda – considerada a primeira travesti curitibana – perambulava mendiga, de barba, saia e batom vermelho.

Alguns espaços da cidade, atualmente, também contemplam cenas e personagens como Gilda, mas aqui a atenção será voltada para a Praça Osório e a Boca Maldita, cenário que à época contrastava a porção mais elitizada do público com as figuras marginalizadas, que ainda hoje despertam olhares assustados e curiosos dos passantes da região.

No samba-enredo Gilda sem nome, alude-se ao ilusionismo provocado por Gilda, na metamorfose criada entre os tipos que festejava com sua estranha indumentária. Inevitável associá-la ao princípio carnavalesco já dissertado por Mikhail Bakhtin quando aborda a inversão ocorrida durante as festas do entrudo.


Gilda sem nome


Ai que saudade, que saudade!

Que me vem!
Das brincadeiras que Gilda aprontava
Cinquenta mangos para beijar certo alguém

Descontraída Gilda ia... e beijava
Beijou doutor... o senador...
Falou de amor! Brincou... brincou...

E pelas ruas da cidade/ Ela pintou e bordou

Gilda, o seu bom humor deixou
Um oceano de saudade

Gilda, o seu carnaval marcou
Por muito tempo a rotina da cidade

Da melindrosa, de princesa oriental
Da avenida faz seu palco natural
E de repente transforma-se o artista

De Carlitos, a vedete ou passista
Ai que saudade...

(MATTAR; CARVALHO; RIBEIRO, 1984)

Curitiba ficou marcada pelo batom vermelho de Gilda, nas ruas cinzas e frias, nas praças e, principalmente nos carnavais. A personagem era conhecida pelas participações que fazia durante os desfiles carnavalescos: “Gilda, o seu carnaval marcou/ Por muito tempo a rotina da cidade”. E a avenida era realmente o seu palco natural, já que, diferentemente daqueles homens que aguardavam o carnaval para se travestirem e se divertirem, Gilda era “melindrosa, princesa oriental” o ano inteiro. Ela era a personificação do carnaval.

Outro registro que também relata a sua relação com o carnaval e outras interferências pela cidade é o documentário de Yanko Del Pino, de 2008, em que o diretor apresenta alguns depoimentos de donos de bares, jornalistas, artistas, carnavalescos e o próprio advogado dela, que lembram da figura extravagante, divertida e que não demonstrava desânimo, mesmo doente, faminta e suja. Um dos fatos relatados no documentário é de uma tentativa de homenagem após seu falecimento em 1983. A própria causa da morte, no documentário, é tida como incerta, já que alguns afirmam ter sido a travesti vítima de violência de um amante; outros afirmam que foi suicídio; uns apontam que sofreu overdose e há quem afirme ter sido briga de rua.

O que consta de seu atestado de óbito é que Gilda sofria de broncopneumonia, cirrose hepática e meningite purulenta, tendo sido encontrada morta em um casarão abandonado na rua Desembargador Motta, no centro da cidade. O fato é que esse corpo transgressor e constrangedor de Gilda permaneceu mesmo após sua morte. No dia seguinte ao seu falecimento, a Boca Maldita amanheceu cheia de flores e bilhetes e, segundo depoimento de Dante José Mendonça, “ela merecia, sim, uma estátua. Até porque, depois que ela morreu, queira ou não, ela se transformou num ícone”[2]. Houve uma tentativa, não de estátua, mas de uma placa de bronze na Boca Maldita, com os dizeres: “Gilda, você deixou saudades. Povo de Curitiba”. E, mais uma vez, Gilda foi boicotada: a placa foi retirada pelo presidente da Boca.

Mas nem os boicotes do presidente da Boca, nem os protestos de revolta de outros frequentadores do espaço foram suficientes para deter as homenagens e invalidar os trabalhos e os registros sobre a personagem Gilda. Um dos mais recentes deles é a manifestação artística que envolveu shows, performances e oficinas artísticas, em fevereiro de 2015, denominado “Gilda convida Maria Bueno”. A peça, realizada pela CiaSenhas, companhia teatral curitibana, é uma segunda versão do trabalho que homenageia a travesti – o primeiro deles, “Cabaré Concerto Gilda”, ocorreu no mesmo local, em 2010.O evento contou com artistas de diversas áreas (música, teatro, performance, artes visuais, vídeo) e aconteceu em uma das ruas mais agitadas da vida noturna da cidade: a rua São Francisco.

O próprio formato da manifestação lembra o que significava ser Gilda: um manifesto, um ato livre nas ruas, um híbrido de homem-mulher, glamour-decadência, riso-miséria, vida-putrefação, multidão-solidão, sinceridade-ironia. Toda a programação aconteceu ao longo da rua, com entrada gratuita, e propôs discussões acerca do que representou (e representam) personagens como Gilda no contexto urbano de uma cidade “fria, cinza e carrancuda” aos olhos daqueles que moram e/ou transitam por esse espaço, e estão fadados a viverem em corpos que não já mais extravasam e transgredem como Gilda. Essa disseminação de versões sobre a travesti atesta a aceitação que ela possuía nos círculos sociais, desde políticos, estudantes, artistas a moradores de rua.



Figura 1 –Foto Cabaré Concerto Gilda.

Figura 2 – Foto ReverberAções: Gilda Convida.

O corpo na cidade

Para a compreensão da presença de figuras como Gilda na cidade e de corpos incomodantes, profanos e contrastantes da urbe em crescimento faz-se necessário apresentar apontamentos sobre o conceito de Modernidade e sua relação com corpo, indivíduo e gênero. N´O Manifesto do Partido Comunista (1999), escrito em 1848, Marx e Engels já apontavam elementos que marcariam o estágio de Modernidade, tais como: o rompimento de limites entre moral e natureza, idade e sexo, dia e noite causados pela mecanização e industrialização; a invasão global da moderna sociedade burguesa; o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção; o constante progresso dos meios de comunicação; a criação de grandes centros urbanos; o aglomerado das populações; a perda do trabalho manual; o crescimento do capital e do trabalho assalariado. Ou seja, todas as construções antes sólidas e lineares agora na Modernidade são “dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que é sólido desmancha no ar” (MARX e ENGELS, 1999, p.70).

Marshall Berman (2007), aludindo desde o título da obra ao pensamento de Marx, aborda as fases do fenômeno conhecido como Modernidade: a incipiente fase moderna do séc. XVI ao XVIII; a segunda, marcada pela onda revolucionária de 1790; a terceira, dominante no séc. XX, época em que o homem, segundo o próprio crítico, se perdeu das próprias raízes modernas. Elegendo a fase intermediária como base do seu estudo, Berman percebe aí, não obstante os olhares mais críticos, uma aposta no futuro que teria se esgotado no século XX, para concluir: “O argumento básico deste livro é, de fato, que os modernismos do passado podem desenvolver-nos o sentido de nossas próprias raízes modernas, raízes que remetem a duzentos anos atrás” (BERMAN, 2007, p. 47 e 48).

Seguindo uma leitura próxima a essa, Antoine Compagnon também teoriza sobre a Modernidade, nesse caso incidindo sobre a sua faceta artística, e verifica desde as últimas décadas do século XIX a presença de cinco passos: a tela de Manet, Almoço na relva ; o cubismo, os ready-mades de Duchamp e a obra de Proust Em busca do tempo perdido ; o Manifesto do Surrealismo (1924); o quarto momento localiza-se entre a guerra fria até 1968, enquanto o quinto e último tem seu ápice nos anos 80.

Assim como em Berman, não se defende propriamente uma oposição demarcando a Modernidade da Pós-Modernidade, mas sim uma distinção que se faz por desdobramentos em relação ao movimento anterior. Se para Berman, o pós-modernismo caracteriza-se como uma das saídas do modernismo nos anos 60, entendida aqui de forma acrítica e pouco consistente, para Compagnon seria um contrassenso considerar o pós-modernismo como contrário ao espírito moderno, uma vez que na base do princípio modernista está a noção do novo, ou seja, da tentativa de romper com a tradição. Como poderia haver então uma novidade que se estabelece contra o novo? Em resumo:

[…] o pós-moderno é antes de tudo uma palavra de ordem polêmica, posicionando-se enganosamente contra a ideologia da modernidade ou contra a modernidade como ideologia, isto é, negando menos a modernidade de Baudelaire, na sua ambiguidade e no seu dilaceramento, do que a das vanguardas históricas do século XX. (COMPAGNON, 1996, p.104).

Com base nesses pressupostos, permitimo-nos, em nossa análise, resgatar do moderno olhar baudelaireano os vislumbres de impulsos muito próximos à “era pós-moderna” e que mesclam a indiferença, o desprezo, a piedade ou até mesmo a solidariedade dos passantes; considerações muito próximas do corpo e da cidade.

Berman (2007) traz Marx para compreender como as relações de poder nos sistemas capitalistas e industrialistas dominantes estavam sacrificando um grupo enorme de pessoas em nome dos avanços técnicos. A visão de Marx nos mostra relações humanas diluídas nos pesados trabalhos das fábricas, na relação do tempo-espaço reduzida e controlada pelas longas jornadas de trabalho. Recordemos aqui a imagem daquele corpo proposto no longa-metragem de Fritz Lang, Metrópolis[3]: frio, robotizado, mecanizado e igualado. Marx (apud BERMAN, 2007, p. 29) mostra que os avanços modernos, ao mesmo tempo em que facilitam o trabalho, escravizam o ser humano.

Ainda sobre os contrastes e desigualdades que o ‘progresso’ aportava às cidades, Baudelaire oferece no seu quadro pintado por palavras “O olho dos pobres”, a disparidade entre os sujeitos que estão dentro de um luxuoso café parisiense com relação aos que estão na rua (ou vivem nela) e, famintos, não têm acesso ao lugar luminoso e mágico. É desses contrastes também que apontamos, ao comparar os corpos que passeiam pela rua, daqueles que vivem na rua. Antes, alguns outros elementos da Pós-Modernidade (ou ainda, da Modernidade tardia) serão apontados, tais como: relação de espaço-lugar e tempo, o corpo nas multidões, a ideia de sujeito e a identidade, erotismo e sexualidade, para então podermos compreender quem Gilda foi e como se relacionou com essas questões. A contradição, o paradoxo, a ironia, inclusive, são fatores inerentes da Modernidade. Marx aponta para a inconsistência das relações, a dificuldade de se dar respostas, e um lugar em que o sagrado é profanado.

Sobre o sagrado, também Nietzsche (apud BERMAN, 2007, p. 31) dirá que os ideais religiosos, a integridade da alma e as verdades são postas em questionamento, trazendo um sentimento de ausência e vazio de valores à humanidade, mas ao mesmo tempo, “em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades” (id., p.32). Importante aqui é ressaltar que o indivíduo em meio a tantas transformações, “ousa individualizar-se” (id.,ibid.). Para Orlandi (2012), essa individualização aparece na relação do sujeito com seu corpo, já que este último revela em sua materialidade os seus processos de significação, o imaginário e o simbólico. O corpo do sujeito mostra o seu discurso por meio dos seus movimentos, do seu agir em meio às pessoas e de sua imagem (vestimenta, cabelo, etc). Gilda, mesmo em meio às multidões, criava uma identidade, um posicionamento único, uma imagem singular no meio da urbe que começa a despontar na cidade.

Além de ousar criar sua identidade, Gilda profanou todos os ideais, não só religiosos, como políticos, ao “invadir” um espaço demarcado socialmente por um grupo hétero, masculino e de classe média. Já aí é possível apontar uma nova percepção do corpo, que não mais se relaciona só com o sagrado, lugar de pecado em que o próprio ato de tocá-lo para lavá-lo seria considerado escândalo. Vemos nascer uma autonomia e preocupação corporal, seja em sua higiene, sexualidade, liberdade ou estudos crescentes sobre a temática.

Benjamin (2000) também nos apresenta o conceito do individual em contraposição ao coletivo como ideais tipicamente burgueses modernos. Essa redefinição burguesa de espaço privado fez com que o indivíduo se voltasse para si mesmo e para a família. Aponta-nos também para os fenômenos de industrialização, urbanização e multidão, tendo esse último item afetado o sujeito, que, ao se individualizar, tenta afirmar sua identidade. Por outro lado, é na multidão que o sujeito se iguala aos outros: é apenas mais um. Nesse sentido, Gilda não se igualava no meio da multidão, era ser único. Embora solitária em sua vivência, em sua pobreza, em sua verdadeira identidade, compartilhava experiências nessa crescente urbe se destacava em meio a população discreta curitibana.

É nessa rede de mudanças que ganha força pensamentos mais racionais, individuais e ligados à ciência, culminando na Revolução Francesa em 1789. E Ora, o que era Gilda senão a materialização dessa transgressão da exibição do corpo e do diluir de barreiras entre feminino e masculino, já que se exibia pelas ruas e nos carnavais com roupas cavadas, floridas, vestidas no corpo visivelmente masculino? O que era senão o oposto desse ser robotizado, formado nos moldes industriais e condicionado a repetições de movimentos corporais, apenas? Porém, em um tecido como o da metrópole, que tende à invisibilidade do sujeito, não é estranho o aparecimento de figuras e tendências que tentem romper com esses corpos robotizados.

E também se faz importante ressaltar que o processo de modernização, como nos apresenta Canclini (2013), ainda não finalizou, ou seja, não há uma ruptura, uma linha que separe Modernidade de Pós-Modernidade. E é na pluralidade urbana que entendemos quais sujeitos fazem parte dela, como se relacionam, assim como compreendemos como a cidade cresce, se movimenta, se modifica através do olhar para esses corpos. Segundo Hissa e Nogueira “o corpo experimenta a cidade. A cidade vive por meio do corpo dos sujeitos. A cidade é cidade-corpo” (2013, p. 56).

Não apenas os espaços e o tempo das cidades são reconfigurados, como também os espaços-tempo do corpo. Esse espaço corporal pós-moderno é reduzido, se pensarmos que as multidões espremem os passantes nos grandes centros urbanos, na agitação e movimentação diárias. Para Diógenes (apud HISSA; NOGUEIRA, 2013), o corpo ocidental da contemporaneidade é invadido por “armaduras”, e, então, torna-se duro, rígido, um corpo que já não “dança” mais, talvez porque entre a multidão não há mais espaço para que ele se mova. Inverso desse corpo é a personagem Gilda, que não é invadida: ela é que invade. Passeia, transita, canta e dança (literalmente) pelas ruas cinzas movimentadas de Curitiba em meados dos anos 70 e 80, e deixa-se ser expansiva nos arredores da Praça Osório, aos olhares tortos dos senhores engravatados.

Além de o espaço ser redefinido, o tempo, que fora já transformado e acelerado na Modernidade, na Pós-Modernidade verá esse processo ser intensificado. Com a chegada da informática e, mais ainda, com o digital, a ideia de velocidade é acelerada, já que o deslocamento entre lugares se dá de maneira mais rápida, instantânea, e não presencial (SANTAELLA, 2004, p. 28). Porém, parece-nos que esse rápido transitar não é o mesmo dos corpos que vivem na rua. Como afirma Milton Santos: “aos pobres, que não experimentam a cidade da pressa, resta a invenção. Os homens lentos desconhecem – ou desconsideram – as regras inscritas no cotidiano urbano e, justamente por isso, para eles, sua memória é inútil” (apud HISSA; NOGUEIRA, 2013, p. 59). Novamente citamos Gilda que, além de tornar a rua o seu lar, desfilava e pedia beijos, pacientemente, sem aquela pressa dos transeuntes atrasados para o trabalho.

Porém, como já visto anteriormente em Canclini (2013), a modernização chega de diferentes formas nos lugares, como é ilustrado em “Olhos dos pobres”, poema em prosa de Baudelaire (1995). Por um lado, ela é o espetáculo dos vidros, brilhos e luzes a iluminar a cidade; por outro, é a escuridão que o aguarda do lado de fora da rua sombria. Para o autor, os países colonizados sempre estão sendo colonizados e o acesso que se tem aos bens é desigual entre cidadãos, políticos, trabalhadores e empresários, artesãos e artistas. (CANCLINI, 2013, p.18).

Harvey (1992) também aponta para as diferentes concepções de espaço para cada grupo, a exemplo de “territórios” para índios americanos e para os colonizadores dos EUA. E, em ambos os casos, tanto Harvey como Canclini concordam que as relações de tempo-espaço acontecem de maneiras diferentes, devido, principalmente, às relações de poder envolvidas e as posições do sujeito, como colonizados ou colonizadores, como burguesia ou proletariado, entre outros.

“Na cidade, misturamo-nos sempre – mesmo quando não há o desejo de mistura...” (HISSA; NOGUEIRA, 2013, p. 58). A estabilidade das cidades se desmancha consideravelmente após o século XIX, e os sujeitos se veem perdidos em meio às grandes massas, nas ruas, nas fábricas, nos campos de batalha. Baudelaire (1995) usa da metáfora “tomar banho de multidão” já no início do poema “As multidões”, que expressa justamente esse mergulhar, misturar-se em meio a estranhos e tornar-se desconhecido nesse meio, também.

Pensemos agora em Gilda que, mesmo misturada em meio à multidão, se destacava, conseguia ser autêntica. Diferente do flâneur de Baudelaire, que só observa a multidão e a cidade, Gilda era a multidão, era a cidade, mas assim mesmo, também era ela própria, única, irreverente, ousada. Não estava apenas como o observador passivo baudelairiano, que não interagia. “Ver a cidade é viver a cidade, experimentá-la em seu terreno, território, mundo.” (HISSA; NOGUEIRA, 2013, p.56). Gilda vivia a cidade, experimentava-a, era corpo presente, vivo. E incomodava.

No já citado “Os olhos dos pobres”, Baudelaire traz a sofrida realidade dessa cidade que cresce e, diretamente proporcional, aumenta seu número de moradores de rua, sua violência e seu desemprego. Para Menezes (2003, p.227), “as mudanças sociais provocadas pelo novo modo de produção fizeram com que as cidades inchassem e aqueles que não encontravam emprego no mercado estavam fadados a viverem nas ruas e praças”. Gilda era uma delas. Baudelaire enxerga nesses personagens – prostitutas, criminosos, jogadores e mendigos – o herói moderno, pois se sentia próximo deles. E assim como as prostitutas, por exemplo, também em seu tempo “prostituiu” seu trabalho, afinal, tudo estava à venda. Inclusive a arte, que perde sua característica sagrada e irreprodutível (BENJAMIN, 2013).

Outro poema de Baudelaire que podemos relacionar com episódios da vida de Gilda é “Espanquem os pobres”. Essa comparação relembra o caso de quando Gilda, ao tentar subir em um dos carros alegóricos do carnaval curitibano de março de 1981 (celebração em que essa participava desfilando à frente do carro alegórico da Banda Polaca), levou um chute na boca do então presidente da Boca Maldita, Anfrísio Siqueira, e foi presa sob a alegação de que tumultuava e que sua figura não era compatível com a organização do evento, nem com o local. Revoltadas com o acontecimento, um grupo de pessoas organizou um protesto e Gilda foi solta depois de alguns dias. A travesti, obviamente, contrastava, mesmo no carnaval, com os rostos sisudos curitibanos da época e com o cinza da cidade.

O corpo de Gilda na cidade

Figura 3- Foto Gilda.

Difícil seria aceitá-la, mesmo em meio a uma festa em que os papéis de homens e mulheres são invertidos na brincadeira dos figurinos carnavalescos. Essa exclusão era reforçada, provavelmente, pelos discursos sanitaristas herdados do final do século XIX e que eram fortemente difundidos no início do século XX no Brasil, especialmente nas grandes capitais, que tinham como objetivo excluir do convívio público aqueles que representassem algum perigo para a sociedade, como o contágio de doenças infecciosas, por exemplo.

Beatriz Sarlo (2005) afirma que o travestismo escandaliza e provoca a curiosidade, mas apenas é aceito (se é que podemos usar essa palavra) em determinadas situações, como um programa humorístico, em que se ridiculariza e satiriza essa figura. Sarlo usa do exemplo de programas de humor argentinos, como o de Gasalla, em que homens aparecem vestidos de mulher e a recepção dessas imagens, pela televisão, são bem aceitas, diferente do que acontece no bairro argentino de Palermo:

Que eu saiba, ninguém estabeleceu uma relação entre este leque de bem-sucedidos travestis cômicos e a alta visibilidade urbana dos travestis. É muito provável que os cidadãos que protestam contra o uso do espaço público pelos travestis sejam os próprios espectadores que se divertem com Gasalla. (SARLO, 2005, p.76)

Para pessoas como Gilda, esse espaço da rua é ainda território a ser conquistado, mesmo sendo sua moradia e lhe pertencendo como aos outros passantes. As multidões da massa recebem positivamente a imagem de travestis, prostitutas, transexuais, moradores de rua e bêbados, enquanto lhes chegam apenas através dos meios de comunicação. Agora, se estiverem na rua, não. São espancados, excluídos e ignorados na sua existência, já que a vida na rua não se faz tão divertida quanto a da tela da televisão.

Falar dos passantes das ruas modernas e pós-modernas é pôr em discussão também a ideia de sujeito tal como sugeriu René Descartes (1983). Essa ideia da subjetividade humana, em que mente e corpo são analisados separadamente, e este último é visto como menos relevante que o intelecto, é refutada, principalmente após as teorias de Marx, Freud, Nietzsche e Heidegger. É com esses autores, também, que se compreende que as subjetividades humanas, assim como o corpo, se criam no discurso, se constroem na história, na linguagem, na cultura e nas relações de poder (SANTAELLA, 2004).

Esses questionamentos nos interessam aqui no sentido de compreender que além do espaço-tempo, a arquitetura, as artes, a literatura e o sujeito não podem ser tomados como universais, heterogêneos e indivisíveis. São diferentes sujeitos que se constroem na urbe, com diferentes subjetividades e que possuem uma história corporal que se relaciona com esse espaço urbano. Não sendo possível, pois, como fez Descartes, separá-la da mente e entendê-la como menos relevante.

Também os limites que procuram definir e apartar diferenças como homem e mulher, natural e artificial, real e virtual são postos em causa. Gilda, em alguns depoimentos do curta-metragem “Gilda: o beijo da boca maldita”, é retratada como aquela que transitava entre os dois sexos: não era só homem, nem só mulher, nem só travesti, nem só gay. Era várias, plural, multifacetada, não sendo nem mesmo sua origem conhecida. Para Butler (2004), o gênero justamente caracteriza-se pela sua essência em mutação, um constante criar que pode vir a subverter ou não os padrões dualistas predominantes, já que o ser humano é re-articulável, não cristalizado e que é formado pela convergência entre o biológico e o cultural. Também Beatriz Preciado, em entrevista concedida a Carrillo (2010), concorda com Butler ao afirmar que a teoria queer desloca as discussões de gênero das noções únicas de diferença sexual e de gênero para uma discussão de natureza transversal, ou seja, uma análise mais aberta e flexível do que aquela proposta por grupos feministas da década de 1960, em que ocorre um “transbordamento da própria identidade homossexual por suas margens: viados, maricas, boiolas, transgêneros, putas, gays e lésbicas deficientes, lésbicas negras e chicanas, e um interminável etc.” (p.5).

Há uma relação de troca entre cidade e corpo. Por meio da história da cidade conseguimos identificar que corpos existem, assim como o inverso: dizemos que a cidade existe através do olhar para os corpos. Já vimos que Baudelaire observava essa cidade que crescia, se agitava, e que mantinha certo apreço pelos excluídos das ruas de Paris, como as prostitutas, por exemplo. Embora Gilda não se encaixe totalmente nessa categoria, pois apenas pedia “cinco cruzeiros ou um beijo”, e caso lhe negassem o dinheiro, tascava o beijo em quem estive por lá. Ou ainda, beijava quando ofereciam moedas para que ela fizesse uma brincadeira com alguém.

Esse corpo, diferente daqueles que circulam apressados, duros e fadados ao cansaço da correria, se mostrava um corpo livre, mesmo tendo olhos de reprovação voltados para si. Gilda viveu em Curitiba entre os anos de 1970 e 1980, e mesmo considerando os movimentos feministas e hippies da década de 60, as discussões da Psicanálise, a filosofia de Foucault, que disseminaram e ampliaram a reflexão sobre o corpo, ainda era (e é) muito malvisto quem saísse da heteronormatividade. E, mais do que gays e prostitutas, os travestis, segundo Sarlo (2005):

Exibem uma modalidade de sexo que perturba mais do que qualquer outra. O que inquieta é a derrocada da norma única, é o enfraquecimento daquilo que era considerado como ‘normalidade’. O que inquieta é a transgressão visível daquilo que consideramos, sem pensar muito, como ‘natural’. (p.74).


O corpo que mora na rua – diferentemente daquele que só a atravessa em determinados períodos, ou ainda do outro que se encontra protegido pelos vidros dos carros – vive em tempo distinto, ocupa esse espaço de modo diferente e se expõe, também, de outra forma. Seu corpo é o único bem que lhe pertence, na maioria das vezes, como cita Pelbart “[...] aos pobres só resta o corpo” (apud HISSA; NOGUEIRA, 2013, p.59). Também o caminhar sem destino, sem pressa, sem rumo opõe-se ao caminhar do carro, sendo o primeiro aquele que enxerga de fato a cidade, não apenas corre os olhos rapidamente pelas vitrines e pelos passantes.


Pelbart ainda nos fala que esse corpo dos “homens lentos” é um corpo de resistência, pois “a resistência emerge por sobrevivência” (apud HISSA; NOGUEIRA, 2013, p.59). Seja sobrevivência às baixas temperaturas (no caso de Curitiba, em que são mais frequentes que as altas), seja no ganho da comida, seja no cuidado dos seus pertencentes para não serem roubados, seja na própria violência entre os moradores da rua. Gilda vivenciou essas situações, tendo sido vítima de violência entre os próprios “companheiros” de rua, ao ser enforcada e golpeada à faca em pelo menos uma vez.

E não é novidade que prostitutas, travestis e transexuais sofram violência, principalmente na vida noturna das cidades. O corpo como mercadoria, ainda mais aquele que destoa de toda heteronormatividade e padrões físicos considerados “naturais” ou “normais” sempre teve lugar para a curiosidade e o fetichismo, mas, ainda assim, não impediu que a violência e exclusão acontecessem. Compreendendo aqui heteronormativo como situações nas quais os indivíduos são padronizados dentro da condição de que sexos opostos (homem e mulher cisgêneros) apenas se relacionam, ou ainda, o termo (cunhado em 1991 por Michael Warner), pode ser “compreendido e problematizado como um padrão de sexualidade que regula o modo como as sociedades ocidentais estão organizadas.” (PETRY; MEYER, 2011, p.196). No caso do travestismo, esses olhares curiosos e/ou assustados são potencializados, visto que esses corpos são hipersexualizados. Enormes próteses de silicone são postas nos seios, glúteos e coxas; enxertos para aumentar o tamanho dos lábios; apliques imensos nos cabelos; cílios maiores que o comum; maquiagem exagerada; roupas curtíssimas; músculos mais definidos. E, além disso, o que mais atrai a atenção: possuem características físicas, biológicas que as classificam nos padrões sociais como pertencentes ao feminino e ao masculino simultaneamente.

Além de toda a desconstrução dos limites que dividem feminino-masculino, esses corpos extravasam, se expõem e subvertem regras sociais. David Harvey (1992) cita Foucault ao referir-se aos corpos obedientes que os padrões sociais exigem em diversas instituições, como as escolas, as prisões, os manicômios, os panópticos. E é na contramão dessa normatização, punição e ordem que esses corpos prostituídos, sexualizados (ou hipersexualizados), travestidos e transexualizados se movimentam. Sobretudo quando a intenção sanitarista nas ruas, nas praças, nas cidades, desde o século XIX, se fazia presente. Pretendia-se criar corpos saudáveis, limpos, jovens, definidos sexualmente (uma travesti ou transexual seria, portanto, impensável) e melhorados cientificamente, de modo a se evitarem doenças, e se criar um “super-homem” (IACHTECHEN, 2009, p. 78). Afinal, “sonha-se, no corpo e na cidade, a ausência do risco.” (HISSA; NOGUEIRA, 2013, p. 62). Para entendermos quem eram os personagens que estavam mais próximos dos discursos sanitaristas, e quais estavam pertos dos grupos que não se enquadravam nesse corpo branco, limpo e saudável, faz-se necessário entender o cenário em que se encontrava Curitiba, mais especificamente, a Boca Maldita, localizada na praça Osório – lugar em que maior tempo passava Gilda.

A Praça General Osório recebeu esta denominação em 1879 para homenagear o soldado Manuel Luiz Osório, participante de batalhas na Guerra do Paraguai. A praça, bastante arborizada, conta com bustos de poetas paranaenses e um chafariz trazido de Paris. Atualmente, também contém uma quadra poliesportiva, vestiários, sanitários públicos, mesas de xadrez e ainda feiras gastronômicas e artesanais em determinadas épocas do ano, sendo um dos pontos turísticos da cidade. Lá também se encontra a “Boca do Brilho”, local com 19 engraxates que trabalham próximos dos cafés e bancas de jornais, geralmente a lustrar os sapatos de senhores aposentados, políticos, advogados, empresários, que por ali ficam conversando, lendo jornal e tomando café, prática realizada desde a época em que Gilda circulava pelos arredores da praça.

O espaço conhecido como “Boca Maldita” surge em área não determinada na praça Osório, em 13 de dezembro de 1956, criado por um grupo prioritariamente masculino de artistas, profissionais liberais, esportistas, políticos e aposentados, com o intuito de se reunirem para discutir variados assuntos publicados nas manchetes de jornais, principalmente. Entre os fundadores encontra-se Anfrísio Siqueira, também presidente da Boca na época de Gilda, e uma das pessoas que mais manteve esforços para afastá-la do local.

De um lado, esse grupo masculino pertencente às classes médias curitibanas, mantinha-se ocupado em passear, olhar o movimento da rua, e, principalmente, manter sua boa imagem intelectual, muito bem vestida e dentro de um grupo de privilegiados que ocupavam a rua com um sentido de posse, expondo a sua classe socioeconômica e o seu poder de interferência nesse espaço. Do outro, as travestis, como Gilda, que, ou dormiam em abrigos, ou encontravam nas marquises os seus leitos. Doentes, sujas, maltrapilhas, malcheirosas, sem rumo, sem documento. São essas últimas as personagens que tanto Baudelaire retratava em seus poemas, além de se assemelharem, de certo modo, com a figura do artista retratada por Baudelaire: alguém que já perdeu sua aura, que vê seu halo cair na lama e que já não é compatível às imagens sagradas, santas; e sim, o homem comum, da vida cotidiana.

Esse ambiente contrastante teve início, principalmente, a partir do momento da institucionalização – embora não limitada por espaços fechados, mas excludente – da Boca Maldita, em que esses senhores trocavam piadas machistas com as travestis da rua. Conhecida por seu jeito escandaloso e intimidador, não deixava por menos se a ofendessem, tendo sido envolvida em algumas brigas. O que mais incomodava nesses senhores, especialmente no presidente da Boca, é que Gilda rompia com todas as regras impostas pelo grupo e não desistia de conquistar aquele espaço:

Gilda, seu corpo, suas práticas, sua vida eram a experiência do desajuste, do intraduzível, do inominável. Tal como chegou, viveu em Curitiba: mendiga, barbuda, afeminada. Macho-fêmea numa só carne e vestida de gala em plena luz do sol, a cidade a aguardava para mais um dia de show. Adorava dançar. E diante das lojas de disco da Rua XV de Novembro não hesitava. (SIERRA, 2013, p.92).

Gilda transgrediu a capital que se modernizava; seu tempo-espaço e sua relação corpo-cidade eram outros: lentos, extravagantes, brilhantes, dançantes, brincantes, híbridos e incomodantes. Estava em desacordo com a cidade conservadora que procurava criar a imagem de cidade-sorriso, já que, desdentada, barbuda e borrada de batom vermelho, escandalizava grupos como os que se concentravam na Boca Maldita. Mesmo tendo sido uma figura rara de seu tempo, essa imagem na urbe não é única, pois está misturada (embora solitária) na grande multidão de outros corpos comuns da metrópole e que, vez em quando, insistem em surgir e transgredir esse espaço urbano.

Considerações finais

Compreender os elementos participantes da Modernidade e Pós-Modernidade na cidade é tarefa complexa, porém fundamental para perceber que corpos transitam por essa cidade, assim como entender que a cidade surge através do olhar para os corpos urbanos. O corpo transgressor aqui foi compreendido, a partir da imagem da travesti curitibana Gilda, como aquele que circula livremente pelos espaços da urbe, determinando seu próprio espaço-tempo. Por vezes mostra-se contraditório àquele que é normalmente encontrado nesses ambientes, e que se relaciona com a sexualidade e com a vivência com outros corpos de maneira diferente. Sua imagem contrasta com a cidade conservadora e fria a modernizar-se e, esse corpo extravagante e brincante, que pedia moedas e oferecia beijos, não se limita aos aprisionamentos corporais e sexuais predominantes. Sendo geralmente o corpo que incomoda, que extravasa, que ultrapassa os limites do outro, muitas vezes por própria sobrevivência, como é o caso de Gilda.

Percebeu-se que esse corpo travestido, bêbado, errante, mendigo, prostituído e sujo esteve à mercê de exclusões e violências num determinado momento em que Curitiba estava crescendo em diversos sentidos e precisava afirmar sua imagem como “cidade-modelo”, principalmente em espaços como a Boca Maldita, lugar destinado para poucos: homens, heterossexuais, bem-sucedidos. Mas que, mesmo em meio a todos os contratempos, não se desfez desse corpo presente, vivo e, principalmente, incômodo. E que reverberou tanto, até o ponto de artistas tentarem resgatar sua memória – criada através de suas interferências – por meio de canções, espetáculos, vídeos e performances. Interferências essas realizadas por Gilda nas ruas, nas praças e nos carnavais da cidade e que, embora sendo apenas maneiras encontradas pela travesti de divertir-se ou de sobreviver, instigou artistas locais e de outras regiões a registrarem sua passagem pela capital.

Gilda chegou e se foi de maneira desconhecida, mas não sem deixar uma centelha de fogo acesa em diversos passantes da cidade, principalmente em artistas, que ainda hoje procuram reviver sua história e evitar que a performática personagem caia no esquecimento.

Referências

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Data de Recebimento: 04/07/2016
Data de Aprovação: 31/10/2016


[1] Gilda pedia moedas, e caso não lhes fossem dadas, arrancava beijos no passante. Em outros casos, pagavam-lhe para que ela pregasse uma peça em alguém.

[2] DEL PINO, Yanko. Beijo na boca maldita. Curitiba: Rodando Filmes, 2008. DVD (16, 14 min.) (Trechos).

[3] LANG, FRITZ. Metrópolis. Alemanha, 1927. Restaurado em 2010 por Murnau Stiftung (145 min.).