Introdução
Dentre os vários povos suscetíveis à exploração e dominação pela sociedade capitalista neoliberal, estão os povos indígenas. Sensíveis a essa realidade histórica, pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento científico, como a Antropologia, História, Sociologia, entre outras, têm lançado luz a essa população, procurando compreender o seu contexto socioeconômico, as formas históricas de opressão e exploração, a dinâmica das relações antagônicas que estão em sua base, entre outros.
O presente artigo traz uma análise discursiva de enunciados que têm circulado nas manifestações anuais do movimento Murdered and Missing Indigenous Women (doravante MMIW). Da perspectiva materialista do discurso, o objetivo é compreender os sentidos de luta do povo indígena da América do Norte produzidos no interior do movimento MMIW. O corpus analítico foi construído a partir do recorte de enunciados verbais e um visual que têm circulado, de modo recorrente, nas manifestações reivindicatórias anuais engendradas por esse movimento.
Para situar o leitor, descrevemos como este artigo está organizado. Em primeiro lugar, trazemos para a consideração uma reflexão sobre o modo de interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia e as possibilidades de (des)identificação com a Formação Discursiva que o interpela, bem como com a forma-sujeito que o determina (Pêcheux, 1988) e Orlandi (2001, 2011, 2022). Em segundo, apresentamos uma síntese sobre o processo de colonização da América do Norte e, na sequência, discorremos sobre os modos de constituição do movimento MMIW. Em terceiro, levantamos as regularidades dos enunciados que circulam nas manifestações anuais desse movimento, remetendo-as a sua exterioridade constitutiva a fim de compreender como a luta se constitui discursivamente. Por fim, nas considerações finais, fizemos um apanhado das questões trabalhadas, onde procuro retomar o objetivo da pesquisa e os resultados da análise.
A questão do sujeito em AD
Segundo o que se pensa em AD, o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e afetado pelo simbólico. Dessa interpelação resulta a forma-sujeito-histórica, isto é, o sujeito moderno. Tal forma-sujeito-histórica é a forma capitalista por excelência, caracterizada como sujeito jurídico, isto é, com seus direitos e deveres, capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas, como assevera C. Haroche (1992).
Já em um segundo movimento, há individualização dessa forma-sujeito-histórica pelo Estado, pelas instituições. As formas de individualização do sujeito pelo Estado, estabelecidas pelas instituições, resultam em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e senhor de sua vontade. Dessa reflexão, considera-se que há em todo sujeito uma necessidade de laço social, indiferentemente da situação social e histórica em que vive. A partir desse processo de individualização, os sujeitos são capturados pelos modos como as instituições do Estado burguês os individualizam: “[...] este indivíduo (sujeito individuado) é que vai estabelecer uma relação de identificação com uma ou outra formação discursiva. E assim se constitui em uma posição-sujeito na sociedade.” (Orlandi, 2022, p. 341)
Isso permite pensar tanto na possibilidade de reprodução como resistência, a ruptura e os movimentos, tanto dos sujeitos e sentidos, quanto da sociedade e da história.
Em sua célebre obra intitulada “Semântica e discurso”, Pêcheux (1988) afirma que a formação discursiva (FD doravante) corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados que representam o modo como o sujeito se relaciona com a ideologia vigente.
As FDs têm seus saberes regulados pela forma-sujeito, forma esta dotada de uma certa unicidade, sobretudo quando Pêcheux introduz ao que chamou de tomada de posição, que consiste em um movimento pelo qual o sujeito toma posição e se identifica consigo mesmo, com os seus semelhantes e com o Sujeito. Esse desdobramento do sujeito consiste em uma reduplicação de sua identificação.
Na mesma obra, Pêcheux (1988) introduz três modalidades de tomada de posição, as quais relativizam essa reduplicação da identificação. O sujeito apresenta-se dividido em relação a ele mesmo, e essa divisão do sujeito se materializa nas tomadas de posição frente aos saberes que estão inscritos na FD que o afeta. Essas três modalidades de funcionamento subjetivo propostas pelo autor são: identificação, contraidentificação e desidentificação. Tais modalidades permitem que o analista compreenda as formas de inscrição dos sujeitos nas formações discursivas.
A primeira modalidade é denominada por Pêcheux (1988) de superposição que se estabelece entre o sujeito da enunciação e a forma-sujeito2 (sujeito universal), resultando em uma “identificação plena do sujeito com a forma-sujeito”, caracterizando o que o autor chamou de ‘discurso do bom sujeito’. Ao mobilizar a terminologia althusseriana, Pêcheux (1988, p. 150) concebe a ‘forma-sujeito’ como “a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”.
Na segunda modalidade, chamada contraidentificação, através de uma tomada de posição, o sujeito se contrapõe à forma-sujeito por meio da dúvida, indagação ou revolta em relação aos saberes da FD que o constitui. Entretanto, como bem explica Pêcheux (1988), essa tensão se dá no interior da mesma FD. Vale dizer que a contraidentificação é um trabalho do sujeito do discurso sobre os sentidos constitutivos da FD com a qual se identifica e, por conseguinte, se institui como forma de resistência à forma-sujeito e aos saberes que ela engendra. O efeito de reduplicação da identificação da primeira modalidade dá lugar a uma superposição incompleta que resulta de um certo recuo, o que permite a instauração de uma tensão produzida pela contradição estabelecida no interior da FD. Como é possível notar, essa segunda modalidade convoca para o interior da FD o discurso outro, a alteridade, resultando em uma formação discursiva heterogênea.
Finalmente, Pêcheux (1988) estabelece uma terceira modalidade que funciona sob o modo da desidentificação; em suas palavras, “tomada de posição não subjetiva que leva ao trabalho de transformação-deslocamento da forma-sujeito” (Pêcheux, 1988, p. 217). Em síntese, nessa terceira modalidade, há um rompimento do sujeito com a FD em que estava inscrito e passa a identificar-se com outra FD e sua respectiva forma-sujeito.
Importa dizer que essa reflexão traz uma compreensão importante acerca do conceito de interpelação como um processo passível de falha; se não fosse assim, não haveria resistência, história nem a possibilidade de o sujeito se movimentar e se deslocar de uma FD a outra. O deslize (a metáfora), portanto, não seria possível.
Os povos indígenas da América do Norte e o movimento MMIW
Antes de discorrer sobre as motivações sócio-históricas que levaram à criação do movimento MMIW, gostaria de discorrer algumas linhas sobre o processo de formação da América do Norte.
Temos dito (Mota, 2024) que historicamente esse processo foi marcado por uma luta sangrenta perpetrada por colonizadores contra os povos indígenas. Em todo o mundo, assistimos ao massacre dos povos indígenas pelas forças coloniais imperialistas (Stannard, 1992) ou, como denomina Madley (2017), genocídio. Entretanto, tais lutas não tiveram “direito à história”, como assinala Febvre (1985), sendo consideradas uma consequência natural do confronto entre duas culturas: a indígena, significada como primitiva e/ou selvagem, e a europeia, considerada superior.
De acordo com Sola (1996), a população indígena tem passado por um processo intenso de desconfiguração e descaracterização pelas práticas e métodos de desenvolvimento e dominação da sociedade colonial e, posteriormente, capitalista. Em sua análise, o autor mostra o confronto entre colonizadores e indígenas e a política indigenista dos governos da América do Norte, bem como os gestos de resistência dessa população contra as violências cometidas pelo poder colonial. Atualmente, a exploração e dominação se dão de outros modos e são geradas dentro do e pelo sistema capitalista neoliberal que tem reduzido a população indígena à mercadoria.
Dentre a população indígena, as mulheres estão na estatística das mais vitimadas pela violência (simbólica, física e sexual) em razão de constituírem um grupo que tem sido marginalizado do ponto de vista social, econômico e político3 (Mota, 2024).
Pobreza4 e falta de moradia, bem como fatores históricos e ideológicos como sexismo, xenofobia, racismo e a herança do colonialismo, têm contribuído fortemente para a exploração, dominação, subjugação, desaparecimento forçado e assassinato dessas mulheres. Para Tripotin (2019), elas têm três vezes e meio mais chances de serem vítimas de crimes violentos do que outras mulheres não nativas. Segundo Roy (2004), a vulnerabilidade a que as mulheres indígenas estão submetidas não está relacionada somente à misoginia e à etnia; ela considera em sua análise um outro fator igualmente relevante: a classe social a qual pertencem:
As in any society, indigenous women too share the same burden of institutionalized gender bias as their non-indigenous sisters, yet, they have a heavier load. Indigenous women are the most vulnerable among indigenous peoples, and face double discrimination - on the basis of their gender for being women and for their ethnicity for being indigenous. In some parts of the world, there is triple burden to bear as indigenous women are also poor. (Roy, 2004, p. 3).
Após um longo processo de colonização, que se deu, entre outras coisas, por meio da subjugação, dizimação e expulsão dos índios de suas terras, levando-os a um deslocamento forçado5, surge, no horizonte, o liberalismo, com a promessa de instalação de um regime de igualdade para todos, incluindo aí os indígenas. No entanto, como a história tem mostrado, não foi isso que aconteceu; a exploração colonial continuou e continua até hoje sob diferentes facetas; desta vez pelo sistema econômico capitalista. Os Estados Unidos da América e o Canadá, onde vive uma parte significativa da população indígena, são Estados burgueses, que, como tal, apresentam sistema, ideologia e legislações burguesas.
Já em fins do século XX, como reação a essa opressão histórica, mais exatamente em meados de 2010, foi criado um movimento de massa reivindicatório reconhecido internacionalmente, denominado Missing and Murdered Indigenous Women que, em tradução para o português, significa “Mulheres Indígenas Desaparecidas e Assassinadas”.
O movimento MMIW surgiu inicialmente no final do século XX e inı́cio do XXI no Canadá e se disseminou pelos Estados Unidos da América, com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre o vínculo entre tráfico, assédio e violência sexuais e as mulheres indígenas tanto vítimas de desaparecimento forçado quanto assassinadas (Hill, Anderson, King, 2022). A data de todo 5 de maio foi institucionalizada pelos ativistas do movimento a fim de mobilizar a sociedade para a violência pela qual a população indígena tem sofrido.
Dyer (2020, p. 3) reconhece que o movimento objetiva “recognition to the problems of unequal consideration given to Native American women and how our country has not responded effectively to crimes against members of the Native community.” Já para Hill, Anderson e King (2022), a expressão “Missing and Murdered Indigenous Women” refere-se a centenas de mortes e desaparecimentos de mulheres nativas que continuam a assolar as terras indígenas, comunidades rurais e cidades na América do Norte todos os anos. Para eles, “[...] this is not a new phenomenon: indigenous women have long been sexually exploited and subjugated, dating back to the early colonization of North America.” Ou seja, os autores estão apontando para o fato de que esta problemática está na base da sociedade, portanto o que está em jogo aí é um problema de ordem estrutural6.
Como vimos afirmando (Mota, 2024), embora seja estruturante, essa é uma questão que ascendeu a uma crise de proporções pandêmicas nas últimas décadas, conforme assinalam Lucchesi (2019) e Mandeville (2015). No ano de 2013, no caso específico dos EUA, o Congresso Nacional do Centro de Pesquisa de Políticas Indígenas Americanas relatou que os indígenas e os nativos do Alasca têm 2,5 vezes mais probabilidade de sofrer crimes violentos – e pelo menos 2 vezes mais probabilidade de sofrer crimes de estupro ou agressão sexual – em comparação com todas as outras raças (Centro de Pesquisa de Políticas NCAI, 2013). Embora essa estatística revele uma ameaça às mulheres e meninas indígenas, os procuradores do Estado Americano recusam frequentemente processar crimes violentos contra elas. Para Hill, Anderson, King (2022), “These statistics reveal a striking and disproportionate predatory threat facing indigenous women and girls7.”
Destaca-se que a existência de um banco de dados falho, ineficiente, está intimamente relacionado com a falta de investigação sobre o caso das mulheres indígenas vítimas de violência, inviabilizando a construção de políticas públicas que poderiam produzir um deslocamento significativo na história dessas mulheres e, porque não dizer, de toda a população indígena (cf. Mota, 2024). Essa banalização da violência coloca em evidência o funcionamento da gestão pública governamental dos países da América do Norte, em especial o Canadá e os Estados Unidos, que funciona no sentido de administrar e conter os sentidos sociais e políticos produzidos pelos movimentos reivindicatórios. Como afirma Orlandi (Orlandi, 1999, p. 5), “evitam-se os conflitos, silencia-se o que demanda sentido e evitam-se as transformações”. Daí o descaso tanto do aparelho jurídico quanto midiático quando o assunto incide na visibilidade dessas mulheres.
Do interior do movimento MMIW, surgiram outros movimentos menos populares, são eles: Murdered and Missing Indigenous Girls; Murdered and Missing Indigenous Two Spirits LGBTqI+people; Murdered and Missing Indigenous Men e, por fim, Murdered and Missing Indigenous Boys.
Como se vê, tal desdobramento se dá a partir da lógica do gênero, ou seja, há uma subdivisão hierárquica atravessando a luta do povo indígena, a partir da qual o gênero feminino comparece com maior importância em relação aos demais. Isto é, a resistência (a luta) do povo indígena é construída a partir de uma divisão em gêneros.
Adiantando a análise, essa luta fragmentada em gêneros está relacionada com o funcionamento da sociedade capitalista contemporânea e seus sentidos, resultando no fracionamento da coletividade. Nela, foca-se na dispersão, no indivíduo e em sua fragmentação em grupos menores. Do ponto de vista material, a fragmentação da coletividade, quando dissociada da totalidade, atomiza a luta, pulverizando-a. Como resultado, perde-se a compreensão histórica da totalidade social concreta (Marx, 2005; Lukács, 1979) da qual a mulher indígena faz parte constitutiva8. Voltaremos a essa questão.
A noção de totalidade de Marx (2005) vem ao encontro de nossa reflexão. Ela refere-se à ideia de que a realidade histórica social deve ser compreendida como um todo integrado. Marx o mobiliza para entender como diferentes aspectos da sociedade (como economia, política, cultura etc.) estão interligados e formam uma rede que determina as condições materiais de existência da sociedade.
Proposta de análise do corpus
Nesta seção, o objetivo consiste em analisar o funcionamento discursivo das palavras de ordem que circulam com regularidade nas manifestações do movimento MMIW, observando como a luta das mulheres indígenas se constitui. Como já dito, tais enunciados também podem ser encontrados em outros suportes materiais, tais como: estampas de camisetas, blusas, botons, bonés, gorros, chinelos, agendas, entre muitos outros.
Não é nosso objetivo aqui analisar todos os enunciados exaustivamente, mas, a partir da observação de seu funcionamento, compreender as regularidades que estão em sua base e remetê-las ao discurso.
4.1 MMIW Red hand (handprint): o enunciado visual
A mão vermelha sobre a boca é o símbolo oficial do movimento MMIW e está presente em todas as manifestações reivindicatórias que circulam, tanto no Canadá quanto nos Estados Unidos da América. Discursivamente, consideramos a marca da mão vermelha – em inglês handprint – como um enunciado visual que funciona em condições de produção específicas.
Da perspectiva do movimento, trata-se de um símbolo usado para indicar solidariedade às mulheres e meninas indígenas desaparecidas e assassinadas na América do Norte, em reconhecimento ao fato de que as mulheres nativas têm dez vezes mais probabilidade de serem assassinadas, abusadas sexualmente e roubadas9.
Recorte 1: MMIW Red Hand10

Fonte: Frontiers (2021) [1º bloco]; Yabis Photography (2022) [2º bloco].
Apoiados nos estudos de Lagazzi sobre o visual (2021, p. 5891), consideramos a imagem como uma “tecnologia política da linguagem que afeta o sujeito” e acrescentaríamos o sentido, isto é, compreendemo-la como potência significante na história.
Como signo de resistência à violência contra a mulher indígena, a imagem da mão vermelha cobrindo a boca convoca os sujeitos à prática simbólica da manifestação, da reivindicação, além de funcionar como um símbolo de luta. Ou seja, pela imagem da mão vermelha, o sujeito se inscreve politicamente no social, mais precisamente na ordem do discurso da manifestação reivindicatória. Ela funciona como uma ordem para que a violência contra as mulheres cesse, similar ao efeito de sentido produzido pelos enunciados verbais: Stop violence against native people! End violence! No more stolen sisters!, entre outros, os quais também circulam nas manifestações do movimento MMIW, como veremos mais adiante. A mão vermelha cobrindo parte do rosto funciona como o enunciado visual desses enunciados verbais, a sua tradução visual.
Acrescente-se, a imagem da mão ensanguentada pintada na boca retrata as indígenas caladas, sufocadas, ao mesmo tempo em que instaura uma denúncia do silenciamento pelo qual são submetidas. Em outras palavras, ela desliza metonimicamente para significar o cerceamento sofrido pelas indígenas. A esse respeito é fundamental não negligenciarmos as condições materiais de existência do povo indígena, isto é, o povo indígena em sua totalidade foi (é) vítima de um apagamento histórico profundo praticado pelas forças coloniais imperialistas e pelo sistema econômico capitalista, apagamento que ressoa na memória produzindo sentidos. Em síntese, a mão vermelha é a materialização do silêncio (apagamento) histórico sofrido.
Ademais, a mão vermelha, marca que representa o sangue da mulher assassinada, também permite a seguinte interpretação: trata-se da marca da mão de seus algozes, isto é, dos agentes da violência e o silêncio que eles exercem sobre as indígenas.
Um dos princípios elementares da Análise de Discurso materialista é o fato de que os sentidos são efeitos produzidos a partir de determinações históricas, ideológicas e inconscientes, o que demanda, para o analista, buscar a sua necessária desnaturalização (Lagazzi, 2021).
4.2 Os enunciados verbais
Os enunciados verbais recorrentes nas manifestações, que estão funcionando como palavras de ordem, seguem abaixo:
Tabela 1: Enunciados verbais do MMIW
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Enunciados produzidos pelos ativistas do movimento MMIW
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“No more stolen sisters” |
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“No more silence” / “Silence no more” / “Silent no more” |
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“No more missing and murdered indigenous women” |
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“Stop violence against native people” / “Stop violence against indigenous women” |
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“End violence.” |
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“Suport MMIW” |
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“Protect native women” |
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“Brink our sisters home” |
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“They are not forgotten / You are not forgotten” |
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“Missing but not forgotten” |
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“We demand for justice now” |
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“I wear read for my sisters” |
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“Women are sacred” |
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“Sisterhood is sacred” |
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“Justice for indigenous women” |
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“Stolen lives on stolen lands” |
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“Native lives matter” |
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“We are still here.” |
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“Where is she?” |
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“Where are our sisters?” |
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“Am I next? |
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“I am not next!” |
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“We’re going missing” |
Desses enunciados, capturamos algumas regularidades que, discursivamente, estão funcionando como propriedade (Orlandi, 1987) do discurso do movimento MMIW. Vejamos:
Recorte no gênero feminino “
Women
”, “
sisters
”, “
she
”, “
sisterhood
”;
Frases nominais:
No more stolen sisters
,
Justice for women
,
Missing but never forgotten
;
Frases imperativas:
Protect native women, Stop violence against native people
;
Frases reivindicativas de justiça:
We demand for justice now
;
Frases interrogativas:
Where is she? Where are our sisters?
Am I next?
Frases verbais:
Women are sacred
,
Native lives matter
.
Frases negativas:
No more silence, No more stolen sisters, I am not next.
Lembramos que, em Análise de Discurso, todo texto é uma realidade material, concreta, que pode tomar corpo na escrita, na fala oral ou impressa; desses textos é possível depreender marcas, vestígios, pistas que são remetidas ao discurso na análise. Portanto, trata-se de elementos formais, mas não significam por si, já que o sentido é estabelecido em relação ao texto e sua exterioridade constitutiva. É disso que Orlandi (2001, p. 88-89) se refere quando afirma que o texto é a unidade de análise afetada pelas condições de produção e pela memória “a ordem do discurso se materializa na estruturação do texto.”
A primeira marca que se destaca é o recorte focalizado no gênero feminino (“indigenous women”, “no more stolen Sisters”, “Where is she?”, “Sisterhood is sacred”); não há referência aos povos indígenas em sua totalidade11.
A justiça é evocada com regularidade nos enunciados. Ao mesmo tempo em que as mulheres indígenas pedem o fim da violência, querem a resolução e justiça para os crimes cometidos e com urgência “now”: We demand for justice now.
Destaca-se a negação na forma linguística “no more”, que, em língua portuguesa, equivale ao “nunca mais” e suas derivações: “Golpe nunca mais”, “Fascismo nunca mais”, “Não passarão”.
Recorte 2: No more stolen sisters!!

Fonte: Artur Widak, 2022.
Pede-se fim à violência (“No more stolen sisters!”), mais exatamente o roubo e assassinato das mulheres (“sisters”), incluindo o silêncio imposto às mulheres indígenas da América do Norte: “Silent no more!” (recorte 3 abaixo) e suas variações, tais como “No more silence!” e “Silence no more”. No entanto, embora a negação seja mobilizada, o processo histórico a ignora.

Fonte: Dylan Rose (2022)
Discursivamente, a forma linguística da negação está funcionando no sentido de opor as vítimas à condição de violência, refutando-a. Observe-se que a negação “no more” é a recusa, de forma categórica, do destino não desejado do povo, no entanto, silenciam-se as questões que produzem e/ou corroboram o problema13.
A título de aprofundamento da análise, mobilizamos o artigo de Anscombre e Ducrot (1981, p. 16), intitulado “Interrogation et argumentation”. Nele, os autores descrevem a interrogação Est-ce que p?, buscando explicitar a relação de vínculo entre a interrogação simples e a negação. Para isso, apresentam três atos que a interrogação permite estabelecer, a saber:
A expressão de uma incerteza (dúvida) a respeito do enunciado
. Aqui, os linguistas salientam que as interrogações são polifônicas, uma vez que a incerteza emitida pela questão
Est-ce que p?
pode ter como resposta a afirmação ou a negação.
A afirmação prévia do enunciado
. Para os autores, a interrogação positiva contém uma afirmação, mas ela é da ordem da polifonia, já que abre como possibilidade de resposta tanto a afirmação quanto a negação. No entanto, se a interrogação é positiva, a força argumentativa é maior para uma resposta negativa. Para eles, as respostas que abrigam dúvida são formas enfraquecidas de negação.
A incumbência de uma resposta
. Em razão da polifonia da interrogação, tal incumbência (obrigação) permite uma resposta tanto afirmativa quanto negativa.
Dito isto, segundo os autores, a interrogação traz em sua constituição a possibilidade de um jogo polifônico entre afirmação e negação, uma vez que permite as duas possibilidades de resposta.
Retornemos à análise do corpus. Considere-se o enunciado Am I next? e suas condições de produção.

Fonte: WTIP, 202014.
Este enunciado denunciativo traz em seu bojo uma elipse, que pode ser interpretada da seguinte forma: “Sou a próxima a ser assassinada/roubada?”15 Caracterizada pela falta, a elipse demanda que o interlocutor, no movimento de leitura, retome, na memória, o sentido silenciado. O que está silenciado aí é o tipo de violência: assassinato e/ou roubo, isto é, o destino incerto da mulher.
Ao fazer a pergunta na primeira pessoa do singular, o enunciador (sujeito-mulher-indígena) torna-a polifônica, na medida em que é aberta a possibilidade de duas respostas, relativas a duas orientações argumentativas diferentes:
1- Am I next?
(a) Yes, I am next.
(b) No, I am not next.
Enquanto em (a) há um gesto de resignação (submissão) ao processo histórico de massacre dos povos indígenas, em (b), por sua vez, tal realidade é negada, posição discursiva essa que questiona a resignação em (a) e desafia o poder colonial imperialista estabelecido.
A formulação I’m not next também circula nas movimentações do movimento MMIW. Ela atualiza a memória ao responder negativamente à pergunta Am I next? (cf. recorte 4).

Fonte: @stolensisters / X (Twitter)
Como Ducrot e Anscrombre (1981) afirmam, na interrogação positiva, a força argumentativa é maior para uma resposta negativa. Discursivamente, o enunciador em I’m not next resiste à violência, assumindo uma posição-sujeito que desafia as forças do poder estabelecido, como já afirmado.
O sentido elíptico (silenciado) no enunciado pode ser recuperado pelo contexto histórico em que a reivindicação se inscreve: “Eu não sou a próxima a ser assassinada ou roubada16”. Ao se colocar na primeira pessoa do singular, o enunciador confronta e desafia o poder, isto é, ao atualizar a memória, a formulação I’m not next quebra a expectativa da continuidade da violência contra a mulher indígena, abalando as redes de filiação de sentidos.
Comparando os enunciados 4 e 5 (recortes 4 e 5), nota-se que a mudança de interrogação “Am I next?” para negação, a formulação “I am not next” traz um gesto de interpretação que expõe o político, isto é, a existência de posições discursivas disputando os sentidos no contexto da referida luta. Enquanto em “I am not next” há uma recusa explícita do futuro indesejado (assassinato ou roubo), o enunciado interrogativo “Am I next?”, por seu lado, abre também para a possibilidade de uma afirmação (conformação, resiliência), como já explicitamos.
Outro enunciado que merece nossa atenção analítica é “WE’RE STILL HERE”, que comparece regularmente nas manifestações do movimento indígena e que também é elíptico.

Fonte: We're Still Here: Native Perspectives for the 21st Centurey -- MMIW
“STILL”, ainda em português, é um advérbio de tempo na formulação “WE’RE STILL HERE”. Discursivamente, é um enunciado com efeito de resistência resignada, indicando que a qualquer hora 'poderá não estar mais aqui'. É notável o apagamento da razão ou razões para tal, isto é, para a possível ausência vindoura das indígenas. A situação representada dessas mulheres localiza-se em um intervalo de tempo indeterminado: a qualquer hora podem não mais estar. Não questiona a situação, ratifica-a.
O estado temporário situa-se algures num momento anterior e prolonga-se até o momento da enunciação. Isto é, embora neguem, as mulheres estão sujeitas à capitulação em algum momento indeterminado.
Embora seja um enunciado de (aparente) resistência, ele não fornece informação precisa/explícita sobre a continuação do estado em intervalos de tempo posteriores à enunciação. Além disso, o advérbio de tempo “still” co-ocorre com um advérbio de lugar “here” (aqui), mantendo o valor imperfectivo e corroborando a ideia de indeterminação temporal.
Ademais, ainda sugere uma mudança possível de um estado p para um estado não-p, ou seja, ainda supõe uma mudança de estado por consumar.
Neste trabalho, o silêncio é compreendido como injunção: ele atravessa as palavras (e acrescentaríamos a imagem), indicando que o sentido pode ser sempre outro (Orlandi, 1997). Por meio do silêncio, reconhece-se que, para dizer, é preciso não dizer.
Considerando as condições de produção do enunciado “We’re still here!”, observamos o funcionamento de uma elipse, qual seja: Não fui assassinada nem roubada ainda! (I haven't been murdered or stolen yet). Como é possível observar, silencia-se um sentido importante: o fato de os assassinatos/roubos não terem sido levados a cabo ainda, pelo menos até o momento da enunciação.
Discursivamente, compreendemos que a elipse, que tem como propriedade a falta (incompletude), remete ao não-dito, isto é, àquilo que é posto em silêncio. Neste sentido, ela configura um lugar do possível, cuja produção de sentidos está submetida a determinadas condições de produção sócio-históricas de significação.
Em seu livro “As formas do silêncio”, Orlandi (1997) afirma que há o silêncio fundador e as políticas do silêncio, subdivididas em silêncio constitutivo e silêncio local. O silêncio fundador concerne ao “princípio de toda significação”, sendo “a própria condição de produção do sentido”. O silêncio fundador, como possibilidade de sentido, é responsável pela incompletude constitutiva da linguagem, o que permite que o sentido sempre possa ser outro.
Já o silêncio local relaciona-se com a interdição do dizer, “proíbem-se certas palavras para se proibirem certos sentidos” (Orlandi, 1997, p. 79). Entretanto, os sentidos proibidos podem encontrar formas (outras) para significarem. Em nosso corpus, o funcionamento dos enunciados indica que as mulheres indígenas significam pela sua inscrição no simbólico do silêncio local.
Chama-nos a atenção um deslize de sentido no interior do próprio corpus: a formulação "indigenous women" desliza metaforicamente para "native people", o que é, a nosso ver, sintomático à medida que desloca a delimitação estrita no gênero: “Stop violence against indigenous women” > “Stop violence against native people”.
Indigenous women
Native people
O deslize se dá na passagem do gênero (women) para etnia (people), o que revela que a violência não diz respeito somente ao gênero, mas atinge todo o povo indígena em sua totalidade social concreta.
Tome-se o seguinte enunciado:
Recorte 7: Stolen lives on stolen land

Fonte: Artur Widak, 202217.
Em comparação com os outros enunciados da Tabela 1, o enunciado “Stolen lives on stolen land” traz dois aspectos interessantes. Novamente, a questão do gênero é deslocada, isto é, há uma migração de sentidos de “sisters” (irmãs) e/ou “women” para “lives” (vidas), evidenciando o fato de que a violência transcende o gênero; ela acomete toda a população indígena, representada como “vidas”, transpondo-se a barreira do gênero. Em síntese, pelo efeito metafórico, a palavra “lives” amplia o sentido de “women” ou “sisters” para significar a população em sua totalidade.
A palavra “land” preenche a mesma posição no enunciado: tanto as vidas, como as terras foram/são roubadas, tomadas à força do povo indígena. O enunciado traz um problema histórico antigo que toca a questão agrária, a posse da terra. A história tem mostrado que, no capitalismo, o roubo de terras é naturalizado, quando, na verdade, está relacionado com o regime econômico de uma sociedade cujo foco é o lucro, lucro este que se assenta na exploração e dominação dos povos18.
Abramos aqui um parêntese. No Canadá, os conflitos territoriais têm suas particularidades. As terras tradicionais que pertenciam ao povo indígena foram invadidas e tomadas pelo governo, o que resultou em revoltas e disputas sobre direitos territoriais. A luta do movimento indígena pela terra continua até hoje. Reivindicam-se a devolução das terras, bem como a autodeterminação, por meio de acordos como os Tratados Modernos e as negociações de terras19.
Dois outros enunciados recorrentes nas manifestações do movimento MMIW são “Women are sacred” e “Sisterhood is sacred”. A mulher é significada a partir da discursividade cristã (religiosa), resultando na despolitização da luta. Noutros termos, ao subjetivar e naturalizar a mulher indígena no lugar do sagrado, apaga-se o caráter político da luta e dos sujeitos nela envolvidos, isto é, trata-se de sujeitos sócio-históricos e não divindades ou seres sobrenaturais20. Os enunciados produzem um outro efeito de sentido pelo não-dito: assassinar/roubar uma mulher indígena é violar o sagrado, a sua ordem. Restringe-se a violência à mulher; o homem e os outros sujeitos indígenas são silenciados.
O liberalismo, ideologia que domina a política econômica dos Estados Unidos e de todo o Ocidente e sustenta o regime capitalista neoliberal do mundo atual, defende a igualdade de direitos e deveres, mas, contraditoriamente, a igualdade real não existe. Esse problema não é abordado nas manifestações do movimento MMIW, isto é, não aparecem na luta das ideias promovida pelas mulheres indígenas da América do Norte.
Os enunciados que fazem parte do corpus exibem o equívoco doloroso em que o povo indígena vive, evidenciando bem o conflito que é estar hoje “aqui” – We are still here! – e não saber até quando – Am I next?
Assombradas pela incerteza de estar/não estar mais, as mulheres indígenas vivem buscando sentido(s), reforçando sua significância para uma sociedade em que estão condenadas ao desaparecimento: “We’re going missing”. Esta tem sido a sua realidade: sem lugar definido e seguro na sociedade e na história da América do Norte.
4.3.A luta do movimento MMIW e seus pontos cegos
Há pelos menos dois silenciamentos atravessando o modo de constituição da luta indígena no contexto do movimento MMIW e que se materializam nos enunciados que circulam nas manifestações que acontecem no Canadá e nos EUA.
O primeiro deles diz respeito ao fato de que, ao mesmo tempo em que o movimento MMIW denuncia o silenciamento das mulheres indígenas, ele silencia (exclui) a existência de outros indígenas que sofrem igualmente a violência da qual elas são vítimas e a qual denunciam. Ou seja, fica silenciado o fato de que os homens (gênero masculino), só para citar um exemplo, também são vítimas da violência, seja assassinato, seja desaparecimento forçado21. Portanto, trata-se de um discurso que silencia o resto do povo do qual as mulheres indígenas fazem parte. Não só a mulher, mas também o homem indígena é silenciado22.
Defendemos que o ataque é a todo o povo indígena, até porque as mulheres fazem parte desse povo. Noutros termos, se as mulheres indígenas são objeto de um massacre (genocídio?), significa que todo o povo indígena é afetado.
Do ponto de vista materialista, essa fragmentação dos sentidos, isto é, do povo indígena, tem íntima relação com o funcionamento da sociedade capitalista contemporânea. Nela, o foco está no indivíduo, isto é, na fragmentação e dispersão de todo um povo em grupos (subgrupos) menores. Trata-se da emergência do capitalismo em seu máximo grau, dando marcha não só a um novo modo de acumulação, mas também à dispersão e fragmentação na esfera produtiva e subjetiva. O elogio da diferença, aspecto basilar do discurso da pós-modernidade, dá vazão ao individualismo, que constitui a tônica de um mundo que prima pela esfera privada, dificultando a transformação e justiça social e, fundamentalmente, a compreensão da dimensão histórica da luta.
Para Laureano e Peixoto Jr. (2014, p. 6), o efeito dessa conjuntura pós-moderna, que celebra as individualidades, a fragmentação e a dispersão do(s) sujeito(s), consiste “[n]a esquizofrenização do laço social, já que o universal do mercado, operando através da fragmentação e da dispersão celebradas pela ideologia, frustra qualquer tipo de sentido coletivo, de laço social estável que poderia fazer frente à globalização capitalista.” A subjetividade que está na base do discurso da pós-modernidade intensifica a lógica do capitalismo, que, segundo o materialista Jameson (1991, p.112), é “dispersiva e atomística, individualística, uma antissociedade mais do que uma sociedade.”
Para Orlandi (2014, p. 29), os discursos das minorias constituem o processo da mundialização e são constituídos por ele:
Faz parte dos discursos, que se pretendem engajados nas questões sociais, pronunciarem-se sobre igualdade, diferença, culturas, minorias. Eu colocaria todas estas manifestações discursivas, contemporaneamente, na relação com o que se pode chamar o processo discursivo da mundialização, de que são parte.
No âmbito geral, o liberalismo continua dominando; os discursos das minorias cumprem a função de lugares de fala dos "excluídos", cada um exibe sua identidade única e irredutível, mas todos acomodados dentro do todo da sociedade capitalista. Em síntese, a ‘inclusão’ se dá dentro da ordem vigente burguesa, o mesmo sistema econômico que produz a exclusão.
O segundo silenciamento está relacionado à forma da denúncia, isto é, o modo como a denúncia e a reivindicação (ao reconhecimento) são materializadas no intradiscurso. Observamos que há apenas a denúncia dos efeitos, enquanto as causas, que são históricas, estão silenciadas. Como vimos afirmando, o silenciamento não é só sobre o genocídio, mas também e fundamentalmente sobre a opressão e exploração capitalistas que geram a violência contra as mulheres e o povo indígena em sua totalidade.
Não há nada que caracterize o conflito: quem é o inimigo que atua nesse genocídio do povo indígena? Por que a violência contra ele? Por que são roubados e assassinados? Quem são seus algozes? O que está funcionando aí é justamente a censura: ela atinge em cheio o movimento, enfraquecendo a luta. Mais precisamente, trata-se de uma luta que não produz acontecimento histórico, isto é, não rompe com o círculo de repetição, portanto.
É sintomático o fato de os problemas enfrentados pelo povo indígena, que são, em sua maioria, motivadores de violência – como é o caso do transporte público deficiente (Hill, Anderson, King, 2022; Dyer, 2020; Tripotin, 2019; Mandeville, 2015; Lucchesi, 2022), só para citar um exemplo –, não serem mencionados pelo movimento MMIW. É preciso considerar que tais problemas são produzidos na e pela sociedade capitalista e não só pela misoginia ou hostilidade do dito homem branco, como afirmam os movimentos identitários.
Ou seja, não há infraestrutura para os indígenas, quando há é insuficiente e, muitas vezes, frágil, o que torna a população indígena vulnerável, ou seja, presa fácil de violência. O trecho a seguir sintetiza as condições materiais precárias em que o povo indígena da América do Norte vive:
Rather than seamless assimilation, Native Americans face continued discrimination, limited access to housing and employment (redlining, prejudice in the labor market, etc.), and normalized hostility directed at them. For those coming out of foster care, alienation, substance abuse, and even homelessness has not been uncommon, as noted above — all conditions associated with increased susceptibility to victimization by predators and traffickers. Reservations are also profoundly resource starved, plagued by persistent government induced poverty and lack of opportunities. […] Access to automobiles and public transit options have historically been lacking as well. As such, because indigenous women are particularly immobile, they are prompted to consider alternative, or “contentious,” modes of mobility that they might otherwise not consider, merely to acquire basic services (Hill, Anderson, King, 2022, p. 8). (Grifos nossos).
Embora denunciem o silêncio ao qual são impostos(as), os(as) porta-vozes das vítimas silenciam inconscientemente os problemas estruturais do sistema econômico que rege essa totalidade (a população indígena)23. Ou seja, os processos históricos e políticos que estão envolvidos na violência contra o povo indígena não são formulados, resultando em uma denúncia repleta de silêncio24.
A luta por reconhecimento, autonomizado das lutas de classes, tende a tornar-se mera inserção na sociedade capitalista, ou seja, ela representa uma demanda e um objetivo meramente inclusivistas (Montaño, 2021, p. 202).
As reivindicações feitas pelo movimento MMIW parecem se esgotar no discurso da “inclusão”, que, para Orlandi (2011, p. 9), é um discurso que
propõe transformar o excluído, para adequá-lo às formas de dominação da cultura, do conhecimento, ou da classe social, visando inserir o não inserido, para melhor conformá-lo às novas formas do controle. E este é um discurso que, além de descaracterizar as necessidades reais dos movimentos da sociedade e de seus sujeitos, impede que nos confrontemos com o real de nossa sociedade e das relações que se dão entre os sujeitos individualizados que a constituem, e que já têm outra forma, outras necessidades.
Como afirmamos, o suposto destino das mulheres e de outros sujeitos indígenas – tráfico humano, tráfico de drogas, prostituição, assassinatos etc. – são sintomas da sociedade capitalista, o que significa que tais problemas se alimentam e são alimentados por ela. De nossa parte, a luta teria que vincular os sintomas às suas causas, mas isso demandaria o rompimento com a FD à qual o movimento está filiado ideologicamente e com sua forma-sujeito respectivamente.
Considerações finais
A presente pesquisa teve por objetivo analisar como a luta indígena se constitui discursivamente no interior do movimento MMIW. Para isso, da perspectiva materialista do discurso, analisamos os enunciados que têm circulado nas manifestações reivindicatórias do referido movimento que acontecem anualmente em toda a América do Norte.
O povo indígena faz parte de uma sociedade regida por um sistema econômico capitalista que, como tal, vive da exploração e dominação dos povos oprimidos. Como Orlandi (2022, p. 349) afirma, “O Estado capitalista é estruturado pela falha: há os que estão dentro e os que ficam segregados”. Vale salientar que não somente as mulheres, mas todos os indígenas fazem parte das classes exploradas e segregadas por esse regime capitalista.
Quanto à fragmentação do movimento em gênero, da posição materialista, trata-se, pois, de um erro de princípio separar a luta da mulher indígena da totalidade social concreta, isto é, do povo indígena em sua totalidade. A quem interessa a fragmentação da luta e a dispersão do povo? Lembramos com Orlandi (2022, p. 139) que o Estado capitalista “[...] é o Estado da divisão: sujeito dividido em si, sujeitos divididos entre si” (grifos nossos).
A respeito do funcionamento dos enunciados que circulam nas manifestações do movimento MMIW, observamos uma luta atravessada pelo silêncio. Evoca-se a violência como um problema a ser superado “End violence!”, “Stop violence against indigenous women!”, “No more stolen sisters!”, “No more silence” etc., e o reconhecimento da mulher indígena “Women are sacred”, “Protect native women” etc., mas não há menção à importância de romper com a ordem social burguesa, a mesma responsável pelo massacre do povo indígena. Como já apontamos, enquanto se diz “violence” se silencia o “genocide”25. Ou seja, trata-se de denúncias atravessadas pelo silenciamento de certas palavras, expressões... Daí Pêcheux (1988) afirmar que a linguagem serve para comunicar e para não comunicar.
Para melhor dizer, as palavras “silence”, “violence”, “stolen”, “missing” (cf. Tabela 1), regulares nos enunciados reivindicatórios do movimento MMIW, silenciam a existência do genocídio. Trata-se do que Orlandi (1997, p. 71) chamou de política do silêncio: “o silêncio não está apenas entre as palavras. Ele as atravessa.”. Em um outro trecho da mesma obra, a autora afirma: “[...] o que ela [a censura] procura impedir é justamente que haja elaboração histórica dos sentidos e movimento no trabalho de identificação dos sujeitos”. (Orlandi, 1997, p. 129). Por isso, diz “violence” ou “stolen” para não dizer “genocide” ou “slaughter of a people26”, o que resultaria, nessas duas últimas formulações, em formações discursivas diferentes, ou seja, um recorte diferente na memória e, por que não dizer, resultaria um rompimento com a FD em que o movimento está inscrito e com a qual se identifica, passando a identificar-se com outra FD e com sua respectiva forma-sujeito.
Assim, embora haja um aparente tom “transgressor” nos enunciados do movimento MMIW, há interdições (silenciamento) que dizem muito sobre a posição-sujeito e a FD com a qual se dá a sua identificação. Tal silenciamento, que se dá no âmbito da ideologia e do inconsciente, atua em prol do esvaziamento do social e do político como fatores estruturantes da luta desse povo. Isto é, esse esvaziamento resulta na identificação do sujeito com a formação discursiva que o determina. Em consonância com a nossa colocação está a afirmação de Pêcheux (1988, p. 163), “O sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina.”
Assim sendo, o modo de funcionamento dos enunciados (as palavras de ordem do movimento, bem como a fragmentação em gêneros) apaga da luta do povo indígena a sua condição de classe e sua vinculação com as demandas por distribuição de riqueza (demandas econômicas), fazendo da luta (luta por “reconhecimento”) uma demanda autônoma, no máximo, identitária, dissociada da questão da exploração e distribuição da riqueza e fora da totalidade concreta social (formação social capitalista), transformando ainda essas demandas de meios em fins da ação reivindicatória.
Em síntese, estamos diante de um movimento social que reivindica reconhecimento da mulher e denuncia a violência, mas, contraditoriamente, silencia sobre o seu problema geral: a sociedade capitalista da qual fazem parte e é responsável pelo genocídio do povo, também silenciado. Como vimos, o silenciamento não é só sobre o genocídio, mas a opressão e exploração capitalistas que gera a violência contra a mulher e todo o povo indígena.
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Data de Recebimento: 09/04/2025
Data de Aprovação: 24/09/2025
1 Ao formular essa primeira modalidade, Pêcheux permanece em confluência com a elaboração althusseriana.
2 O homem indígena também vem sofrendo violência ao longo da história (assassinato e desaparecimento forçado), mas, de acordo com o discurso da estatística, as mulheres são as mais vitimadas de toda a totalidade concreta do povo indígena.
3 A pobreza vem sendo produzida historicamente pelo próprio sistema de exploração colonial e, na atualidade, pelo sistema capitalista neoliberal.
4 Enquanto uma parte da população indígena foi dizimada, uma outra foi expulsa de suas terras e conduzida às reservas, que são terras improdutivas, geralmente territórios áridos, inférteis e isolados dos centros urbanos. Ou seja, as terras em que os nativos viviam foram roubadas, sendo expulsos para as ditas reservas. Nelas faltam todo o tipo de estrutura: emprego de qualidade, sistema de transporte funcional, segurança, entre outros. A propósito, um dos fatores de riscos que tornam os indígenas vulneráveis às inúmeras violências citadas por Hill, Matthew Anderson e King (2020) está nas caronas que os indígenas, em especial as mulheres, pegam para poderem se deslocar das reservas para os centros urbanos.
5 No caso do desaparecimento das mulheres indígenas, grande parte não é encontrada.
6 Embora seja uma crise que dura há anos, não se tem o número exato de indígenas afetadas (isso vale também para o gênero masculino).
7 O método dialético é concebido em oposição à ‘ciência burguesa’. O primado da totalidade sobre as partes que a compõem se opõe a esta ciência que busca apreender os fatos sociais meramente pelos seus aspectos fragmentados. O esforço para apreender a totalidade em seus fundamentos concretos resulta do ponto de vista da classe com base em uma dialética materialista: “O materialismo dialético engloba o materialismo histórico. Considera o universo como um todo, formado de matéria e movimento.” (Orlandi, 2016, p. 71)
8 No site oficial, lemos o seguinte trecho sobre o símbolo/logo do movimento: “A red hand over the mouth has become the symbol of a growing movement, the MMIW movement. It stands for all the missing sisters whose voices are not heard. It stands for the silence of the media and law enforcement in the midst of this crisis. It stands for the oppression and subjugation of Native women who are now rising up to say #NoMoreStolenSisters”.
9 Em sua potência significante (Lagazzi, 2021), a pintura da mão vermelha no rosto mostra, por meio da discursividade artística, o horror de suas ausências.
10 Nota-se um apagamento do gênero masculino, que também são vítimas de violência como assassinatos e desaparecimentos forçados, embora com menor incidência que as mulheres.
11 Disponível em: https://smokymountainnews.com/archives/item/33863-silent-no-more-native-communities-call-for-end-to-crisis-of-missing-and-murdered-indigenous-women Acesso em: 01 nov. 2024.
12 Voltaremos a essa questão mais adiante.
13 Disponível em: https://wtip.org/member-of-missing-and-murdered-indigenous-women-task-force-talks-with-wtip/ Acesso em: 22/10/2024.
14 No enunciado “Am I next?”, cabem os seguintes questionamentos: Para quem a pergunta é feita? Para a sociedade civil? O Estado capitalista? Seus representantes (banqueiros, grandes corporações, latifundiários)? O povo indígena? Os sujeitos não nativos? Às autoridades policiais?
15 I am not (will not be) the next one to be murdered or stolen (versão minha do português).
16 Disponível em: www.gettyimages.com.au. Acesso em 01. Nov. 2024.
17 O massacre do povo indígena em diferentes épocas da história tem mostrado que a questão agrária sempre foi (e ainda é) uma questão na América do Norte. Mesmo com a chegada do capitalismo nesses países, que tem pregado o discurso da igualdade para todos, na prática, não é o que acontece. O capitalismo baseia-se na exploração e na diferença das classes. Os indígenas estão obviamente do lado explorado e oprimido desse sistema socioeconômico.
18 Uma vez que o Canadá não teve uma reforma agrária formal – diferentemente dos EUA –, o processo de colonização e o modo como as terras foram tratadas e distribuídas ao longo da história impactaram a estrutura fundiária e as questões sociais vinculadas à posse de terras. O tema das terras e sua redistribuição continua sendo relevante, em especial no que diz respeito aos direitos das comunidades indígenas (Lucchesi, 2022).
19 O próprio da sacralidade é estendido à mulher indígena. Assim, na lógica discursiva do movimento MMIW, “mulher indígena” (women / sisterhood) e “sacralidade” (sacred) formariam uma só classe por um efeito de generalização típico de formulações que constroem (efeitos de) verdades universais.
20 Do ponto de vista material, o assassinato e/ou desaparecimento forçado do homem indígena é tão importante e grave quanto o assassinato e/ou desaparecimento da mulher indígena. Quando a luta é fundada na lógica polarizadora do identitarismo pós-moderno, acaba-se esvaziando o projeto socialista, abandonando assim qualquer perspectiva verdadeiramente revolucionária e emancipadora.
21 No caso dos homens, o silenciamento é duplo: pelo sistema que gera a violência e pelo próprio movimento de luta.
22 Há vários aspectos que tornam a realidade do povo indígena vulnerável: emprego, moradia, alimentação, segurança, transporte. Como vimos, nenhum desses problemas é apontado pelo movimento MMIW nas manifestações.
23 Tal silenciamento pode ser explicado: os indígenas foram vítimas de um violento apagamento histórico que, pelo visto, continua ressoando e constituindo a memória discursiva desse povo.
24 Além de “genocide”, há o silenciamento de expressões como “sexual exploitation”, “drug trafficking” e “human trafficking”.
25 Massacre de um povo.
26 Pós-doutorado em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Pós-doutorado e doutorado em Linguística Aplicada e mestrado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. É docente associada IV do campus Lagoa do Sino da UFSCar, além de atuar como professora colaboradora no Programa de Pós-graduação em Linguística da UNEMAT. E-mail: ilka.mota@ufscar.br.