Campos do Jordão: a memória como campo de disputa


resumo resumo

Valéria Regina Zanetti
Maiara Sanches
Robson Oliveira



Introdução

Nossas verdades só nos parecem plausíveis em função de onde estamos situados num dado momento (Terry Eagleton, Apud. RESENDE, 2006, p. 1).


A cidade de Campos do Jordão foi uma estação de tratamento de cura da tuberculose na primeira metade do século XX. O município foi fundado com as expedições e bandeiras na serra da Mantiqueira, no ano de 1720. A partir de 1771, foram concedidas Cartas de Sesmaria na parte direita da Cabeceira do Capivari, terras que mais tarde foram adquiridas pelo Brigadeiro Manoel Rodrigues de Jordão,diretor do Tesouro da Capitania de São Paulo em 1822 (ANDRADE, 1947, p. 03, 04). Pelo hábito de se ligar o nome do proprietário à propriedade, as terras ficaram conhecidas como “os Campos do Jordão” (ANDRADE, 1947, p. 11, 12).

Campos do Jordão foi a primeira concessão de sesmaria na Serra da Mantiqueira e o primeiro núcleo de exploração econômica nesta região, tendo seu reconhecimento em 1874. Nesta época, Campos do Jordão era um pequeno vilarejo, cujo comércio era inexpressivo e o abastecimento do município fazia-se por intermédio das cidades de São Bento do Sapucaí e Pindamonhangaba (PRINCE, 2017, p. 63,64). O povoado adquiriu certa projeção quando alguns empreendimentos passaram a atender o grande afluxo de tuberculosos que, orientados pela terapia do clima, procuravam o município (ANDRADE, 1947, p. 12).

Não só casas particulares foram transformadas em pensões como os serviços de abastecimento assim como a estrada de ferro Rio de Janeiro-São Paulo que passava por Pindamonhangaba, inaugurada em 1876, tinha como intuito facilitar o atendimento e a mobilidade dos doentes que almejava se tratar em Campos do Jordão.

Nos anos de 1891, o então médico Domingos Jaguaribe adquiriu uma vasta porção de terras, inicialmente denominadas de Vila Velha, atual Vila Jaguaribe. Domingues Jaguaribe empenhou-se principalmente em divulgar e notabilizar a ideia da “Estância de Campos do Jordão” (PRINCE, 2017, p. 80) com concessão de cem lotes de terrenos acompanhados das plantas das construções aos que quisessem edificar casas(Idem).


Figura 1: Planta de Campos do Jordão, por Teodoro Sampaio.


Fonte: VIANNA et al., 2014.

Foi em outubro de 1896 que o distrito de Campos do Jordão foi criado, precedido de importantes medidas administrativas, como a instalação da Subdelegacia de Polícia, localizada na vila Jaguaribe (PRINCE, 2017, p. 68). As condições administrativas do município possibilitaram a estruturação de um Centro médico para tratamento e cura da tuberculose, amparado pelos doutores Emilio Ribas e Victor Godinho. Estes planejavam a construção de uma Vila Sanitária na cidade, firmando, para isso, um contrato com a Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí, em 1911 (PRINCE, 2017, p. 69-70).

Neste momento, boa parte da população de Campos do Jordão era composta por pessoas que procuravam a localidade para o tratamento da tuberculose pulmonar, acompanhados por seus parentes e agregados. Os poucos habitantes não tuberculosos eram originários dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, muitos deles empregados nas casas que acolhiam doentes ou no comércio (NOGUEIRA, 2009, p. 34).

Em novembro de 1914, com o intuito de facilitar o transporte de tuberculosos de Pindamonhangaba a Campos do Jordão, foi inaugurada a Estrada de Ferro sob o esforço de médicos sanitaristas. Segundo Paulo Filho (1986, p. 318), a inauguração da ferrovia permitiu a formação de vários núcleos populacionais, facilitou o escoamento e recebimento de materiais pesados e permitiu à cidade ampliar sua rede de pensões. Em 1918 foi instaurada a subprefeitura do Distrito de Campos do Jordão (PRINCE, 2017, p. 73-75) e, em 1926, instalada a prefeitura Sanitária de Campos do Jordão, condição para a implantação da estância climatérica, que fixava as diretrizes para a execução dos serviços de saneamento básico com forte presença e estímulo das Ligas Beneficentes e do Estado (PRINCE, 2017, p. 86, 88), aos quais coube conduzir a política de controle da tuberculose. As primeiras competiam à construção de sanatórios e dispensários e, ao poder público, inicialmente, a profilaxia, pela educação catequizante. Formadas por “elementos de prestígio”, as Ligas tinham estreito elo com o aparelho estatal. O Estado, seguindo o modelo europeu, estimulou a construção dos sanatórios no interior, preservando, assim, o investimento realizado na imigração de mão de obra para a nascente indústria (VIANNA, ELIAS, 2007, 1296).

Na Europa, a rede de sanatórios originou as cidades estâncias, convertidas em símbolos da modernidade ao introduzirem, nos hábitos rurais, a cultura e o modo de vida burguês. Com isso a cidade estância de Campos do Jordão, no interior de São Paulo, exaltada pelo seu potencial climático ligado à cura da tuberculose, passava a ser uma das primeiras estâncias climáticas do Estado de São Paulo, afirmando-se como “a Suíça Brasileira”. Essa nomenclatura envolveu articulações políticas para adequar a cidade nos moldes das cidades balneárias européias (VIANNA, ELIAS, 2007:1296).

De acordo com Vianna e Elias (2007), enquanto São José dos Campos, município paulista, constituía-se como uma estância “para pobres”, a suíça brasileira recebia os doentes mais abastados, pessoas com melhores condições econômicas que, inclusive, utilizavam-se do argumento de estarem repousando nas suas casas de campo para fugirem da estigmatização que a doença causava, ao provocar a segregação e a discriminação do doente e de sua família.

Cada doente, a sua maneira, viveu uma história particular nesse espaço de cura. E cada morador, certamente, deve ter ouvido estórias da estância de Campos, refratadas pela lente das subjetividades que amparam as memórias sociais.

O que é memória?

Este trabalho tem como principal fonte de análise as memórias e os discursos produzidos sobre a cidade de Campos do Jordão. Considerando o caráter psicológico da memória, é comum pensarmos que “lembrar” de algo requer a existência de um acontecimento e de sujeitos portadores de lembranças. A memória é a faculdade de armazenar informações e é dividida, segundo Halbwachs, entre memória individual e memória social, construída coletivamente (LEAL, 2012, p.2).

Para Maurice Halbwachs (2003, p. 31), por mais que tenhamos a percepção de vivenciar eventos ou objetos que somente nós vivenciamos, ainda assim, nossas memórias permanecem coletivas e podem ser evocadas por outros sujeitos, pois, em sua perspectiva, para continuar ou recordar uma lembrança, não são necessárias testemunhas no sentido literal da palavra, ou indivíduos presentes sob uma forma material e sensíveis; basta um testemunho para que o fato se perpetue e se torne memória para um grupo.

Halbwachs nos apresenta uma nova noção de memória. Para este sociólogo, mesmo que particular, a memória remete a um grupo; o indivíduo carrega em si as lembranças, mas também está sempre interagindo na sociedade, já que as nossas lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros sujeitos. A memória individual se enraíza em diferentes contextos e envolve diferentes atores, promovendo uma transposição de memórias que, até então individuais, passaram a ser coletivas (LEAL, 2012, p. 03). Halbwachs (2003, p. 39) argumenta que



não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo.


Nesta perspectiva, Halbwachs nos mostra que há uma relação intrínseca entre a memória coletiva e a memória individual, pois, para ele, não seria possível recordar as lembranças de um grupo com a qual nossas lembranças não se identificam:



Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2003, p. 39).


A memória coletiva engloba a memória do grupo e, cada componente desse grupo, com ele se identifica. O grupo é portador da memória e se consensualiza mediante as diversas relações estabelecidas pelos indivíduos. É nesse contexto que construímos nossas lembranças e memórias.

A memória individual não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu passado, a pessoa precisa recorrer às lembranças das outras e transportar-se a pontos e referências que existem fora de si, determinados por uma sociedade que o envolve. O funcionamento da memória individual não é possível sem os instrumentos das palavras e das ideias que o indivíduo as toma emprestadas de seu próprio ambiente (HALBWACHS, 2003, p. 72).

Outro aspecto importante ressaltado por Maurice Halbwachs, além da memória coletiva, é a memória histórica, em contraponto à memória autobiográfica. As lembranças se agrupam em duas espécies de memórias, as quais o indivíduo participa e adota diferentes atitudes. A memória autobiográfica é ocupada pelas lembranças ligadas à personalidade, à vida pessoal; no entanto, a histórica destina-se à participação do indivíduo como membro do grupo que contribui para manter as lembranças impessoais, aquelas que interessam ao grupo (HALBWACHS, 2003, p. 57).

A memória autobiográfica apoia-se na memória histórica já que, de certa forma, toda a história faz parte da história geral, pois, quando olhamos o passado, é comum relacionarmos as fases de nossa vida aos acontecimentos históricos. Mas é na história vivida, e não na aprendida, que se apoiam as nossas memórias (ALENCAR, 2011, p. 109). Para Halbwachs, por história é preciso entender então não uma sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos outros (HALBWACHS, 2003, p. 64).

A memória coletiva e individual se alimenta e se perpetua em contato com a memória histórica, de tal modo que, com ela, se torna socialmente negociada. As memórias guardam informações relevantes para os sujeitos, assim também como garantem a coesão de um grupo e o sentimento de pertença (KESSEL, 2008, p. 6). Outro aspecto importante acerca da memória



É a sua relação com os lugares. As memórias individual, coletiva e histórica têm nos lugares uma referência importante para a sua construção, ainda que não sejam condição para a sua preservação. As memórias dos grupos se referenciam, também, nos espaços em que habitam e nas relações que constroem com estes espaços. Os lugares são importante referência na memória dos indivíduos, donde se segue que as mudanças empreendidas nesses lugares acarretam mudanças importantes na vida e na memória dos grupos (KESSEL, 2008, p.4).


A relação da memória com o lugar nos permite traçar histórias de vida partilhadas, lembranças individuais que ganham dimensões coletivas e que nos permitem revisitar o passado. Pela memória, o passado não está morto, mas a espera de que o dispositivo do presente o acione, para que possa valer a história de uma boa parcela da população cujo discurso foi sobreposto. Vejamos essa questão tratando a memória que o espaço da estância de Campos do Jordão produziu.


Memória como campo de disputa em Campos do Jordão


Campos do Jordão,

Maravilha da minha terra,

Campos do Jordão,

Joia do Alto da Serra

Campos do Jordão,

Obra suprema do Divino Mestre

Que fez de ti um paraíso terrestre (...)

(HINO DE CAMPOS DO JORDÃO, 1959).

Campos do Jordão é uma cidade essencialmente trágica. Quer queiram ou não, o seu trágico é inevitável (DANTAS, 1948, p. 224).


Em entrevistas realizadas com seis pessoas-moradores e pessoas que buscaram o município como espaço de morada, um discurso foi recorrente: o de Campos do Jordão associado à cidade solidária, que acolhia os doentes da tuberculose que chegavam ao município em busca de tratamento e da desejada cura. Essa questão nos remete ao conceito de intelectuais orgânicos e de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci (1982). De acordo com o autor, as classes sociais produzem e reproduzem, ao longo da história, as condições objetivas e subjetivas de sua existência.

O intelectual orgânico, na visão de Gramsci, tem uma importante função mediadora entre as classes sociais e o Estado, no que se refere aos processos de formação de uma consciência por parte das classes subalternas e na organização de suas lutas e ações políticas visando à construção de uma sociedade regulada pelos interesses e necessidades do trabalho (GRAMSCI, 1982). Os intelectuais orgânicos são, portanto, sujeitos importantes na interação entre a sociedade civil e a sociedade política, sobretudo por promoverem a hegemonia como parte importante do processo de formação da memória por meio da produção de discursos. Os intelectuais orgânicos procuram atender às demandas de classe que representam e, sobretudo, as demandas sociais para conformação do poder de sua classe.

De acordo com Gramsci, no mundo “moderno”, a categoria dos intelectuais expandiu. O autor ressalta que “foram elaboradas, pelo sistema social democrático-burguês, imponentes massas de intelectuais, nem todas justificadas pelas necessidades sociais da produção, ainda que justificadas pelas necessidades políticas do grupo fundamental dominante” (GRAMSCI, 1982, p. 12). Da plêiade de intelectuais orgânicos do município de Campos do Jordão, um deles se destaca: Pedro Paulo Filho. Natural de Pindamonhangaba (1937), Paulo Filho radicou-se no município quando seus pais, libaneses chegados ao Brasil em 1924, procuraram o município de Campos do Jordão para tratamento da tuberculose (PAULO FILHO).

Autor de mais de nove livros sobre Campos do Jordão, advogado de formação, Paulo Filho é considerado o principal estudioso da história da cidade. Desde jovem, o advogado esteve envolvido em política. Como vereador, foi eleito pela legenda do Partido Social Progressista (1959) e pela Aliança Renovadora Nacional (1963 e 1968) (PAULO FILHO).

Pedro Paulo Filho, considerado pelos jordanenses como guardião da história do município, deixou como herança não só seu acervo histórico como também a memória oficial da estância climática. Sua rica produção intelectual, apesar de relevante, está impregnada de envolvimento político e de um olhar particular da história[4]. Sabe-se que os usos políticos da memória direcionam o sentido da memória coletiva, universalizando-a, tornando-a hegemônica, embora as sociedades sejam compostas por grupos heterogêneos. Homogeneizar o discurso, essa é a função do intelectual orgânico, porta-voz do poder, do qual Pedro Paulo Filho é expoente.

De acordo com Gramsci, “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica” (GRAMSCI, 1999, p.399). Certamente, os livros publicados por Paulo Filho e os discursos produzidos a partir deles tiveram uma importante função social na disseminação e multiplicação de falas orgânicas que cumpriram a tarefa imposta pela pedagogia da hegemonia que promoveu a harmonização dos discursos.

Esta constatação foi possível a partir do que se apreendeu de entrevistas realizadas em 2015 e 2016 com moradores da cidade de Campos do Jordão, quando da execução de um projeto de pesquisa com o objetivo de recolher memórias sobre as estâncias climáticas de Campos do Jordão e São José dos Campos, importantes centros de tratamento da tuberculose no início do século XX. A pesquisa consistia em entender as relações de convívio numa sociedade composta maciçamente por tuberculosos. Buscava-se compreender como o poder público administrava os espaços a partir da dicotomia saúde e doença e entender quais eram os possíveis espaços de convivências sociais numa estância de cura? Perguntava-se, até que ponto as rigorosas instruções sanitárias interferiram nas relações de convívio nesses territórios diretamente implicados com a saúde e com a doença?

Os depoimentos enriqueceram sobremaneira o estudo das duas estâncias e possibilitaram os desdobramentos das questões postas inicialmente. Para fins desse estudo, trataremos apenas das entrevistas realizadas com moradores de diferentes segmentos sociais do município de Campos do Jordão. Os depoentes foram contatados por meio das redes de relações sociais dos pesquisadores circunscritas ao espaço da pesquisa; cada depoente indicava outros tantos nomes na lista de eventuais depoentes. Em função do distanciamento do tempo delimitado para a pesquisa, o universo de entrevistados ficou restrito a nove pessoas, muitos com idade acima de 80 anos. Apenas dois deles não deram seus depoimentos. Um deles havia falecido dois dias antes da entrevista e o outro não conseguiu disponibilidade de tempo e nesse estudo utilizamos seis delas, pois existe uma relação mais intrínseca com o tema.

Os depoentes foram enquadrados em duas categorias: os doentes não nascidos em Campos do Jordão, hoje residentes na cidade; e os naturalizados que se lembram daquela época ou viveram aquela realidade “por tabela”, ou seja, “viveram pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer” (POLLAK, 1992, p. 213). Como são raros os ex doentes ainda vivos, a memória por tabela acabou por complementar as informações orais.

No contato inicial com o depoente foram explicados os objetivos e métodos utilizados na pesquisa, bem como os documentos que deveriam ser assinados para autorização, reprodução e uso da imagem[5]. Todos os depoentes, depois das entrevistas, assinaram devidamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Mesmo com a autorização de uso da entrevista, optou-se em manter os entrevistados no anonimato e adotar,como forma de identificação, a letra E (Entrevistado) associada ao sistema de numeração conforme a ordem sequencial de coleta da entrevista. Para exemplificar, o primeiro entrevistado recebeu a nomenclatura E1.

A metodologia utilizada para coleta, organização e análise das entrevistas foi baseada no livro “A Tecnologia Social da Memória” (WORCMAN et ali, 1991), instrumental que ampara os trabalhos do Museu da Pessoa de São Paulo desde 1991, com registro de técnicas de pesquisa oral que vão desde a coleta, organização e análise do material coletado. Na transcrição, etapa demorada e trabalhosa, tentou-se respeitar não só a fala do depoente como também registrar os seus gestos e emoções.

Para a realização das entrevistas foi utilizado um roteiro de perguntas que permitia total liberdade aos depoentes. Com exceção de uma dupla, os outros quatro depoentes concederam entrevistas individuais.

Nas seis entrevistas realizadas com depoentes que viveram a fase sanatorial de Campos do Jordão, seja como doente ou morador, cada qual recordou, a sua maneira, um aspecto particular daquela época; uns lembraram o sofrimento, outros realçaram episódios alegres e cômicos; mas todos fizeram menção à solidariedade dos jordanenses em relação aos doentes da tuberculose. O Entrevistado 3 (E3, 2016) ressalta que “não existia (preconceito) porque Campos do Jordão foi uma cidade que sempre acolheu muito bem os doentes”. O entrevistado quatro reforça tais características:



Os tuberculosos, ou ex tuberculosos, eram muito bem recebidos pelas famílias de Campos. Pra você ter uma ideia, o autor do hino a Campos do Jordão que se chamava João de Sá, ele era tuberculoso. E ele, vamos dizer assim, ele bolou o hino a Campos do Jordão, ele compôs o hino a Campos do Jordão na casa da minha vó, e reunia a família toda pra ensaiar o hino, então a minha família ensaiava o hino junto com ele que era um extuberculoso e daí? Ele era bem recebido! Entendeu? Todos eles eram bem recebidos, num tinha essa, quando a gente fala Altar da Solidariedade, entendeu, era verdade (E4, 2016).


Ao mesmo tempo em que se tenta reafirmar uma memória coletiva, substrato do consenso e da manutenção do equilíbrio social, - aqui reforçada pela ideia do município como baluarte da solidariedade - a memória subterrânea deixava escapar a discriminação para com os doentes que residiam determinadas áreas da cidade, sobretudo os radicados no bairro da Abernéssia (Figura 2), local das pensões dos menos abastados.


Figura 2: Vila Abernéssia, 1919.

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Fonte: VIANNA, et ali, 2014.

O Entrevistado 2 não só reforçou o acolhimento aos tuberculosos, como enfatizou que o passado da cidade como estância não pode ser apagado, sobretudo porque a sua história foi fundamentada na sua condição como espaço de cura:



Eu vou te dizer uma coisa, o Pedro Paulo até escreveu um artigo né, elogiando a tuberculose... Como é: “Agradeço a tuberculose”, que realmente Campos do Jordão têm que agradecer a tuberculose... Porque foi por causa da tuberculose que Campos do Jordão apareceu, né, porque você veja a estrada de ferro foi construída por causa da tuberculose [...] O importante que eu gosto de sempre dizer é o seguinte: Que uma grande parte dessas pessoas que vieram pra Campos do Jordão por causa da tuberculose, em busca da cura, a grande maioria acabou ficando curada e ficaram morando em Campos do Jordão [...] Constituíram família, participaram da vida social da cidade, participaram de cargos importantes e foram, realmente, os grandes alicerces da construção de Campos do Jordão, isso foi muito importante, isso a gente não pode dizer não que foi muito importante (E2, 2016).


O Entrevistado 2 pontua que foi a tuberculose que dinamizou o turismo em Campos do Jordão. Segundo o depoente:



Muitas pessoas vinham pra cá e ficavam em pensões e, com o passar do tempo, ficavam em sanatórios. A família vinha pra cá constantemente visitar os seus parentes que estavam aqui internados e começaram a propagar a beleza da paisagem de Campos do Jordão. O turismo começou ai, porque muita gente ficava encantada com o que as pessoas falavam e resolviam vir pra Campos do Jordão e conhecer Campos do Jordão (...). Pedro Paulo concordou comigo, ele achava também que o turismo tinha começado nessa fase da tuberculose (E2, 2016).


O Entrevistado 4 reforça tanto a solidariedade quanto a ausência de estigmas que pudessem provocar conflitos entre pessoas sãs e tuberculosas:



Então ali (no município de Campos do Jordão) os doentes conviviam com as pessoas sadias, mas numa convivência boa; quer dizer, a gente não sabia de problemas de contágio, problemas de preconceito aqui dentro da cidade, porque, de certa forma, cada habitante de Campos do Jordão tinha um antecedente, um ancestral que teve já na época a moléstia [...]. Como eu falei pra você, meu pai foi tuberculoso. Minha sogra também veio assim (tuberculosa) e aí formou-se uma segunda geração pós-tuberculose que hoje toma conta da cidade, quer dizer, está em todos os níveis de atividade (...). Eu, por exemplo, andava no colo dos tuberculosos, eu era pequenininho, tenho fotografia que eu andava no colo dos tuberculosos, mas sem problema nenhum (E4, 2016).


O mesmo depoente reforça a livre mobilidade do doente nos espaços da cidade:



Eles (os doentes) vinham, saiam dos sanatórios e vinham frequentar a cidade. Iam para os bailes, iam para os acontecimentos sociais, vinham pra Elite (bar), pra trocar ideia, pra conhecer as pessoas, serem conhecidos, pra paquerar as meninas da cidade. Tanto é que o meu pai casou com uma moça daqui, minha mãe. Quer dizer, então isso ai (preconceito) não havia, eu pelo menos não sentia esse preconceito aqui (E4, 2016).


O preconceito existia, segundo os entrevistados, quando saiam da cidade: “O preconceito havia conosco, com as pessoas daqui, quando iam pra fora... Quando eu era estudante, a gente sofria com uma espécie de um bullying, fora de Campos do Jordão” (E4, 2016). Essa fala também foi recorrente no depoimento do Entrevistado 5:



Vou falar uma coisa pra vocês...a gente quando ia pra outra cidade, a gente era discriminada. Quando falava que era de Campos do Jordão, o pessoal já passava álcool na mão. Um dia eu estava lá em Volta Redonda, nos Jogos abertos do Vale do Paraíba, eu era o coordenador da equipe né, (...) cheguei lá e pedi num lugar lá, numa lanchonete: “- Então, me dá esse negócio bacon egg” e não sei que lá... Demorou pra caramba...E estava uma turma ali conversando, (sobre) a decisão do basquete né: quem será que vai ganhar a decisão? Ia ser São José dos Campos ou Volta Redonda?


Falei né:“- eu vou torcer para São José dos Campos”


E eles responderam: “- Ué por que poxa, tem que torcer para nós (torcedores de Volta Redonda)”


E eu disse: “- Não, é porque eu moro lá perto né…”


Perguntaram: “- Cê mora onde?”


Respondi assim: “- Eu moro em Campos do Jordão”


E aí a moça me chamou, dizendo que estava pronto meu prato. Quando eu virei, não tinha mais ninguém perto de mim... (E5, 2016).

No sentido de homogeneizar o discurso a ser reproduzido, Semearo (2006, p. 377) entende que:


Todo grupo social, ao nascer do terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria também, organicamente, um ou mais camadas de intelectuais que conferem homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo econômico, como também no social e político: o empresário capitalista gera junto consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito etc. (SEMEARO, 2006, p. 377).


O autor ainda afirma a importância política dos intelectuais orgânicos e sua influência na cultura de determinada sociedade. Na visão de Semearo (2006), o papel dos intelectuais vai além de suas respectivas profissões, sobretudo por tentarem homogeneizar a ideologia da classe que representam, e isso os vincula profundamente com o modo de produção de seu tempo. Os intelectuais orgânicos elaboram uma concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social (Semearo, 2006, p. 378).

No depoimento do Entrevistado 1, novamente, a alcunha de cidade solidária foi reforçada:


Alguns podem até discordar, mas que eu acho (...) pela amizade, pelo carinho e pela grande produção, o doutor Pedro Paulo Filho falava que Campos do Jordão era o altar da solidariedade. Essas pessoas (jordanenses), em função de ver tanto sofrimento, de ajudar tanto, você imagina, inicialmente, quando as pessoas vinham e ficavam pelas ruas, passando mal e morrendo, as pessoas (jordanenses) recebiam, davam comida, ajudavam (...). Foi formando uma população calejada, e esse pessoal depois começou a levar esse pessoal (os doentes) e formar as pensões, alguns organizaram as próprias famílias, e depois começou a organizar o sistema de atendimento (ENTREVISTADO 1, 2015).


O Entrevistado 6 também faz referência à fama de Campos do Jordão como uma cidade acolhedora e solidária, ressaltando a mobilização dos moradores quando os doentes chegavam, exaustos, na estação. Segundo o entrevistado: “(O doente) Não conhecia ninguém. Não sei nem aonde eu vou aqui! (O depoente assume a fala do doente). E aí (quando o doente) chegava, já (o) encaminhava para uma pensão, para outra, para o lugar né. Então, tinha a solidariedade, embora que um cuidava do outro”... (E6, 2016).

As entrevistas realizadas, separadamente, com os seis entrevistados, mostraram um consenso em torno da imagem construída sobre a cidade no tempo em que esta era estância climática. Nesse aspecto, o discurso hegemônico parece se consolidar, não pela coerção, mas pelo consentimento, pela construção de uma memória extensivamente coletiva.

É interessante observar que, apesar do consenso sobre a imagem da cidade solidária entre os moradores da cidade e ex doentes que acabaram estabelecendo residência no município, uma outra memória também faz parte do mosaico de lembranças da antiga estância de Campos do Jordão. Trata-se da memória de Paulo Dantas, Sergipano, autor do livro “Cidade Enferma”, publicado entre 1947 e 1948 que viajou a Campos do Jordão depois de longa peregrinação por São Paulo para se tratar da tuberculose. O livro de Dantas é uma ficção com fundo autobiográfico de sua estadia em Campos do Jordão. Entre o testemunho e a narrativa autobiográfica, há uma correlação entre o mundo histórico e o mundo subjetivo. É por conta disso que a narrativa autobiográfica pode ser uma fonte histórica importante, sobretudo porque está no meio caminho entre o que aconteceu e a representação do vivido.

Travestido na pele de Leo Além, seu personagem principal, Dantas mostra uma outra Campos do Jordão, bem diferente daquela narrada pelas memórias oficializadas pelos discursos hegemônicos. O discurso de Dantas revela uma memória não cooptada pelos agentes do consenso, evidenciando rupturas na hegemonia discursiva ao revelar o abandono e a falta de perspectivas para aqueles que buscavam a cura no clima de serra. Estabelecendo uma relação entre o clima da cidade e a vida do lugar, Dantas assim se expressa:



O clima de Campos do Jordão é mesmo uma maravilha. Pena que a vida lá em cima seja um absurdo. É um lugar de vida caríssima; só mesmo para rico [...] a humanidade é heterogênea no elétrico que sobe a serra. Há doentes abatidos que viajam calados e esperançosos; camponeses simples e calmos; turistas bem vestidos e enfaturados. O olhar dos camponeses, nascidos e criados nas rampas da serra, é manso e sem cerimônia sobre os passageiros. Mas os passageiros não ligam para o olhar manso e sem cerimônia dos camponeses. Os doentes estão fechados dentro de suas próprias tragédias. E os turistas mergulhados nas suas vaidades exibicionistas e nos seus roteiros de férias (DANTAS, 1948, p. 41, 42).



Em Campos do Jordão observa-se de modo evidente a homogeneidade do discurso entre os entrevistados, no entanto, como afirmamos, é interessante como Dantas (1948) trata do tema em seu livro, desconstruindo, em parte, os discursos uniformes atrelados à cidade. Para Dantas (1948):



Os donos da cidade são assim: não gostam de ser incomodados na visão do seu conforto pessoal. Querem e acham que Campos do Jordão é um paraíso. Paraíso somente para eles que ignoram o drama das pensões, a miséria das favelas, o desespero e o fatalismo da doença andando de mãos dadas com a pobreza, às mil necessidades de um povo abandonado (DANTAS, 1948, p. 122).


Em outras passagens de sua obra, Dantas se refere às pensões miseráveis, de péssimas condições sanitárias. O autobiografado ressalta como aspecto positivo da cidade apenas a qualidade do ar, razão pela qual diz ter suportado a cidade:



Era terrivelmente aborrecido tornar a amanhecer para aquela vida esmagada sob o teto do porão-enfermaria. Ricardo Manso (amigo do protagonista do livro que já estava em Campos do Jordão se tratando da doença) sabia disso, dominado como estava por um profundo desalento.


A manhã baça nascia predisposta à tristeza. A luz do sol tentava romper a neblina que envolvia o fundo do quintal do Sanatório da Legião Brasileira de Assistência. O porão, úmido e apertado, abrigava dez camas, sendo dividido em duas secções com cinco cada uma. A segunda divisão cheirava a pus e borracha do dreno de Ricardo Manso [...] Agora, a vida era aquilo. Drenado, num porão, sem forças atirado sobre um duro leito de indigente, sem nenhum conforto, cheirando a pus, a borracha e suor (DANTAS, 1948, p. 47).


Em outro momento de “Cidade Enferma”, Dantas cita outra pensão, também em condições precárias:


A pensão para onde Léo Além fora era uma das mais precárias da cidade. Ficava no alto de um morro, perto de uma favela que nascia. Era um sórdido casarão de madeira gasta e meio apodrecida [...] internamente, a desolação era maior. O forro estava descascado e sujo. Escuras teias de aranhas se balançavam pedindo uma boa vasculhada [...] os quartinhos, com três camas cada um, não possuíam guarda-roupas, nem espaço para uma locomoção ventilada (DANTAS, 1948, p. 63).


No entanto, o Entrevistado 1 (2016) concebe a cidade de outra maneira:


A nossa estância de Campos do Jordão sempre recebeu muito bem as pessoas, as pessoas que procuravam a estância não só pelo clima maravilhoso, pela natureza exuberante, pelos recursos, pelas águas, também buscavam em função da saúde, e essa oportunidade que essas pessoas tiveram foi que simplesmente muitos vinham aqui para morrer, porque a tuberculose matava nos 20, anos 30, até os anos 40, mas eles vinham aqui, encontravam a cura, através do clima, através das condições e principalmente dos tratamentos que foram oferecidos a partir dos trabalhos de baluartes, de pessoas muito importantes na história de Campos do Jordão (E1, 2016).


Segundo consta, Dantas (1948) foi uma espécie de filho de criação de Monteiro Lobato; este se solidarizou com a causa do jovem literato sergipano, chegando a prefaciar um de seus livros, “As Águas Não Dormem” (Kwak, 2012). Dantas, apreciador do clima de Campos do Jordão, tutelado por Lobato, apostava os poucos recursos que tinha na esperança de cura:



Que pena Leo Além (pseudônimo dado para seu personagem autobiografado) ter de subir para Campos do Jordão, essa estranha cidade de soterrados [...]. Campos do Jordão era uma cidade machucante, com as criaturas que lhe compunham a paisagem humana fazendo intriga, tesourando a vida alheia, fornicando assuntos, enclausurada num bárbaro egoísmo. Só era uma cidade suportável devido ao clima excelente e realmente tonificador [...] a cidade alterava a psicologia das criaturas, transformando-lhes o conteúdo moral, a visão das coisas, o sentido intimo da vida. No seu clima passional havia influencias estranhas e nocivas, ressentimentos e tremendos recalques. Jamais, em lugar algum, conhecera tantos tipos esquisitos e marginais, vira tantos rostos antipáticos e falsos, convivera com tantas criaturas desencontradas. A cidade possuía uma feiura moral, dessas que adquirem uma acentuada resistência para que os sensíveis possam acostumar-se a ela. A doença, aliada a essas características, facilmente alterava o conjunto psíquico dos moradores. Poucos conseguiam se salvar e esses poucos passavam a constituir expressões isoladas, com vida à parte, não se envolvendo nas confusões e na participação urbana de cada dia.


Era assim que Ricardo Manso, ressentidamente, empreendia o julgamento sensitivo da cidade. No princípio, ele pensara que essas impressões nasciam do seu íntimo recalcado, mas, com o tempo, em palestras com outros moços sensíveis e agudos, notara que eles também compartilhavam dessas considerações.


Lugarzinho infame para traumatizar as criaturas... (DANTAS, 1948, p. 51, 52).

De acordo com o Entrevistado 1 (2016), a delimitação da área dos sanatórios no bairro da Abernéssia, que fica na entrada da cidade, foi importante e conveniente:



Os sanatórios foram construídos só aqui na entrada da cidade. Eles ficaram todos localizados aqui na entrada da cidade, isso ai realmente o Emilio Ribas, na verdade queria fazer na Vila Capivari uma vila sanitária, né. Sorte que não construiu a vila sanitária no Capivari. Ai começaram a construir os sanatórios e ficou determinado que os sanatórios seriam todos na entrada da cidade. E você pode ver que todos eles foram construídos da Abernéssia pra frente, pra lá não tem...E Capivari no fim não virou vila sanitária e acabou virando o centro turístico de Campos do Jordão (E1, 2016).

Pedro Paulo Filho é citado como um dos mais importantes contadores de histórias e escritor sobre a cidade, como entende Entrevistado 1 (2016): “Olha, eu costumo dizer o seguinte, que o Pedro Paulo Filho é o maior historiador de Campos do Jordão, como ele vai ser muito difícil existir outro”. De acordo com Sanches e Zanetti (2016, p. 3), a “solidariedade” que a cidade demonstrava para com os doentes tinha área delimitada. Em uma de suas obras, “Conto, canto e encanto com a minha história... Campos do Jordão – onde sempre é estação” Paulo Filho foi enfático ao afirmar que a Vila Capivari deveria ser o espaço das pessoas sãs. Segundo o memorialista (2003):



A Vila Capivari ficou incólume até mesmo quando Campos do Jordão foi estância de cura de doenças pulmonares. Não se admitia a existência de pensões ostensivas, visto que os eventuais que residiam ali, de elevada posição social e financeira, moravam em residências alugadas ou adquiriram próprias residências (PAULO FILHO, 2003, p. 20).


Como afirma Nogueira (2009), a Vila Capivari era realmente o lugar onde havia “pessoas sãs”. Embora a segregação não fosse denunciada nas entrevistas, havia um consenso de que ela existia, veladamente, conformada pelas fronteiras imaginárias que a doença impunha. Nesse sentido, Nogueira observou:



Em geral, luxuosas residências de recreio e descanso, em sua maior parte, propriedades de milionários paulistas e cariocas, tende a se tornar um núcleo exclusivamente destinado a pessoas ‘sãs’ [...], contudo, ainda existem, em Emilio Ribas, algumas pensões de doentes, e aí estão instalados vários consultórios de tisiologia. Os doentes locomovem-se livremente pelas vias públicas de qualquer das três vilas e, embora manifestem certa antipatia e constrangimento ante o esforço dos ‘sãos’ para criar uma área exclusivamente sua, em Emilio Ribas e circunvizinhanças, e para substituir a velha função de estação de cura da cidade pela de centro de turismo e veraneio, alegam (os doentes), que ‘esse turismo não passa de uma ‘camuflage’, com que ‘certos colegas ricos’ procuram manter todo o sigilo possível em torno da sua doença (NOGUEIRA, 2009, p. 72).


Os sanatórios ficavam, em sua grande maioria, na Vila Abernéssia, lugar onde Dantas (1948) se refere com pouco entusiasmo:



Campos do Jordão, lugar pequeno onde todos se conhecem, é uma cidade de tédios ambulantes e de atrações estreitas. Muito se fala da doença e da vida alheia. Estes grupos espalhados pelas esquinas, bancos da estação, porta de bares, pontos comerciais, para Léo Além, se assemelham às comadres na fonte, lavando roupa.


Nota-se neles a ausência de luta por um ideal qualquer, o abandono da vida anterior, a vontade de se organizar num fracasso coletivizado. E por isso Vila Abernéssia é sórdida, tacanha, faz mal e oprime as sensibilidades e as inteligências que buscam um sentido para a vida, uma autoafirmação qualquer, dentro do mundo (DANTAS, 1948, p. 97).

Observa-se nitidamente contradições nos discursos, relacionados não somente à imagem da cidade, mas também aos seus habitantes, insistentemente chamados de “egoístas” por Dantas (1948).

As memórias acerca da fase sanatorial e da tuberculose em Campos do Jordão construíram lembranças divergentes. Uns, fizeram do espaço o seu lugar, edificado pelos laços de pertença; outros, sobretudo os que se retiraram do município, apagaram da memória as reminiscências da estadia da montanha não tão mágica, como se propagava aos quatro cantos.

Interessante como a memória foi se constituindo, tornando-se social e, ao mesmo tempo, hegemônica por aqueles que, das memórias individuais, fizeram delas memórias coletivas. Dantas, por sua vez, não é jordanense e tampouco permaneceu na cidade após obter a cura. O distanciamento do lugar, que remetia o sergipano à sofrida vida de antanho, mostrou configurações narrativas que tencionaram as relações entre o passado vivido e o tempo que se passou. No entanto, a relação de Dantas com a cidade mostrou, já no final da vida, uma certa ambiguidade, revelada em um pedido ainda em vida: “Quando eu morrer enterre meu coração à sombra de um pinheiro em Campos de Jordão”. Obedecendo a seu rogo, suas cinzas, de São Paulo, foram encaminhadas para Campos do Jordão em quatro de agosto de 2007 (CINTRA, 2012). Se uma lembrança volta, é porque ela fora perdida; mas se, apesar disso, ela é reencontrada e reconhecida, é porque sua imagem sobrevivera (RICOE UR, 2007, p. 438). Provavelmente, os últimos momentos de vida de Dantas, tomados pela saúde debilitada, os tivesse conduzido a uma ordenação temporal, capaz de reefetuar um passado percebido como qualidade do presente, como referente ao presente que o fez surgir. Essa é a dinâmica da memória, memória esta movida pela dialética do passado, revivido pelos condicionamentos do presente. É por conta disso que as memórias da estância de Campos do Jordão são tão múltiplas e, ao mesmo tempo, tão homogêneas.

Propôs-se evidenciar as contradições em torno do discurso hegemônico sobre a imagem que se construiu sobre a cidade de Campos do Jordão. Intelectuais orgânicos, imbuídos de um dever social, atribuíram valores às memórias individuais, direcionando os discursos e promovendo o equilíbrio social, embora outras memórias desestabilizem tal ordenamento.

Promovendo conjecturas, pode-se estabelecer analogias entre Campos do Jordão e Irene - uma das 55 Cidades Invisíveis retratadas por Ítalo Calvino[6] - cujo excerto revela uma cidade alienada de si mesma, que elabora uma imagem forjada a fim de convencer os cidadãos e o resto do mundo do seu papel; no entanto, são diferentes os olhares de quem fica na cidade e de quem dela sai:


(...) Irene magnetiza olhares e pensamentos de quem está lá no alto. Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se aproxima dela. A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar (...) (CALVINO, 1990, p.115).


Das muitas cidades visíveis, outras tantas, nas mesmas, guardam segredos e discursos, fruto do emaranhado das existências humanas que a racionalidade geométrica das suas ruas não nos permite decifrar, assim é Irene, assim é Campos do Jordão.


Referências


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ANDRADE, Condelac Chaves de. Almanaque Histórico de Campos do Jordão. Campos do Jordão,1947.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. (Trad. Diogo Mainardi) São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

CINTRA, André. Breves conversas com Paulo Dantas. Portal Vermelho. Julho, 2012. Disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/20135-1. Acesso em 31 de março de 2017.

KWAK, Gabriel. Homenagem ao acadêmico Paulo Dantas.http://academiadeletrasdecamposdojordao.blogspot.com.br/2012/09/homenagem-ao-academico-paulo-dantas.html

DANTAS, Paulo. Cidade Enferma. Junho de 1947 a abril de 1948. Editora Global. São Paulo. 229P.Jordão, September 2012.http://academiadeletrasdecamposdojordao.blogspot.com.br/ Acesso em 31 de março de 2017.

FILHO, Pedro Paulo. Conto, canto e encanto com a minha história. Campos do Jordão, onde sempre é estação. Nova América Editora. São Paulo. 2003.

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GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1982.

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WORCMAN, Karen et ali. A Tecnologia Social da Memória: Para comunidades, movimentos sociais e instituições registrarem suas histórias. São Paulo: Abravídeo e Museu da Pessoa. 2009.

Depoimentos

ENTREVISTADO 1. São José dos campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2015.

ENTREVISTADO 2. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.

ENTREVISTADO 3. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.

ENTREVISTADO 4. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.

ENTREVISTADO 5. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.

ENTREVISTADO 5. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.

ENTREVISTADO 6. São José dos Campos: Laboratório Cidade e Memória/ IP&D/ UNIVAP, 2016.


Data de Recebimento: 19/06/2017
Data de Aprovação: 23/10/2017



[4]Alguns títulos do autor:

PAULO FILHO, Pedro. História de Campos do Jordão. Aparecida: Santuário, 1986. 783 páginas.

___________. Campos do Jordão meu amor. São Paulo: Santuário, 1987. 102 páginas.

___________. Campos do Jordão, o presente passado a limpo.São José dos Campos: Vertente, 1997. 188 páginas.

___________. A Montanha Magnifica.São Paulo: O Recado, 1997. 795 páginas.2 Volumes.

[5]É importante ressaltar que o projeto de pesquisa mencionado foi aprovado pelo Comitê de Ética e que está registrado na Plataforma Brasil do Conselho Nacional de Pesquisa (CONEP) sob o CAAE 56531116.3.0000.5503.

[6]O livro As Cidades Invisíveis, publicado em 1972, Ítalo Calvino cria um diálogo entre o imperador dos tártaros, Kublai Khan, e Marco Polo, viajante veneziano que apresenta, ao imperador,as descrições das cidades que visitou no século XIII.