Discurso e sujeito: trama de significantes


Aline Fernandes de Azevedo Bocchi[1]

Neste gesto de interpretação-apresentação do livro Discurso e sujeito: trama de significantes, inscrevo algo que é da ordem de uma resistência ou subversão ao gênero em um dizer que é inexoravelmente dizer outro. Nesta fala, coloco-me no entre lugar, espaço intervalar de dizer: é neste lugar de borda, margem, lacuna, que me deixo afetar pelos significantes trazidos por cada um dos onze textos que se tecem nas 246 páginas deste livro. Pensar, como sugerem os organizadores, a “trama significante como elemento irredutível em cada um destes textos” me permitiu desdobrar as reflexões no tracejado desta resenha dando-lhe outros contornos. Foi também neste entre lugar que os organizadores, Lucília Maria Abrahão e Souza e Lauro José Siqueira Baldini se instalaram em seu ato de introdizer, dizer junto com os textos e não antes deles. Dizer com eles para desdobrá-los em três partes - a interpretação, a arte e as intersecções, que, juntas, não ensejam um todo. Não esgotam o tema. Ao contrário: abrem-no ao que é irremediavelmente possível, trabalham na/pela incompletude inequívoca que os convoca, como sujeitos de dizer. Se o leitor se permitir o deslizar de significantes, irá facilmente perceber que cada dobra admite novos desenhos, que cada leitura faz ecoar sentidos em suspenso, abrindo-se em interpretações.


Não por acaso, a primeira parte deste tracejado deixa ver o fato incontornável da interpretação que nos atravessa em equívocos. Em “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, Rita Bícego Vogelaar fala de poesia para falar da interpretação na clínica psicanalítica. Fala (de) equívocos, no descomeço de João, nos nomes esquecidos, na morte impronunciável, na necessidade do sujeito agarrar-se em amígdalas para não perder-se em não sentidos. A interpretação, aqui, é o corte que perturba o sentido instalado e permite o movimento do significante. E, com ele, o movimento do sujeito, em análise e na poesia. Corte que aplica na aridez intumescências, faz sulco, furo. Para pensar esse corte, isto é, essa dimensão de ato da interpretação psicanalítica, Conrado Ramos convoca os significantes lacanianos em “A ética, a lógica e a poética da interpretação psicanalítica”. Texto denso, preciso no trajeto que elabora a partir de recortes do pensamento de Lacan. Para abordar a questão da interpretação, o autor recorre à topologia lacaniana: “o sujeito não está no emissor ou no receptor, mas eclipsado, como efeito de discurso” (p.44). Podemos surpreendê-lo pela função do corte da interpretação, por um efeito de corte. A interpretação é então colocada em relação ao desejo do analista e implica uma topologia homóloga à do objeto localizado nas bordas, nos buracos onde a pulsão recorta o corpo. Situando a margem de liberdade do sujeito no lugar da causa, “posto que por uma rede de contingências se produz sua causação como necessária” (p.46), o autor admite, como Lacan, que “A interpretação não é aberta a todos os sentidos” (p.47). Para além da significação, a interpretação deve levar ao reconhecimento do significante da alienação do sujeito. Decorre daí que o ato do analista seja o de instituir, dar formação, estabelecer, fundar. O texto “Melancolia (ou traços): dizeres nublados” dá o tom de fecho a esta primeira parte dedicada à interpretação em sua relação com o discurso e o sujeito. Nele, os organizadores Lucília Maria Abrahão e Souza e Lauro José Siqueira Baldini ensejam gestos de autoria ao apresentar uma contribuição ímpar às reflexões desenhadas no livro. Abordam, pois, o discurso melancólico não para produzir uma definição hermética acerca dele, mas para mobilizar suas bordas e limites, ou seja, para compreender a melancolia para além de um quadro sintomático, permitindo desenhar o sujeito melancólico como aquele que embora diante do horizonte, vê apenas o beco. Em consequência da premissa lacaniana da falta como condição para o movimento do desejo, os autores percorrem escritos de psicanálise e literatura para dizer a melancolia e o sujeito melancólico, passando também pela arte Edvard Munch.


A segunda parte do livro, dedicada à arte, analisa as bordas entre psicanálise, literatura e voz, no canto e no cinema. Em “Literatura como um duplo da Psicanálise. Um relato sobre O homem de areia”, Maria Claudia Maia Brasil transborda a função ilustrativa da Literatura na sua relação com a Psicanálise ao dizer que as palavras fazem ato, inscrevendo a fala-escritura produzida na análise como aquela que subverte o conceito de verdade, ou seja, na qual a verdade tem estrutura de ficção. Segundo a autora, a relação de Freud com a literatura não se restringe a uma prática de leitura: ele é também autor das histórias que ousou narrar. Nestas histórias, ele teceu uma ligação íntima entre o sofrimento de seus pacientes e dos sintomas de suas doenças. Atento aos “efeito de afeto” (p.94) decorrentes da relação entre produção inconsciente e criação-escritura, “Freud não persegue a ideia de um inconsciente que estaria submerso no texto” (p. 91). Para dar conta da função de duplo da literatura em relação à psicanálise, Maria Claudia recorre ao conto “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann, e à forma como Freud elabora o conceito de “estranho”: no “paradoxo da inquietante estranheza da ficção”, Freud aponta para o fato de que aquilo que é experimentado na vida e aquilo que é experimentado na leitura são dois destinos do recalcado. Mestre do Unheimlich em literatura, Hoffmann aponta para “o afeto de uma angústia que é a angústia específica da própria escritura” (p.94). No conto, o homem de areia, que arranca os olhos das crianças, é considerado por Freud em sua particular repetição do elemento escópico, “gerador fundamental de angústia” (p.95) e de sentimento de estranheza, pela privação dos olhos do homem de areia. Deslocando nossa leitura da função pulsional do olhar para a da voz, o texto “A voz em desatino: dizer a si na palavra cantada”, de Pedro de Souza, toca a mudez cantada da voz ao abordar o ato de cantar como gesto velado de subjetivação feminina a partir da performance cantante de Dalva de Oliveira e Maysa Matarazzo, grandes nomes da música popular brasileira. Atento ao problema da “constituição do sujeito no exercício da palavra cantada” (p.99), para o autor o que a mulher diz quando canta não pode ser dizer apenas falando. No movimento de captura do sujeito falante e de sua identificação com a formação discursiva que determina seu dizer, a voz é considerada, pelo autor, como o “elemento material mais renitente que, na fala, conspira para reduzir o ato de enunciação a ele mesmo” (p.100). Sua potência consiste na possibilidade de driblar o jogo (estabilizado) de efeitos de sentido (p.100). Não se trata, assim, da voz como pura articulação linguística, tampouco de “decifrar ou restituir na voz o que nela e por ela se quer dizer” (p.101). Tendo inspirado seu movimento analítico na proposta arqueológica de Michel Foucault, o autor encontra na voz das cantoras de rádio dos anos 1940 e 1950 uma maneira de fazer ressoar o que aparece à revelia da enunciação do sujeito, na voz de cantoras que “inventaram uma maneira de se afirmar subjetivamente para além do discurso dominante que as submetia” (p.104).  No final desta segunda parte do livro, é o filme “Incêndios” (Incendies), de Dannis Villeneuve, que captura nossa leitura. Ele figura em “Fantasias ou 1+1=1”, texto de Ana Paula Lacorte Gianesi no qual a história vivida pela personagem Nawal Marwan é interpretada como “enredo edípico contemporâneo”. Na narrativa audiovisual, Nawal é afastada do primeiro filho logo após seu nascimento. Mais tarde, esse filho é reencontrado no corpo do carrasco, que a estupra e engravida. Tortura-dor. O filho e o pai são um só, ou 1+1=1. Para Ana Paula, o enredo do filme aponta para o aforisma lacaniano “Não há relação sexual salvo entre gerações vizinhas”. Ou seja, “salvo incestuosa”, como disse Lacan. Na minha leitura do filme, é o testemunho da dor de Nawal que faz cadeia. Ou seja, é como ficção que o testemunho audiovisual materializa a verdade do sujeito: mártir, martys, testemunha. O fato de se tratar da história de uma mulher que resiste à submissões e opressões, para mim, é incontornável e exige uma leitura política. Mas esta já é outra resenha.


E por falar em leitura política, a terceira parte do livro, Discurso e sujeito, as intersecções, começa com um texto de Christian Ingo Dunker tão denso quanto desassossega-dor. Em “Lacan e a Análise de Discurso”, o autor defende a “existência de uma relação de homologia entre psicanálise e análise de discurso, na medida em que ambos são métodos cuja gênese e estrutura são semelhantes, mas cujas finalidade e função são diferentes” (p.144). Segundo Dunker, há uma “intencionalidade transformativa” própria à análise de discurso, ou seja, uma “disposição crítica” que “marca e caracteriza a análise de discurso como uma nova maneira de pensar a interpretação e leitura de textos e demais formações de linguagem” (p.144). Na aproximação que elabora entre o “lugar operado pela clínica psicanalítica” e o “lugar ocupado pela crítica da ideologia na análise de discurso”, o autor especifica que se trata, em relação à última, de considerá-la a partir do movimento teórico e metodológico francês, mas também anglo-saxônico dos anos 70, entendendo-a como prática que não se reduz à descrição discursiva, uma vez que engajada na produção de deslocamentos e transformações. O objetivo de Dunker é mostrar compatibilidades para além da oposição que se construiu entre a clínica e sua visada ética, de um lado, e a análise de discurso e sua prática política de outro. Neste sentido, embora tome a análise de discurso como campo de convergência de teorias linguísticas bastante divergentes, como é o caso da teoria do discurso de Pêcheux, da semiótica de Greimas e da análise estrutural de Lévi-Strauss, passando por Benveniste, Todorov, entre outros, a discussão apresentada contribui para problematizar a pluralidade do campo em questão, mostrando a relação entre psicanálise e teorias da linguagem como uma relação de intersecção. Esta relação de múltiplos atravessamentos também é abordada por Cristiane Dias em “O amor na era do virtual”, texto no qual a autora busca “o sentido do amor virtual como forma de afeto” (p.184), considerando que, conforme Lacan, angústia é afeto. Para tanto, Cristiane faz deslizar a expressão de Orlandi “sítio significante” na formulação “site significante” (p.186), lugar material significante no qual o sujeito se relaciona com o objeto de seu amor. A tela é compreendida como lugar de substituição do olhar do outro e de produção de uma imagem especular do eu que, para a autora, constitui a especificidade do amor virtual e das relações amorosas no ciberespaço como encontros faltosos que colocam em cena o drama da castração do sujeito, na sua relação com o objeto. A “ausência como significante constitutivo do sentido do amor virtual” (p.198) é, para Cristiane, indício de que “falta alguma coisa nesse contato pela internet” (p.197), ou seja, que se trata de uma relação constituída pela falta. No texto de Levi Leonel de Souza, “O desejo do discurso em Foucault”, não é a falta e sim o desejo que é colocado em primeiro plano. Tendo como pano de fundo a magistral aula de Michel Foucault no Collège de France, Levi procede em uma leitura-interpretação na qual é possível detectar sua própria subjetividade fazendo borda na prática de leitura que ele experimenta. Minuciosa, sua leitura coloca o texto de Foucault em relação a diferentes textos do autor, articulando-o a outros filósofos, como é o caso de Giorgio Agamben, e à própria análise de discurso, através do recurso a algumas teorizações de Eni Orlandi. A paixão do/pelo discurso, segundo Levi, desconhece sua relação (do discurso) com o poder e com a verdade, seu encanto disfarça e desconsidera o potencial de violência e as condições de possibilidade histórico-políticas do dizer. Nas interpretações de Levi, ressoam em mim as palavras de Althusser ao dizer que esse “jogo de palavras” não é nunca inocente. É justamente essa dimensão política e significante que atravessa o texto de Marcos Aurélio Barbai, ao colocar em análise as próprias definições textualizadas na composição do verbete Significante presente no “Dicionário Enciclopédico de Psicanálise”. Em seu gesto de leitura do verbete, Marcos Aurélio não contorna as implicações políticas do discurso, indicando seu lugar de analista comprometido com a prática política: “Escolhi esta obra de referência porque ela intervém em um dado campo de saber como um dispositivo de leitura, de desejo de saber...”, diz logo de saída. O texto de Marcos não é alheio ao funcionamento do dicionário, que a partir da produção de formações imaginárias, nutre e estabiliza um campo de saber, sustentando um lugar institucionalmente (e ideologicamente) importante de produção da evidência dos sentidos. Para concluir, o texto que encerra o livro traz uma discussão delicada e necessária acerca da retificação de Michel Pêcheux ao seu texto “Les vérités de La Palice”, escrita em 1978. Em “Um compromisso impossível? A ideologia na retificação de 1978 de Michel Pêcheux”, Edmundo Narraci Gasparini encontra apoio em reflexões de Slavoj Zizek e de Michel Plon para tecer reflexões sobre “uma ambivalência no que se refere à relação estabelecida por Pêcheux com a Psicanálise” (p.240). Segundo ele, “se por um lado a argumentação de Pêcheux na retificação de 1978 marca uma ruptura com a interpelação ideológica assim como forjada por Althusser, no que se refere à luta de classes Pêcheux continua próximo da visada althusseriana” (p.238-239). Embora, na leitura que faço desta polêmica, considere apressado o emprego do termo ruptura, a argumentação de Gasparini dá a ver o terreno complexo e profundamente opaco no qual a Triple Aliança se assenta, indicando o caminho conflituoso e de certa forma marginal, uma vez que se constitui nas fronteiras das disciplinas, no qual a análise de discurso tem ainda tem muito a dizer.


Na impossibilidade de um fechamento que instaure uma conclusão, mesmo que imaginária, para este livro, reitero os tracejados e lacunas que, em cada página, inscrevem gestos de leitura sobre o tema. Discurso e sujeito: trama de significantes é, portanto, leitura fundamental àqueles que desejam enveredar pelos caminhos do discurso e do sujeito, em sua articulação com a psicanálise. Nele, encontramos vestígios de que “o sujeito é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação”[2].


ABRAHÃO E SOUZA, Lucília Maria & BALDINI, Lauro José Siqueira. Discurso e sujeito: trama de significantes. São Carlos: EdUFSCar, 2014.



Data de Recebimento: 01/04/2013
Data de Aprovação: 10/04/2015



 

[1] Pós-doutoranda PNPD no Programa de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e Université Paris 13 (Processo Capes 1362/2014-03). azevedo.aline@gmail.com

[2] [2] HENRY, P.(1992). A ferramenta imperfeita. Campinas, Editora da Unicamp, p.188.