Um corpo autêntico: Reflexões acerca da transexualidade a partir de Tudo sobre minha mãe de Almodóvar


resumo resumo

André Cavalcante
Vanise Medeiros




Registrar, com o auxílio de uma câmera,


corpos que se relacionam em um espaço,


eis a definição dessa organização formal


chamada cinema.


Antoine de Baecque, 2009


 


 


(...) jamais o corpo humano conheceu transformações


de uma grandeza e de uma profundidade semelhantes


às encontradas no decurso do século que acaba de terminar.  


Courtine, 2009

 

Olhem só que corpo!

 

“Como eu estava dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas, não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma.”[1]. Um enunciado que marca, na virada do século, um debate sobre corpo, sobre gênero, sobre sujeito, sobre desejo. Um enunciado em uma cena que nos interessa como gesto de análise para este artigo: a cena da personagem Agrado, no filme de Almodóvar, de 1999, Tudo sobre minha mãe. Como tantos outros filmes do diretor, este não nos deixa menos reflexivos ao tocar em temas tão caros à época e que se fazem presentes mais de duas décadas depois. Um clássico, diríamos, afinal, como nos lembra Calvino, “um clássico é um livro [assim como um filme] que nunca terminou de dizer aquilo a que veio” (CALVINO, 1993, p. 11).

Em Tudo sobre minha mãe, temos como alguns dos eixos temáticos transexualidade, AIDS/HIV, identidade de gênero, religiosidade, morte e maternidade, os quais, no decorrer da trama, se imbricam na vida das personagens femininas como Manuela, Rosa, Agrado e Huma Rojo. As quatro se encontram, constroem seus diferentes laços, a partir de um só nome, Esteban. Nome distintos personagens que, mesmo coadjuvantes, propulsionam e costuram o encontro dessas mulheres.

A fim de situar o enredo, Esteban é o filho de Manuela com Lola (Esteban antes da transição de gênero). Esteban, jovem de 17 anos vai, em seu aniversário, assistir com a mãe à peça Um bonde chamado desejo, encenada pela atriz Huma Rojo. Na saída do teatro, ele morre em um acidente e sua mãe retorna a Barcelona para encontrar Lola e lhe contar sobre seu filho. São vários os reencontros. Antes daquele com Lola, há um outro com Agrado, uma travesti e prostituta, também amiga da freira Rosa. Estão postos os entrelaçamentos entre as personagens; está sendo tecida a trama. Sendo breve, a freira Rosa, que se descobriu grávida de Lola, morre vítima de AIDS, contaminada pelo HIV na curta relação que teve com Lola. Como Manuela já estava muito próxima e cuidando de Rosa, após sua morte, o filho desta, também chamado de Esteban, fica aos seus cuidados. Manuela, por sua vez, após a morte do filho, descobre que a peça encenada por Huma estava em Barcelona. Movida pelo desejo de reencontrar a atriz e a peça, a qual ela já tinha encenado quando jovem, Manuela arranja uma forma de trabalhar para Huma. Essa estratégia, no entanto, é feita sem que as atrizes da peça saibam, a princípio, que indiretamente a passagem de Um bonde por Madri tenha alguma relação com a morte do jovem Esteban. O encontro entre essas quatro mulheres se dá, em suma, entre lágrimas, risadas, discussões, carinhos e cuidados mútuos. Unidas por vidas secundárias na trama; unidas pelo nome Esteban. Um nome que, em dicionários de nomes, significa “coroado”.  Se não se constitui como figura de destaque no filme, funciona como uma presença-ausência, na maior parte do tempo. Dele se fala; a partir dele se desenrola a trama, as tensões, as histórias, a vida.

Neste filme, uma cena nos interessa sobremaneira. Ela diz respeito ao momento em que a personagem Agrado se apresenta no palco do teatro para avisar que a peça a qual ela ajudava a organizar, substituindo o emprego de Manuela, teria sido cancelada. Ao informar, diante da plateia, que duas atrizes da peça não poderiam participar naquela noite, Agrado se desculpa e tenta entreter os telespectadores[2].                                    

Tomamos, então, como objetivo mais amplo refletir sobre corpo, transexualidade e resistência a partir desta cena emblemática. Embasados teórica-metodologicamente pela Análise do Discurso materialista, nossa proposta se divide em três partes, cujos títulos, assim como o desta introdução (Olhem só que corpo!), advêm de enunciados do filme ou com ele têm relação. São pois, Um bonde chamado transgeneridade, na qual discutimos a temática da transgeneridade; Tudo sobre o corpo, na qual discutimos a noção de corpo, ambas as partes em gesto teórico-analítico, e, por fim, Tudo sob medida, na qual inscrevemos um efeito de fechamento das discussões aqui empreendidas.

 

Um bonde chamado transgeneridade

Gênero, corpo, sexualidade parecem ser temáticas transversais na obra fílmica de Almodóvar, seja em La mala Educación (2004), em La piel que habito (2011), em Todo sobre mi madre (1999), entre outros. Aqui nos atemos a este último e focamos no monólogo de Agrado a fim de pensarmos sobre transgeneridade e resistência a partir de corpo. Partimos da reflexão de que a transgeneridade designa “as inconformidades de gênero experimentadas e vivenciadas por pessoas transgêneras, travestis, transexuais, dentre outras identidades possíveis [...]” (BAGAGLI, 2016, p. 89).     

Na cena em questão, a personagem identifica-se como travesti, um gênero inconforme em relação às normas cisheteronormativas, as quais identificam pessoas cisgêneras e heterossexuais como sendo o padrão socialmente aceitável. Inconforme também é a leitura que fazemos de Agrado, no sentido de dar espaço para se ler um significante que se repete ao longo do filme: autêntica.

Durante algumas cenas, Agrado questiona a violência pela qual a travesti passa ao se prostituir, se inquietando com o lugar da prostituição como uma das poucas possibilidades daquele corpo sobreviver. Ela também põe questões para novos colegas de trabalho. Ela os leva a refletir sobre a hipersexualização dos corpos travestis e a consequente invasão de seus corpos, quando, por exemplo, pedem para que se faça sexo oral, quando tocam seus seios sem sua permissão, quando, enfim, tomam seu corpo em um como-se-tudo-fosse-permitido-por-ser-uma-travesti. O espectro da prostituição ronda a travesti, ainda que tenha, como no caso de Agrado, conquistado um trabalho que não seja aquele da prostituição. Um imaginário de sexo fácil é projetado sobre esta, num jogo argumentativo na nossa formação social que a coloca na posição de desde-sempre-já-prostituta.                  

Aqui, ao trazermos a transgeneridade, fazemos, inevitavelmente, uma relação com a cisgeneridade que se caracteriza como a forma pela qual os sujeitos se identificam com o gênero o qual foram designados, ao nascer, pelas tecnologias médico-jurídicas. Já a transgeneridade, como indicamos brevemente,

 

“é uma espécie de termo ‘guarda-chuva’, ou seja, abriga em si as várias identidades trans, como travestis, transexuais e pessoas não-binárias, por exemplo. Mas não é fácil traçar limites rígidos que separem essas várias identidades, por isso pode acabar estabelecendo novas normas de como a pessoa deveria ser, o que volta a segregar quem não se encaixar. A luta é para que cada pessoa tenha o direito de experimentar, de ir atrás de descobrir quem é, e que possa viver da forma como se entender, como melhor se sente, sem ser discriminada por isso, segregada, vendo seu direito à vida, à família, ao estudo e ao trabalho posto em risco. Afinal, nada mais libertador do que poder se olhar no espelho e amar o que se vê.” (MOIRA; NERY; ROCHA; BRANT; 2017, p. 10)

 

Como estes autores, também entendemos a transgeneridade como um termo que abarca distintas identificações de gênero. Essas identificações/identidades, para nós, são construídas discursivamente na/pela linguagem. Além disso, como discutem Moira, Nery, Rocha e Brant (2017), não há um limite rígido entre as várias identidades[3] de gênero, assim como diversas subjetividades são possíveis quando refletimos acerca da generificação dos sujeitos. Nos estudos de gênero, sobretudo na abordagem transfeminista, essas identificações se dão, socialmente, pela auto-identificação.

No filme, Agrado se coloca como travesti, no final dos anos 90, na Espanha. Hoje, pensando no Brasil, por exemplo, entendemos que há uma disputa de sentidos entre as designações “travesti” e “mulher trans”. Moira (2017), em outro texto seu, diz que estas são palavras em relação de sinonímia[4], mas que apresentam historicidades diferentes. A categoria de trans advém do discurso médico, enquanto a segunda ainda está associada ao campo da marginalidade, da prostituição e da exclusão social. O ponto fulcral na discussão da autora é que esta distinção não é pertinente no campo dos estudos de gênero, sobretudo no transfeminismo, porque pode implicar em discussões biologizantes instituindo uma separação de gênero a partir de (não) intervenções cirúrgicas no corpo. Assim, aqui levaremos em consideração a forma pela qual esses sujeitos se designam. Voltemos a Moira, Nery, Rocha e Brant (2017). Estes dizem da forma pela qual os sujeitos se designam (um efeito de auto-identificação) e apontam que não há nada mais libertador que se olhar no espelho e amar a sua imagem. A nossa personagem, em Todo sobre mi madre, parece portar essa máxima por todo seu percurso. Agrado se constrói, se produz, move as estruturas da sociedade e, através de seu corpo trans, produz um estilhaçamento no rito de interpelação ideológica do gênero, desestabilizando, por onde circula na trama, as evidências ideológicas do que é ser homem, mulher. Ao transitar pela cidade, pelas artes, pelo subúrbio, com sua forma de ser, a personagem fissura a malha social, produzindo resistência, como na cena na qual nos debruçamos e que adiante descrevemos.

Como dito na introdução, a nossa personagem travesti, por sugestão de Manuela, a substitui na função de secretária da atriz Huma, na peça encenada em Madri. Em uma das brigas do casal Huma e Nina, atrizes de Um bonde chamado desejo, as duas ficaram impossibilitadas de comparecerem no teatro e não houve tempo de avisarem ao público ou de cancelar a peça. Muitos espectadores já aguardavam na plateia. Agrado entra, então, em cena, no palco, para avisar do cancelamento da apresentação do dia. Eis um print da cena e, em seguida, o monólogo de Agrado:           

 

Imagem 1[5] - Cena do monólogo de Agrado


 


“Cancelaram o espetáculo. Aos que quiserem será devolvido o ingresso. Mas aos que não tiverem o que fazer e já estando no teatro, é uma pena saírem. Se ficarem, eu irei diverti-los com a história de minha vida. Adeus, sinto muito [aos que estão saindo]. Se ficarem aborrecidos, ronquem, assim RRRRR. Entenderei, sem ter meus sentimentos feridos. Sinceramente. Me chamam Agrado, porque toda a minha vida sempre tento agradar aos outros. Além de agradável, sou muito autêntica. Vejam que corpo. Feito à perfeição. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Um desperdício, porque numa briga fiquei assim [mostra o desvio no nariz]. Sei que me dá personalidade, mas, se tivesse sabido, não teria mexido em nada. Continuando. Seios: dois, porque não sou nenhum monstro. Setenta mil cada, mas já estão amortizados. Silicone... ¾ Onde? [Grita um homem da platéia]. Lábios, testa, nas maçãs do rosto, quadris e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocês, pois eu perdi a conta. Redução de mandíbula, 75 mil. Depilação completa a laser, porque a mulher também veio do macaco, tanto ou mais que o homem. Sessenta mil por sessão. Depende dos pêlos de cada um. Em geral duas a quatro sessões. Mas se você for uma diva flamenca, vai precisar de mais. Como eu estava dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas, não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma.”[6]


 

A cena se abre com risos, vaias e gargalhadas. Com o transcorrer do monólogo, o riso inicial do escárnio vai cedendo espaço a outra ordem de riso, aquele da ironia, no jogo dos sentidos, produzida por Agrado. Uma cena, diríamos, prototípica, conforme Lagazzi (2015), isto é, uma cena que nos coloca diante da divisão de sentidos em uma sociedade e que nos dá a ver a resistência se fazendo no intradiscurso e promovendo movência no interdiscurso[7]. Do rir de Agrado passa-se ao rir com ela: outro lugar que também diz de si na relação com a alteridade. Seu monólogo vai retirando a travesti do lugar da zombaria, da troça, do ridículo, da não normatividade, através de um discurso que se sustenta em uma reflexão sobre a construção do corpo. Está em cena o estatuto do corpo na nossa sociedade. Está em cena sua construção. Está em cena corpo como desejo; corpo como identificação do desejo. Está em cena um corpo autêntico. 

 

Tudo sobre o corpo

De imediato, é preciso dizer que entendemos corpo como lugar de observação do sujeito, objeto de investigação e categoria teórica (LEANDRO-FERREIRA, 2015), sendo, portanto, atravessado de linguagem, uma vez que corpo e sujeito se constituem no registro do simbólico. Tratando-se de linguagem, corpo, gênero e sujeito produzem sentidos que podem se deslocar, escapar, romper com o já estabilizado, produzindo, assim, a resistência, uma vez que, “não há dominação sem resistência” e estas resistências são as falhas no ritual da interpelação (PÊCHEUX, 2009 [1978]). Pêcheux ainda nos lembra que “um ‘mundo semanticamente normal’, isto é, normatizado, começa com a relação de cada um com seu próprio corpo e seus arredores imediatos.” (1983 [2015], p. 34). Então, pelo corpo sentidos podem ser desestabilizados, ou seja, o corpo pode se opor aos universos logicamente estabilizados. Aí reside o funcionamento do monólogo de Agrado ao se contrapor a tais universos e denunciar seus equívocos ao dizer da construção de seu corpo, ao normatizar tal prática. Eis a força argumentativa de tal monólogo: a de confrontar sentidos postos como evidentes, a de denunciá-los como não sendo únicos e a de colocá-los em suspeição.

“O século XX inventou teoricamente o corpo”, nos avisa Courtine (2009). Ao que lembramos, o corpo tem historicidade, tem espessura ideológica; não é sem as injunções de sua temporalidade, de suas sociedades, das relações com o outro. Não é sem as condições de produção da qual fazem parte as instâncias político-econômicas e o imaginário sobre sujeitos que se tece a partir dessas instâncias. Quem (não) tem direito ao seu corpo seria uma das perguntas que o monólogo nos permite fazer. Mas não a única. Conforme, Pascal Ory:


 

“O ordinário dos corpos humanos se acha, por definição – entenda-se por delimitação –, submetido à influência do movimento geral das sociedades. Esse movimento, ao longo do século XX, é dominado, mais que por qualquer outra tendência, pelo recuo da configuração rural diante do urbano, um recuo que, no conjunto do período, pode ser assimilado a um desmoronamento. (ORY, 2009, p. 155)

 

Trata-se de um movimento que passa pela modelagem/modelização do corpo e que não é sem o urbano, que não é sem a cidade, que não é, acrescentamos, sem a luta de classes. que não é sem a disputa sobre gêneros. Em outras palavras, Ory vai nos trazer a entrada em cena, no século XX, de uma preocupação estética com o corpo que será sustentada por uma indústria cosmética e cirúrgica, ou seja, pelo mercado. Uma estetização dos corpos que retira, por exemplo, a maquiagem da ordem da falta de autenticidade para significar cuidado de si, revitalização, beleza, saúde. Uma mudança que se faz na pele – e aqui estamos jogando polissemicamente com o significante pele – e no interior dos corpos, seja na forma de dietas, seja na forma de cirurgia, para ficarmos com duas práticas que vão sendo instituídas e legitimadas:

 

Talvez, no fundo – quer dizer, na forma – a principal mudança aqui, seja, na escala do século, de ordem econômica, portanto social, com a constituição de redes de empresa especificamente dedicadas aos tratamentos de beleza, desde a produção até a comercialização. (ORY, 2009, p. 160)

 

A partir das mudanças que Ory vai indicando, o que consideramos importante pensar é que elas não se dão sem incidir sobre gêneros e classes sociais; não se fazem sem uma divisão histórico-social-ideológica que delimita certas práticas como pertinentes – e mesmo necessárias – a uns e não a outros. Que corpos podem mudar esteticamente olhos, maçãs de rosto e lábios? Que corpos podem aumentar seios ou colocar silicone nas nádegas? O que se pode e o que não se pode fazer em seu próprio corpo? Quem tem direito a mudar seu corpo? Em que condições? Estes são questionamentos que o monólogo põe em cena e que faz mexer o já-posto e o já-normatizado sobre corpos. A cena prototípica que destacamos lança, portanto, luz sobre tais divisões e injunções na sociedade. Nela, o significante autêntica rompe com um já-sempre-interditado a uns já-sempre-permitido a outros.

Ao pensarmos o que se pode fazer do/no corpo, que incide no embate sobre o que é público e privado na divisão histórico-social-ideológica sobre gêneros e corpos, recuperamos, para nossa reflexão, o livro Viagem[8] solitária, de João W. Nery (2011), no qual o autor narra sua trajetória como o primeiro homem trans brasileiro. Um homem que viveu anos na ilegalidade uma vez que a redesignação sexual não era uma cirurgia permitida no país. Enquanto Nery fazia intervenções para diminuir o tamanho dos seios, não havia problemas; isto lhe era permitido, assim como é permitido às mulheres. Estava, pois, em jogo, por um lado, o não reconhecimento de Nery como homem, por outro lado, uma cirurgia permitida e tornada prática para um universo feminino. Contudo, quando, por volta de 1977, o narrador conheceu o que significava transexualismo e quis fazer cirurgia de retirada completa de mamas e uma neouretra, ou seja, cirurgias que não se enquadravam mais naquelas normatizadas para corpos femininos, isto lhe foi interditado legalmente. Posta como doença pela medicina, eram necessários laudos psiquiátricos que atestassem a condição transexual. E, ainda assim, no Brasil, a cirurgia não era possível por não ser legalizada. Para Nery, primeiro homem trans brasileiro a embarcar em uma série de cirurgias pioneiras no país, tornando-se um marco na militância trans do Brasil (NERY, 2017), como para tantos outros, o caminho foi a ilegalidade; foi ir em busca de quem fizesse tais cirurgias de forma clandestina, isto é, sem o aval da medicina e do Estado.

Interdição ao corpo, interdição do desejo, interdição da sexualidade, eis alguns pontos sensíveis em nossa sociedade. Indo adiante, diríamos que são pontos que o significante autêntica faz estremecer sentidos, ou melhor, os faz mover. Não se trata mais de uma autenticidade que signifique original como inalterado. Trata-se de fazer pensar o que seria um corpo sem alterações. Para além de fazer refletir quem pode e como alterar seu corpo, como dissemos acima, trata-se de fazer autêntico significar como original, porque se constrói como tal e não por ser origem; de fazer significar como legítimo, porque ser seu. Trata-se de retirar a censura a gêneros e de desinterditar corpos.

Ser autêntico é, pois, estar em conformidade com seu gênero, corpo e desejo. Não à toa este é um significante que percorre o filme. E com ele a questão da construção do corpo. Mas não apenas neste filme. Em outros, nos quais, como este, a transexualidade está em foco, também se fazem presentes enunciados que põem em cena questões relacionadas às interferências no corpo. Por exemplo, em Paris is burning, um documentário norte-americano, dos anos 90 sobre a comunidade LGBTI[9] dos anos 80, escutamos: "Comprei os seios para ela, eu paguei por eles." dito por um dos filhos de Angie Xtravaganza, mãe da House Of Xtravaganza. Já em Pose, uma série norte-americana para tv, de 2018, sobre tal comunidade, mas também remontando ao cenário LGBTI negro nas décadas de 1980 e 1990, há um enunciado proferido pela personagem Aphrodite, da House of Extravaganza, à Elektra, mãe da House of Abudance, para encorajar a colega a fazer a cirurgia de redesignação sexual: “Nós nos criamos”.

Paris is Burning e Pose dão a saber da formação de comunidades de pessoas LBGTI nos Estados Unidos, numa época em que a militância estava no começo de sua organização, coincidindo com o auge da epidemia do HIV/AIDS no mundo. A partir desta epidemia diversos discursos higienistas e de demonização dessa comunidade crescem fortemente. Tanto no documentário/filme como na série, por conta da expulsão desses sujeitos da casa de suas famílias biológicas, e pela sua marginalização, outros laços foram criados, que não os biológicos.  O “Nós nos criamos” se abre, diríamos, para um jogo polissêmico em que tanto o corpo é algo a ser criado, modelado, construído, quanto os laços familiares. “E corpos podem criar e serem criados. Dessa forma nunca houve confusão, mas sim um corpo que (se) cria.” Afirma Marinho (2019, p.13) sobre seu processo de transição.

Com efeito, voltando aos filmes e à série, sujeitos se uniam em comunidade, criando uns aos outros e casas eram construídas. Tratava-se de grupos de pessoas que se cuidavam, se protegiam, formando uma família, adotando, inclusive, como sobrenome aquele criado pela mãe da casa, por exemplo, Xtravaganza ou Pendavis se tornaram sobrenomes para aqueles que constituíam a House of Xtravaganza ou a  House of Pendavis, em Paris is Burning, Evangelista ou Abundance, para aqueles membros da House of Evangelista e House of Abundance, em Pose. Além de compartilhar vidas, lutas e conquistas, as casas participavam da competição de bailes, onde havia batalhas de vogue e diversas categorias de desfiles nas quais os corpos poderiam ser reinventados, modelados, montados. Assim, nessas intervenções no corpo, há também a possibilidade de se comprar seios, pagar por eles, como no enunciado de Paris is Burning, ou, como nos fala Agrado, de Tudo sobre minha mãe, a possibilidade de realizar diversas cirurgias, construindo um corpo com o qual ela sempre sonhou.

“Os sentidos funcionam por paráfrase”, nos lembra Orlandi (2001, p. 166). Os enunciados “Como eu estava dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas, não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma”, "Comprei os seios para ela, eu paguei por eles." e “Nós nos criamos”,  de, respectivamente, Tudo sobre minha mãe, Paris is Burning e Pose, em rede parafrástica, dizem respeito a como os sentidos sobre o corpo podem ser deslocados daqueles normativizados pelos dizeres da biologia. Ser autêntico é mover-se pelo desejo que faz falar o corpo, é produzir resistência, suscitando sentidos que destoam e equivocam a cisheretonormatividade no fio do discurso. No deslizamento dos sentidos, corpos, sujeitos também se movem. No movimento, as amarras sociais podem se esfacelar.

 

Tudo feito sob medida!

Partimos de um enunciado em que nos ativemos a um significante “autêntica”. Ele nos permitiu uma reflexão sobre corpo e transgeneridade, nos dando pistas sobre um deslocamento em curso: aquele que retira da censura, da interdição, da leitura de doença a construção de um corpo em consonância com desejo. Esse enunciado nos levou a outros na mesma chave parafrástica em outros registros fílmicos. É hora de voltar a ele, ou melhor, queremos recuperar algo que o cerca e o introduz: “custa muito ser autêntica”. Custa muito... Não se trata somente de custos financeiros (embora se trate também de tais custos), ser autêntica custa trabalho, custa tempo, custa muito. Custa não viver em desacordo com o corpo, não abrir mão do desejo. Custa, indo além, não abrir mão de uma vida possível, uma vida legítima e autêntica. 

Uma cena breve, que se abre com a câmera mostrando o público de costas (e nos colocando junto a ele e como tal) diante de uma travesti. As lentes vão se fechando sobre ela e vamos sendo impelidos a olhar e a ouvir um dizer que se faz parecer trivial, banal. Mas não o é. Esta cena emblemática põe sob holofotes a tomada de palavra de uma travesti de cujo monólogo se produz um rearranjo sobre corpos na nossa contemporaneidade. E por ela somos instados a uma densa, sólida e necessária reflexão sobre nós mesmos e sobre os outros.

Tudo sobre minha mãe, um título polissêmico que pode produzir o efeito de algo autobiográfico ou de abrir para qualquer mãe. Em Conversas com Almodóvar, obra de Strauss (2008), Almodóvar nos fala que as mães retratadas em seus filmes são todas baseadas em sua própria mãe. Todas em tudo... No filme em questão, tal título é também o nome que Esteban dá ao conto que está escrevendo em seu inseparável caderno de notas. Entretanto, com a morte repentina dele, seu conto fica incompleto. Um belo jogo, diríamos, nos acena este conto em suspensão. Um pronome indefinido “tudo” que substitui algo da ordem da incompletude, do impossível de escrever/inscrever, do que nos escapa. Um tudo que não é tudo porque não se acaba de dizer, porque não é possível tudo dizer, diremos do lugar da análise de discurso materialista. O que faltaria, então, dizer sobre Manuela ou sobre as mães? Eis-nos diante da impossibilidade da completude. Eis-nos diante da incompletude como a medida do desejo e da possibilidade de movência dos sujeitos, dos sentidos, dos corpos. Eis-nos diante destes que se (re)inventam na discursividade equivocando sentidos já-postos sobre os gêneros.

 

Referências

 

BAECQUE, Antoine. Telas – o comporo no cinema. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar: o século XX; RJ: Petrópolis, 2009.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. SP: Companhia das Letras, 1993.

BAGAGLI, Beatriz P. Periódicus, Salvador, n. 5, v. 1, Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidade, maio-out. 2016.

COURTINE, Jean-Jacques. Introdução. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques;

VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar: o século XX; RJ: Petrópolis, 2009.

GONZALES, Clarissa; MOITA-LOPES, Luis P. da. Performance narrativa multimodal de Agrado em Tudo sobre minha mãe: desarticulando a autenticidade de gênero. Revista Brasileira de Linguistica Aplicada, v. 16, p. 679-708, 2016.

LAGAZZI, Suzy. “paráfrases da imagem e cenas prototípicas: em torno da memória e do equívoco”. In: FLORES, Giavanna G. Benedetto Flores; NECKEL, Nádia Régia Maffi; GALLO, Solange Maria leda (orgs.), Análise de discurso em rede: cultura e mídia, campinas, Pontes, 2015.

LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina. Discurso: conceito em movimento. In: LEANDRO-FERREIRA, M. C. Oficinas de Análise do Discurso: Conceitos em Movimento. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.

PÊCHEUX, M. (1975/1978) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

PÊCHEUX, M. (1983) O discurso: Estrutura ou acontecimento. 7ª ed., Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.

MARINHO, Muriel. (Des)conhecer. In:  MILANEZ, Milton; AMARAL, Ricardo; MOURA, Ismarina. Transexualidades: o que pode o corpo? João Pessoa, PB: Marca de Fantasia, 2019.

MOIRA, Amara. (2017). Travesti ou mulher trans: tem diferença? In:  https://midianinja.org/amaramoira/travesti-ou-mulher-trans-tem-diferenca/ (Acesso 29/04/2020)

MOIRA, Amara; Nery, João W.; Rocha, Marcia; Brant, Tarso. Vidas Trans. Bauru, SP: Astral Cultural, 2017.

NERY, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Leya, 2011.

NERY, João W. In: MOIRA, Amara; Nery, João W.; Rocha, Marcia; Brant, Tarso. Vidas Trans. Bauru, SP: Astral Cultural, 2017.

ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORY, Pascal. “O corpo ordinário”. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar: o século XX; RJ: Petrópolis, 2009.

STRAUSS, Fredecric. Conversas com Almodóvar. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

 


Data de Recebimento: 19/05/2020
Data de Aprovação: 22/06/2020

 

[1] No original: “Bueno, lo que les estaba diciendo, que cuesta mucho ser auténtica, señora... Y en estas cosas no hay que ser arcana porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma.”

[2] No livro Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, Almodóvar relembra Um bonde chamado desejo, uma peça teatral do dramaturgo norte-americano Tennesse Willams, de 1947. Em seus filmes, várias situações do dia a dia são incorporadas, assim também como referências do mundo das artes, sobretudo da próprio fazer fílmico, como percebemos, por exemplo, em La Mala Educación, de 2004, ou em Dolor y Gloria, de 2019. Em Tudo sobre minha mãe, temos ainda um outro exemplo: há uma dedicatória a atriz Bette Davis, e o filme Malvada (1950), drama norte-americano de Joseph L. Makiewicz, encenado por tal atriz, é assistido por Manuela e seu filho Esteban no começo da trama. Assim, trechos, enunciados, referências, tanto da peça de Willams como do drama de Makiewicz comparecem e se (con)fundem no filme de Almodóvar. Além disso, como apontam Gonzalez e Moita Lopes (2016, p. 694), retomando Manzano (2010), o monólogo de Agrado recupera e, diríamos, ressignifica, algo que ocorreu com Lola Membrives, atriz argentina. Informada de que uma falha no sistema elétrico do teatro a impediria de encenar seu espetáculo, decide, iluminada por uma vela, cumprimentar o público e dar-lhes satisfação. É a arte almodovariana bebendo das inúmeras fontes que a vida apresenta para transformar em outras formas de vida.

 

[3] Em Análise do Discurso, identidade é pensada como um efeito discursivo que se dá na movência dos sentidos promovendo identificação, contra-identificação ou desidentificação com determinadas regiões de sentidos na história. 

[5] Para este artigo, fizemos um print screen, captura de tela, da cena em questão que ocorre em 1:16:38 min do filme.

[6] Transcrição disponível no seguinte blog: http://allrightmrsdemille.blogspot.com/2008/01/tudo-sobre-minha-me-1999.html, acesso em 20/04/2020.

[7] Aqui o interdiscurso está sendo compreendido como memória do dizer, conforme Orlandi (2001, p. 90) e intradiscurso, continuando com Orlandi, como formulação (idem), ou seja, linearização no fio do discurso.

[8] Bonde, viagem, trajetória, assim como embarcar são significantes utilizados nesse trabalho que jogam com a ideia de movimento, de movência, como ocorre com os sentidos do prefixo trans: para além de, através, para trás...

[9] LGBTI é uma sigla que reúne o grupo de sexualidades – Lésbicas, Gays e Bissexuais; Identidades de gêneros – Trans (travestis, transexuais, transgêneros, não-binários, entre outras) e a condição biomorfológica -  Intersexual, tidas como fora do padrão cisheteronormativo.