Eu curto, tu curtes, ele (não me) curte: Notas sobre o funcionamento de arquivos no Face


resumo resumo

Dantielli Assumpção Garcia
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Daiana de Oliveira Faria



A título de introdução: o que resta só nas margens


“As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa [...] A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar.” – José Saramago, Todos os nomes


As palavras e as margens, os dizeres em margem de uma trama, da qual pouco se sabe das bordas que os fios (não) tecem, os ditos em face (e Face) de trans-borda-mentos em uma superfície labiríntica de arquivos que se entrecruzam e se justapõem no fluxo dos acessos, as pedras postas em correnteza de rio que não tem apenas uma margem do lado de lá: estas são formas (metafóricas) de apresentar o modo como vemos a rede eletrônica e a trilha que escolhemos para falar de arquivo digital e o funcionamento da rede social Facebook. Para tal, desenhamos o seguinte trajeto neste escrito: partimos da noção de arquivo e centro de controle das casas de memória para, em seguida (e em oposição), apresentar a reconfiguração da internet colaborativa (web 2.0) e as implicações dela no ordenamento de arquivos digitais. Depois, investimos atenção nas formas de dizer em bordas e nas margens de sujeitos-navegadores[5] na referida rede social, refletindo sobre algumas designações constantes no Face, o mecanismo de dizer ao outro, o dispositivo que lida com a presença e ausência, o lembrar e o esquecer(-se) e os obstáculos à constante curtição.

Ao cumprir esse caminho, algo de solidão fica materializado em nós; uma espécie rara de constatação de que, em meio a tanto alarido dado pela tecnologia das máquinas de dizer na contemporaneidade, uma condição de inominável e impossível parceria com o outro fica expressa como resto de tantos percursos de navegação e de tantas postagens com curtires, comentares e compartilhares. A tela se apaga, o pergaminho digital deixa de correr na velocidade dos acessos, as diferentes ordens de dizer dos amigos (às centenas...) são caladas e, tal como na epígrafe de Saramago, cada um termina a navegação “em sua própria margem” e só a ela “terá de chegar”.



O arquivo fora de rede eletrônica: (quase) tudo sob controle


“Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão” – Jorge Luis Borges, Elogio das sombras


Em outros trabalhos (ROMÃO, 2011a; ROMÃO, GALLI & PATTI, 2010), pudemos estudar a questão do arquivo em sua relação direta com o ordenamento da vida pública, com a lei e com as formas de delimitação de certos modos de controle e comando. Isso dialoga com Derrida (2001, p. 8) nos termos de que um arquivo é sempre uma “operação topográfica de uma técnica de consignação, constituição de uma instância e de um lugar de autoridade (o arconte, o arkheion...)”. Assim, as casas de memória de outrora garantiam não apenas a guarda de documentos considerados importantes para a vida da cidade, mas também o faziam mantendo certa seleção do que deveria ser mantido e do que não mereceria perdurar, do que poderia ser consultado por todos e do que estaria na ordem reservada a alguns. O que se apresenta aqui é que tais instituições inscreviam o arkhê como princípio de começo que delimitava certos arranjos e acordos em função de construções sócio-históricas com uma trama de poderes: da própria instituição, do pertencimento a certo grupo ou não, do tema que tal documento toca, da fonte que ele faz falar, dentre outros.

Assim, arquivo é definido pela sua relação com uma voz institucional que o organiza, guarda e disponibiliza, ou seja, que passa a representar os documentos – a organização e os modos de circulação deles – e que também é representada por eles, pois se trata também de dizer onde estão guardados os documentos de certa pessoa ou movimento artístico, por exemplo. Mais do que isso, trata-se de inscrever uma narrativa tida como durável para eles, marcando como um determinado objeto deve ser contado, como reclama a criação de um trajeto, como precisa de um lugar de dizer sem alterações constantes, mas que entre na esfera durável das guardas e que ali possa ficar assentado para além da fugacidade dos instantes. Inscrever um objeto em arquivo implica assegurar, ainda sob a ilusão, que ele ali ficará postado na fixação e que será encontrado no mesmo lugar em que foi posto. Ou seja, espaço estabilizado e efetivado como tal para salvaguarda da memória coletiva. Discursivamente, temos o efeito de estabilização, origem e controle dos sentidos, na medida em que o funcionamento do arquivo põe em circulação sentidos “que devem ser mantidos como verdadeiros e lidos de um só modo, saturando-os pela repetição e fazendo parecer evidente que eles são únicos” (ROMÃO, 2012, p. 114.). Com isso, temos que controle e origem são condição da língua em fluxo, ou seja, são constitutivos, e podem ser observados no funcionamento do arquivo, que “[...] em análise de discurso é o discurso documental, memória institucionalizada” (ORLANDI, 2002, p. 11), que estabiliza e disponibiliza sentidos para os sujeitos, inscrevendo-os num movimento de interpelação ideológica. Nesse sentido, Nunes (2008) afirma que “as práticas institucionais e de arquivo realizam um trabalho de interpretação que direciona os sentidos, estabelecendo uma temporalidade e produzindo uma memória estabilizada” (NUNES, 2008, p. 82).

Desse modo, há uma injunção ideológica que faz falar, no modo institucional de conceber o arquivo, o desenho de um centro controlador, cujas ramificações estendem-se a partir de um núcleo organizado de modo sistemático, ordenado segundo critérios pré-estabelecidos e afinados com certa gestão. A noção de que aos documentos deve corresponder uma ordem selecionada pelo órgão oficial, de que não podem ser fragmentados, de que precisam ser pensados em relação a sua “destinação” e de que recebem o seu lugar em função dela, prevê o arquivo sob custódia de um órgão ou de alguém. Conforme Pêcheux é um “trabalho anônimo, fastigioso, mas necessário, através do qual os aparelhos do poder de nossas sociedades geram a memória coletiva” (PÊCHEUX, 1997, p. 57).

Anotamos aqui que o arquivo[6] funda-se sempre em relação ao controle de dizeres na esteira de uma relação (explícita) com o poder-dizer, e as implicações disso nunca são neutras nem ingênuas. Há a xícara lascada, o pires com um trincado no meio, um pedaço obscuro da história, a fotografia rasgada: e essas consideradas imperfeições nem sempre são dadas a ver em exposição. Vejamos, por exemplo, um arquivo de/sobre certa personalidade dita reconhecida no meio literário como Clarice Lispector; nem todos os documentos sobre ela podem/devem circular em uma exposição ou em um acervo, há aqueles que a família reserva-se ao direito de negar o acesso[7]. E isso é posto em funcionamento também no avesso da amostragem guardado como silenciamento, como esfera a ser esquecida, como incompletude para todo e qualquer gesto de organizar, reunir, agregar. Há sempre uma rebarba de impossível que resiste e impede a reunião completa de todos os dados de/em arquivo.

E, mais do que isso, há sempre algo que escapa ao controle quando os arquivos passam a ser (des)ordenados na trama digital. A (suposta) fixação de certo documento em dado lugar, o centro de controle a nomear e assinar uma ordem a ser mantida, o comando de uma voz institucional na trama de seleção de documentos, a narrativa sequencialmente estruturada, a autorização do que pode/deve (PÊCHEUX, 1969) ser visto por um centro ordenatório: todos estes traços imaginariamente se dissolvem e passam a jogar com a mobilidade e a errância do dispositivo digital; um fundo de tantas cores em fluxo quantas forem possíveis ao navegador combinar. E que, por esse imaginário vociferado de liberdade, restaura de maneira sagaz e velada o controle de outrora. Pela via do digital, tal controle fica por conta das técnicas e, assim, dissolve-se aquilo que seria um centro controlador, na medida em que o discurso sobre a técnica a faz falar por si, bastando-se a si mesma.


Web 2.0: a voz do navegador em redes de dizer


“Nem que eu bebesse o mar / Encheria o que eu tenho de fundo”. – Djavan


O termo Web 2.0 foi criado em 2004 pela empresa americana O'Reilly e a MediaLive International para nomear a segunda geração da Word Wide Web, cujo traço singular era (e é) a capacidade de colaboração e compartilhamento de dados, informações e arquivos discursivos pelos navegadores do espaço digital. Com a concepção de Web como plataforma, entrava em jogo uma diferente maneira de ordenamento e gestão da própria rede e colocava-se em cena uma estrutura capaz de suportar e direcionar os modos de inscrição dos navegadores. As possibilidades de criação, de classificação colaborativa e de partilha de conteúdos, arquivos e dizeres desse modo – considerado mais livre em relação à web 1.0 – assegurava a máxima de que os acessos e os ordenamentos advindos da própria rede seriam úteis e fecundos para “ensinar” a própria rede a funcionar melhor; para ela reconfigurar-se, ser incrementada e funcionar de maneira mais livre, quiçá eficaz. Com esse funcionamento, a partir da literatura (MARCHI, 2010; GODOY, et all, 2011; PARISER, 2012), vemos que tais recursos funcionam cada vez melhor quanto maior for o uso da Internet, ou seja, quanto mais um sujeito-navegador clicar em links, entrar em sites, compartilhar conteúdos, etc, mais a rede “aprenderá” sobre esse sujeito e “melhor” e mais eficaz será seu funcionamento.



De consumidores de conteúdos e informação, os utilizadores das redes passaram também a ser produtores de informação, criando conteúdos que partilham e que passam a fazer parte do corpus de informação e de conhecimento disponíveis na Web, tomando para si o controle de muitos processos e espaços tradicionalmente dominados por corporações e instituições (BALCKY, 2011, p. 28).


Por ser o ponto de partid(lh)a de conteúdos dos mais diversos, ocupando uma posição-sujeito imaginária de origem e controle, os sujeitos-navegadores traçam seus caminhos pelos labirintos da rede sem titubear de tamanha liberdade e acesso, quando assinalamos que, de fato, os caminhos para esses sujeitos são previamente traçados pelas técnicas na medida em que elas, a cada clique, aprende mais sobre o sujeito e prevê o que ele deseja. Tal capacidade de aprendizagem e aperfeiçoamento da rede a partir de seu próprio uso funciona a partir de recursos de personalização de conteúdos, os denominados filtros-bolha (PARISER, 2012; FARIA; ROMÃO, 2016).

Segundo os idealizadores da web como plataforma (MOREIRA, 2009), os novos traços da Internet diziam respeito ao controle que o navegador faz sobre seus próprios dados, inventando novos sistemas e sites, impulsionando uma arquitetura de participação que destituísse e não dependesse de um centro de controle na rede, e aqui ressaltamos: o efeito de controle é dissolvido dado o aperfeiçoamento das técnicas que coloca o sujeito nessa posição enquanto o interpela e o direciona.



A Web 2.0 tem repercussões sociais importantes, que potencializam processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e circulação de informações, de construção social de conhecimento apoiada pela informática (PRIMO, 2007, p. 21).


É isso que nos interessa neste artigo: marcar como esse dispositivo tecnológico produziu (e faz falar no fluxo dos acessos) efeitos de dizer na rede digital, implicando os sujeitos-navegadores a criarem espaços de arquivamento e formas de ordenamento pouco convencionais fora do âmbito de um centro de controle institucional dado a ver. Nesses termos, a aplicação e as formas de uso da net no âmbito desse dispositivo permitem a emergência de outra cartografia, em constante alimentação, que se constrói a partir de narrativas entremeadas no/pelo trânsito e que é sempre tecida pelo mar de conexões no gerúndio de dizer.


Nessa rede, nenhum lugar existe por si mesmo, já que as posições são definidas por fluxos. Consequentemente, a rede de comunicação é a configuração espacial fundamental: os lugares não desaparecem, mas sua lógica e seu significado são absorvidos pela rede (CASTELLS, 1999, p. 442).


Nesse sentido, a rede eletrônica passa a “aprender”[8] com os modos de inscrição e ordenamento de arquivos que os sujeitos postam, acomodam, colocam e retiram do on-line, o que coloca em questão um sistema inteiro que se embebeda com a relação de cada nó, que cresce a partir do funcionamento de cada ponto de dizer da rede. Ou seja, ganha extensão o todo do Arquivo[9] (ROMÃO, 2011b; 2012), nunca acessável, a partir da emergência de cada arquivinho ordenado em teia, em trama, em urdidura de fios de dizer. E o efeito de alcance disso é imprevisível. Só a título de passagem, vale anotar como um determinado arquivo postado em um endereço da rede enreda-se em outro link aparentemente tão perto-distante, de modo inexplicável. Castells (1999, p. 566) anota que cada nó dessa rede é “ponto no qual uma curva se entrecorta”; no que nós acrescentaríamos que cada nó é o imbricamento de um arquivo que atravessa outros arquivos sem que se possa precisar o previsível das conexões, ou melhor, colocando em movimento algo de impossível cálculo.

Esse atravessamento instala uma dimensão tal que, tanto um quanto outro, não se sustentam mais sozinhos, mas mantêm-se apoiados reciprocamente, escorando-se em palavras alheias, alimentando-se um ao outro, e se auto alimentando, para continuar a manter os arquivos em funcionamento – e por que não dizer o discurso? – e as conexões em permanência. Uma permanência que é o tempo de dizer no gerúndio, de navegação e de fluxo, mas, ao mesmo tempo, concomitantemente, é também tempo de esquecimento.



Assim, essa permanente atualização da memória é parte do jogo da escrita nas redes sociais. Isso também evidencia o medo do esquecimento: tudo é constantemente atualizado, arquivado ou colecionado para ser exposto. Cada usuário cria o seu perfil, escolhe, adere ou cria as suas próprias comunidades, tece um nó colocando mais fios no sistema (RENDEIRO, 2011, p. 260).


O fato de o sujeito-navegador ter a possibilidade de construir e alimentar permanentemente o seu arquivo, em superfície on-line, com capacidade desmedida de armazenamento, com (seu) modo de ordenamento e com (suposta) segurança de guarda, cria o efeito de que é possível despejar ali o que não será esquecido nem perdido jamais. Tampouco é ou será atormentado pela falta, o que escamoteia o furo dado, no limite, pela queda de energia ou pelo corte no sinal de internet feito pela empresa de gestão do sinal no país. Talvez essa seja uma das ilusões de completude mais efetivas no imaginário contemporâneo: a tecnologia é infalível e não deixa os viventes em falta, pois sustenta a possibilidade de falar no des-limite, no sem-fronteira e no tempo de uma palavra que não precisaria de pausa e, sobretudo, palavra que estaria blindada de qualquer perda. Tal efeito traz a tona a contradição entre a perda, a fal(t/h)a e a eficácia: tamanha potência e eficácia das técnicas veem a tamponar o que muito fal(t/h)a, que é da ordem dos sujeitos e/do discurso, ou seja, muita eficácia traz no seu avesso muitas fal(t/h)as.

O espaço de guarda, antes circunstanciado a uma determinada agência ou casa de memória, assegurado por uma ordem institucional e ordenado pela gestão de um centro controlador do arquivo, previa um tempo de permanências. Antecipava continuidades para um tempo futuro visto que era motivado pela certeza de que aquele conjunto de documentos se tornaria um registro histórico a ser recuperado depois; certo é que essa estrutura poderia contar com o sumiço, destruição ou sabotagem de dados definidos como inconvenientes. Desse modo, havia sempre presente a possibilidade de apagamento de partes do arquivo, de destruição de obras consideradas indesejáveis, de fim do acervo corroído pelo tempo ou pela ação humana; mas essa era uma condição imaginariamente desenhada como remota.

Em relação ao digital, é como se tais barreiras à permanência não existissem mais: os espaços de sumiço teriam desaparecido juntamente com a potência da tecnologia e com a “liberdade” dada pelo dispositivo da web 2.0 para que o arquivamento fosse pleno, e supostamente seguro, e se mantivesse perdurando no tempo ad infinitum. Ou seja, é como se o éden de dizer ao outro (e a si mesmo) na fruição sem-corte estivesse presentificado na rede digital e, assim, é como se todo o dizer disposto na rede fosse chancelado pela ordem da completude e eternidade. Tudo estaria imaginariamente guardado com segurança para que o sujeito-navegador pudesse recuperá-lo depois, tudo preservado da corrosão da perda e do esquecer, tudo dito e seguramente conservado a qualquer hora e em qualquer local. Considerando que toda certeza tem em si uma cortina de opacidade, interessa-nos agora jogar um pouco de areia nessa engrenagem, justamente para desconstruir essa ilusão de guarda segura que a rede inspira. O desaparecimento de sites e blogs inteiros do ar indicia a possibilidade do furo na rede (ROMÃO, 2011b), uma instância de comando à qual o navegador não tem acesso, e que se estrutura no âmbito da gestão da própria rede pelas empresas de comunicação, provedores de net e grandes corporações de mídia e tecnologia. A seguir, podemos seguir as pegadas desse apagamento que ficam materializadas em páginas pessoais do próprio Facebook, que não podem ser acessadas, visto que escaparam ao suposto “controle” de seus donos. Vejamos.


Figura 1 – Conta temporariamente indisponível

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


Figura 2 – Tente novamente mais tarde

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


Perguntas bem simples podem ser feitas diante das formulações acima: quem autorizou a sua própria conta a ficar indisponível? Teria o sujeito-navegador terceirizado a alguém a gestão de um arquivo tão seu? Como analisar discursivamente a explicação “ocorreu um erro”? Chama a atenção aqui as orações sem sujeito como a fazer falar o modo como a tecnologia basta-se a si mesma, encerra-se em si e tem na sua própria força a raiz de sua fragilidade. Fica completamente apagada, em tais dizeres, a existência de um centro de gestão da rede social onde, pelo efeito de evidência, seria permitido permanecer pelo tempo desejado. Fica silenciado o esquecimento nos termos do que está exposto em duas citações belíssimas que trazemos para o debate.



O esquecimento: não presença, não ausência. Acolher o esquecimento como o acordo com aquilo que se oculta. O esquecimento, em cada acontecimento que se esquece, é o acontecimento do esquecimento.


[...] A fala carrega consigo o caráter fortuito que liga no jogo o pensamento ao acaso [...] Sobretudo ela é perecível. Tão logo dita, apaga-se, perde-se sem recurso. Esquece-se. O esquecimento fala na intimidade dessa fala, não apenas o esquecimento parcial e limitado, mas o esquecimento profundo sobre o qual se ergue toda memória. Quem fala já foi esquecido. [...] O esquecimento é o senhor do jogo (BLANCHOT, 2007, p. 199).


O esquecimento nesses termos é o que faz o jogo de dizer continuar em funcionamento; “senhor do jogo”, ele está para o dizer como pedra fundamental do mesmo modo que rede eletrônica está para os dispositivos eletrônicos. E cabe aqui justamente essa proporção, o esquecimento irrompe sempre muito maior que toda e qualquer palavra. Trata-se de uma condição necessária para que ela se edifique, se vingue de ter sido dita, se desmanche em desdobramentos após o pronunciamento e se arquive pelo que não pode dizer; que ela se perca no redemoinho de ter sido algo para alguém em certo momento. Nem é presença do dito, nem seu sumiço, apenas esquecimento. Nesse sentido, esquecer inscreve o não-ter-podido-dizer de outro modo, faz falar o dito esfacelando-se no gastar de seu uso, instala um apagamento necessário para dizer outra coisa e bordeia um resto de dizer que pode ou não perdurar para os sujeitos.

Inscreve também, em consonância com Orlandi (1997), uma política do silêncio (censura) filigranada de outro modo, tecida de outra forma, qual seja, supostamente entre máquinas. Isso porque “ocorreu um erro” não dá a ver um poder político de Estado a controlar os sentidos com fins de repressão ou de interdição; tampouco estão em jogo efeitos de violência que possam atravessar certas palavras para que elas precisem restar em silêncio. O controle aqui dá pistas de um funcionamento ideológico que supõe apagar justamente o político, a inscrição política do dizer, marcando a falha como da tecnologia como uma instância na qual não caberiam interesses outros que não o funcionamento eficaz das máquinas.

Na rede eletrônica, são tantos e tão inúmeros ditos em uma hipnose de palavras, postagens e atualizações em curso e no fluxo da pressa, que o esquecimento – tão necessário para que o sujeito possa desejar outras palavras – fica cheio de sua presença transbordante. Na tagarelice da atualidade, ele se posta como grande senhor. Então, a saída é criar um lugar imaginário e aparentemente seguro (e todo) para o depósito do que não será esquecido jamais, os arquivos parecem cumprir essa função. Salvar em algum lugar da internet ou no computador, deixar os arquivos aos cuidados de dispositivos tecnológicos, entregar a esse outro espaço o poderio de conservar o que o sujeito não consegue reter ou administrar por si mesmo: eis o modo contemporâneo de constituir guarda e atribuir autoridade a essa nova casa de memória tão poderosa, a Internet. O Facebook parece funcionar como um repositório de dados, de guarda provisória de imagens, vídeos e textos (isso porque muitos dados são colados de outros lugares da rede e sendo apagados em seus locais de origem não podem mais ser recuperados ou abertos no Face), constituindo-se como um arquivo tido como poderoso e assegurando um espaço reservado a cada sujeito-navegador na esfera pública. Lugar de dizer e supostamente de não esquecer, de beber o mar ainda que sabendo que não se encherá jamais o que o sujeito tem de fu(nd)ro.


Face: a corrida dos arquivos no pergaminho digital


Para o desejo do meu coração/ o mar é uma gota” – Adélia Prado


“Mark Zuckerberg nunca foi de se curvar diante de figuras de autoridade. O Facebook começou com sua revolta pessoal contra a falta de disposição de Harvard de criar um ‘álbum de fotografias’ on-line com os retratos de todos os alunos”, nesses termos Kirkpatrick (2011, p. 23) marca o início do que seria a rede social hoje mais famosa no mundo. Diante de uma impossibilidade de compartilhamento de imagens, dois alunos da referida universidade iniciaram o desenho de um programa que pudesse reunir todos os alunos, partilhando imagens e, posteriormente, calendários e mensagens de festas e eventos.

Em pouco tempo, estudantes de outras instituições demandavam entrar nessa rede de relacionamento com tanta insistência que, meses depois de estar em funcionamento, na primavera de 2004, “as coisas do Thefacebook ficaram mais movimentadas. No final de maio, o site já operava em 34 faculdades e tinha quase 100 mil usuários.” (op. cit., p. 51). O livro, que narra a saga da criação desse dispositivo, marca a forte participação do ambiente universitário no crescimento dessa rede, indicando como os jovens estavam mais expostos à circulação de dados na comunidade que foi se abrindo com velocidade estonteante e se tornando um negócio altamente lucrativo. Estava-se diante da primeira “plataforma para pessoas” (designação do livro citado) com grande visibilidade e larga divulgação, o que dialoga com o que anotamos anteriormente sobre a web 2.0, ou seja, plataforma a ser gerenciada pelos sujeitos-navegadores e a ser retroalimentada pelos acessos que garantiam a permanência ou não de dados; garantia-se assim que o uso da própria plataforma poderia ajudar os seus criadores a torná-la melhor.

Para atrair sujeitos-navegadores, é interessante anotar a convergência de recursos que o “efeito Facebook” colocou em circulação. Se no início apenas fotografias eram partilhadas, em pouco tempo foi possível disponibilizar notícias, textos, vídeos, listas e músicas, dentre tantas outras modalidades de conteúdo; ou seja, uma série de recursos entrecruzados passou a se alinhar lado a lado. Isso sem falar dos jogos, dos espaços publicitários e do chat que ali foram sendo aprimorados e colocados em funcionamento. Não iremos explorar mais a narrativa de criação/história do Facebook, mas interessa-nos refletir sobre algumas designações que o dispositivo naturaliza como evidentes (nome próprio, Facebook, amigos, curtir) e sobre o efeito desse grande arquivo planetário a partir de nomes de pessoas (potência, certeza de guarda e não esquecimento).

Um dos pontos inovadores dessa rede social parece ser o modo como os nomes próprios[10] passam a ser inscritos, a criar uma ficha técnica pessoal (com dados oferecidos pelos próprios sujeitos-navegadores) e a tramar uma rede de atribuições e uma narrativa capaz de fundar uma comunidade de “amigos”. Essa designação chama a atenção, sobretudo, porque nem todas as pessoas que integram um Face realmente mantém relação de intimidade e afinação com o dono da página; só a título de passagem, é muito difícil ter 1750 amigos na vida cotidiana, mas isso é perfeitamente possível na rede digital, o que produz um efeito de deslizamento nos sentidos cristalizados sobre ser amigo, ter amizade por alguém, tornando-os voláteis e fluídos ao sabor da própria net. Mas voltando ao que nos interessa, é justamente em torno de um nome de pessoa e de uma face que tudo começa. O escrito pessoal (as postagens no dia-a-dia), o caderno de um rosto (fotografias e vídeos), o banco de dados pessoais (status, referências, locais, datas, mapa) enredam um arquivo discursivo como campo de documentos reunidos, disponíveis e autorizados a circular sobre o dono de um Face; e, em torno desse arquivo, dizeres dispersos de outros facebookianos e outros nomes de pessoas irão se conjugar, compor, lançar-se em rede.

Essa composição coloca em discurso algo de um ideário muito poderoso de reunir todos os internautas em um único solo digital, algo que, guardadas as devidas proporções, já foi provado pelo objetivo norteador da Biblioteca de Alexandria em reunir todos os manuscritos e impressos do mundo em um único lugar. Estar no dispositivo Facebook recupera algo dessa ordem: conectar-se a uma rede social que reúne todos os integrantes de todo o mundo. Está-se aqui diante da ilusão de completude que a arena digital poderia instalar, está-se conectado a um número cada vez mais frequente de outros e com a possibilidade de poder dizer tudo a eles – de qualquer lugar do planeta –, inscrevendo muitas (ou todas) as palavras de si.



O Facebook incorpora características incrivelmente eficientes de conectividade universal. Vá até a caixa de pesquisa e digite o nome de alguém que você conhece. Há uma grande chance de que seja direcionado para uma página com o nome e a foto daquela pessoa. O Facebook pretende montar um diretório de toda a humanidade, ou ao menos das pessoas que estão conectadas à internet. Isso cria um caminho direto entre quaisquer dois indivíduos (KIRKPATRICK, 2011, p. 354).


Tal objetivo tem se consolidado a partir dos movimentos de navegação dos próprios facebookianos, especialmente se observarmos, por exemplo, o modo como o sistema implementou a ferramenta de tradução; ela


adotou uma nova abordagem que se aproveitou do entusiasmo radical de usuários ao redor do mundo. Em vez de pedir a seus próprios empregados ou contratados para gastar preciosos anos traduzindo as 300 mil palavras e frases ditas no site em muitas outras línguas, o Facebook passou a tarefa para a multidão e encontrou uma enorme quantidade de saberes (KIRKPATRICK, 2011, p. 296).


É interessante observar como isso inscreve o traço colaborativo e aberto da web 2.0, pois para criar uma versão de um determinado idioma o software ‘aprende’ possibilidades de melhoria, acerto, incremento com os navegadores, ele tenta se adequar às necessidades de navegação dos sujeitos-navegadores utilizando-se da inteligência coletiva (LÉVY, 1999).



O software do Facebook apresenta aos usuários uma lista de palavras a serem traduzidas. Qualquer pessoa, enquanto utiliza o site, pode traduzir quantas palavras quiser para o espanhol, o alemão, o suaíli (língua oficial do Quênia, da Tanzânia e de Uganda) ou o tagalo (língua falada nas Filipinas). Cada palavra é traduzida por muitos usuários. Então, o software pede aos falantes dessa língua que votem na melhor palavra ou frase para preencher cada espaço (KIRKPATRICK, 2011, p. 296).


A estratégia de Zuckerberg parece simples: “criar o melhor e o mais simples produto que permita às pessoas compartilhar informações com a maior facilidade possível”. Essa aposta coloca em funcionamento uma plataforma que só se sustenta em função dos navegadores e de seus acessos, que reclama a todo instante resposta e preenchimento de campos disponibilizados tais como “curtir, comentar e compartilhar”, o que coloca em funcionamento a presença/ausência do sujeito-navegador, o dizer e o esquecer de seus movimentos de entrar, acessar, ver-se em comentários e ser visto por tantos outros navegadores. Há, além disso, uma convocação constante ao sujeito-navegador, cutucado a dizer “No que você está pensando?”, dentre outros convites feitos o tempo todo e em destaque. É justamente esse gerúndio do pensar/dizer/publicar/compartilhar que conclama navegadores a não se calar, a inscrever outra (nova) postagem, a continuar a alimentar o imenso pergaminho digital que se desenrola em fluxo (des)contínuo. Nesses termos, o outro faz-se (mais do que) necessário, condição para que o circuito de dizer continue em rede. Um posta e, do outro, recebe os retornos de sua postagem, mantendo o contínuo retorno de/sobre seus ditos que poderão ser levados adiante, compartilhados, repassados a outras redes de amigos em um turbilhão cujo tamanho exato não se sabe[11]. O movimento de marés alheias impulsionadas pelo vento de tantos outros é o que lança, devolve e faz mover a garrafa lançada por um com certa mensagem dentro.

Vale aqui registrar que esse mar de possibilidades criadas pelo “diagrama social, no sentido matemático de uma série de nós e conexões. Os nós são as pessoas, e as conexões são as amizades” (KIRKPATRICK, 2011, p. 235) têm seus limites. Há uma instância de monitoramento e controle do dispositivo tecnológico que pode colocar fim à curtição do/no Face, e aqui toco a questão da gestão e co-mando de arquivos no Arquivo (ROMÃO, 2011b). São frequentes casos de facebookianos terem suas páginas suspensas por motivos diversos: curtiram demais ou de menos, adicionaram muita gente em pouco tempo, aceitaram a amizade de pessoas (não) consideradas estranhas ou desconhecidas, postaram muitos dados em um só dia, motivo não revelado.

Existem ainda aquelas suspensões em que o dono do Face é denunciado por um de seus próprios amigos que não gostou de uma determinada postagem, imagem ou comentário; e a punição sempre vem a galope com a página podendo estar fora do ar pelo período de 7 a 30 dias. Afora o campo dos castigos, há (des)conexões misteriosas em curso, como por exemplo, o caso em que seu “feed de notícias” está ativado, mas não se recebe nada do que um amigo posta. O curtir de ambos promove a emergência de arquivos compartilhados, mas sem garantia de perdurar; ou seja, existe tanto quanto é impossível assegurar uma instância de gestão, gerenciamento, organização de arquivos que escapa ao controle dos navegadores. E isso coloca a questão de que o volume e o tráfego de dados em circulação são controlados e não estão circunscritos apenas à esfera do (desejo de) dizer do sujeito-navegador. Com tamanha abrangência, quando pensamos o acesso à rede vemos que “o espaço dos acessos fica, assim, do tamanho não dos anseios do navegador em deslizar na rede, mas do quanto os gestores do arquivo permitem que assim seja. Esse limite coloca em cena o político na trama do desenvolvimento tecnológico [...]” (ROMÃO, 2011b, p. 144).

Trazemos uma breve análise para refletirmos sobre esse controle imposto pelo Facebook, o qual faz frente ao desejo do sujeito-navegador de estar na rede social e poder compartilhar o que quiser nesse espaço digital.

Nas configurações do Facebook, além da possibilidade do sujeito-navegador ter sua página pessoal, existe também a possibilidade de criação de grupos (sejam secretos ou públicos) nos quais há um agrupamento de sujeitos-navegadores ligados/linkados/conectados em virtude de um interesse comum. Nesse espaço é possível o compartilhamento de conteúdos, a constituição de arquivos (de textos, imagens, vídeos), as curtidas, os comentários que ficam circunscritos ao grupo aos quais os sujeitos pertencem. Os sujeitos-navegadores passam a ser produtores de informação, criando conteúdos partilhados. Contudo, mesmo havendo uma liberdade maior desse sujeito na rede, têm-se ainda coerções impostas pelas centrais de gerenciamento desses arquivos. A Web 2.0 cria imaginariamente um espaço em que o sujeito tudo pode dizer, ver, compartilhar, mas o funcionamento das malhas do digital mostra que não é bem assim que isso se dá.

Em um grupo secreto, criado com o objetivo de constituir um espaço de interlocução entre alunos e professora de uma disciplina de Pós-Graduação de uma universidade pública do estado do Paraná, a proposta de uma atividade didática em que os discentes deveriam produzir e compartilhar um vídeo em que se falasse de si e de seu objeto de pesquisa. Para exemplificar como deveria ser feito esse vídeo, a docente resolveu compartilhar um vídeo por ela produzido no grupo do Facebook:


Figura 3 – Vídeo sendo carregado

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


Temos, inicialmente, a imagem do vídeo sendo carregado e cria-se a expectativa de que esse vídeo será publicado na timeline do grupo logo após seu processamento:



Figura 4 – Vídeo sendo processado

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


Esse processamento feito pelas centrais de gerenciamento do Facebook já indica um funcionamento dessa rede social e aponta para uma forma de intervenção às postagens de seus sujeitos-navegadores. Há um gerenciamento, realizado pela máquina, desse compartilhamento. É o Facebook que, de certo modo, autoriza ou não a publicação dos conteúdos nas páginas de seus sujeitos-navegadores. Tendo essa autorização, o sujeito pode navegar e postar o que deseja nessa rede social:



Figura 5 – Vídeo sendo processado

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


O vídeo compartilhado aparece na timeline do grupo, mas uma mensagem no canto esquerdo rompe e explicita uma censura imposta ao sujeito-navegador:


Figura 6 – Vídeo não publicado

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal

Figura 7 – Vídeo não publicado por conter direitos autorais

Fonte: <www.facebook.com> Login pessoal


Diante desse impedimento, a certeza de que não se pode postar tudo o que se deseja no Facebook. Como o vídeo produzido pela professora tinha composição musical do grupo Madredeus, o compartilhamento não é possível, pois implica nos direitos autorais dessa produção portuguesa. Há uma ordem a ser mantida no espaço digital em que não é possível compartilhar algo sem indicar (diríamos também sem pagar) sua autoria. Temos a voz do Facebook dizendo o que pode e deve ser publicado no arquivo daquele grupo secreto. Como centro de controle, o Facebook assina uma ordem a ser mantida e não permite que tudo seja dito, visto, documentado, curtido e compartilhado. O sujeito retroalimenta/gerencia a plataforma, mas há algumas coerções pelo digital.

Há uma voz do Facebook que gerencia os arquivos a serem postados na rede social. Mesmo navegando em um espaço colaborativo, tendo como condições de produção a Web 2.0 há um modo de organização e circulação do que o sujeito navegador pode dizer em rede. Temos, de certa forma, uma terceirização do arquivo do sujeito-navegador. Imaginariamente, o sujeito que navega na rede pode “tudo” compartilhar, postar, curtir sem nenhuma espécie de coerção, censura. Todavia, no funcionamento da rede, há um gerenciamento, feito pela máquina, pelos algoritmos, que interdita certas postagens do sujeito-navegador no espaço digital.

Estamos diante de uma grande corporação de tecnologia, de um software com alto valor agregado e que é utilizado por mais de 400 milhões de pessoas, de um negócio muito rentável (nem vamos explorar aqui os espaços publicitários vendidos na página do Facebook) e de um banco de dados planetário de consumidores em potencial que, eles mesmos, doam voluntariamente seus dados pessoais a um centro de controle desconhecido. “(...) o Facebook mapeia todas as conexões adicionais e monitora as interações de todos os usuários com elas (...)” (KIRKPATRICK, 2011, p. 334), isso é o bastante para colocar em questão as dobras movediças e opacas desse dispositivo tecnológico e também desse espaço discursivo em que parece reinar a liberdade total dos navegadores, banhados pelas águas de tudo poder-dizer, mas bordeado pelo furo que não se deixa ver facilmente.


Um ponto de parada: é do político que se trata


A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos” – Carlos Drummond de Andrade


Ao longo deste trabalho, buscamos refletir sobre a presença/ausência, sobre o alarido da linguagem e o esquecimento que a funda, e sobre o dizer e o impedimento de fazê-lo em duas formas de arquivos, quais sejam: i. aqueles controlados por uma gestão institucional marcada pela fisicalidade e pelo explícito controle de um centro de triagem, seleção, escolha e guarda, ii. aqueles ondulados pela virtualidade e por outra forma de controle, com bordas fluidas e configuração aparentemente descentralizada. Tomamos como mote uma rede social, o Facebook, muito acessada na atualidade que aparentemente sinaliza o império de tudo permitir que se diga, de todos os amigos poder abrigar e de todas as postagens poder compartilhar; ilusões contra as quais é preciso fazer furo. O que nos parece fazer censura entre as duas formas de arquivo e circulação de seus discursos é certo ponto de controle, seja pela via de uma casa de memória, seja pelo nome de certa empresa de software. O político imprime justamente nesse ponto a sua marca como instância que permite certas passagens de dizer, de acessar, de guardar e impede tantas outras; estar advertido disso já é um passo no sentido de fissurar os efeitos de naturalização inscritos pela tecnologia sem-limite e pela rede infinita do todos.

Selecionamos duas epígrafes para nos acompanhar ao longo desse percurso e que mobilizamos à guisa de encerramento, são elas: “Nem que eu bebesse o mar, encheria o que eu tenho de fundo” e “Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota”. Em ambas, os poetas inscrevem algo não-preenchível na inscrição do sujeito e do funcionamento da língua(gem), um mar tamanho que, por mais que se diga mundaréu de palavras, ainda assim sempre será pouco, insuficiente e teimosamente menor do que o “coração” e o “fundo” reclamam. Essa condição de não-tamponamento de um vazio estrutural nos ocorre agora justamente porque supomos que ela precisa ser (bem) dita, deixando o intervalo de oco como promessa de um outro dizer/desejar/acessar. O que a tecnologia e a rede eletrônica nos ofertam é justamente um modo (imaginariamente poderoso e eficiente) de obturar, tapar e preencher, toda advertência em relação a isso é bem vinda.



Referências bibliográficas



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Data de Recebimento: 16/06/2017
Data de Aprovação: 12/09/2017


[5] Usamos a nomeação sujeito-navegador ao longo deste trabalho em oposição à designação “usuário” que comumente aparece em trabalhos sobre o tema.

[6] E aqui entendemos arquivo do ponto de vista discursivo, tal como Pêcheux (1982) o postula como campo de documentos dados e disponíveis sobre uma dada questão.

[7] ROMÃO, L. M. S. Exposições do museu da língua portuguesa: arquivo e acontecimento e(m) discurso. São Carlos: Pedro & João, 2011a.

[8] Agradecemos a generosa leitura de Vivian Lemes Moreira que fez o seguinte comentário sobre isso: “acredito que aqui a rede eletrônica aprende com o sujeito, na medida em que ela vai se modelando com as exigências e formas de uso do internauta, como também direciona a inscrição do sujeito, por exemplo, o número de caracteres no twitter)”

[9] Temos desenhado a noção de Arquivo para designar o espaço inatingível, furado e extensivo de toda a rede digital, na qual somam-se e interligam-se todos os arquivos dis-postos e justa-postos.

[10] E isso, pelo muito que inscreve, é mote para um estudo em separado.

[11] Agradecemos o comentário de Fernanda Silveira Corrêa Galli sobre essa passagem do texto; a autora esclarece: “Isso escapa, completamente, a uma possibilidade de consignação... o que é compartilhado por outro(s), segue outras rotas nas tramas da rede... na linha do tempo de um Face não se tem os registros de ‘curtições e comentários’, apenas os compartilhamentos são enredados às postagens (outras) do tal facebookiano... Os verbos parecem inscrever comandos de naturezas diferentes...”