Gentrificação, mídia e poder simbólico: reflexões sobre o consumo do espaço urbano mercantilizado


resumo resumo

João Flávio Menezes Amaral
Isadora Meneses Rodrigues



1.Introdução

 

Desejamos lançar mão de teorias da comunicação, da sociologia do consumo e dos estudos urbanos com o intuito de propor uma reflexão de natureza interdisciplinar acerca de um importante fenômeno observado contemporaneamente em cidades ao redor do globo: a gentrificação.

A cidade é um fenômeno complexo que se torna uma construção demasiado reduzida da totalidade de suas propriedades e relações sempre que objetivado em recortes disciplinares específicos. Frequentemente privilegiadas enquanto categorias de análise nos estudos urbanos, o Capital e o Estado como forças modeladoras do espaço ofuscam a compreensão da cidade em sua condição ambivalente de locus e opus dos indivíduos, das práticas sociais, econômicas e culturais cotidianas, assim como das representações e discursos, das teias complexas de sentido que mediam as relações entre os homens e o mundo.

O geógrafo brasileiro Marcelo Lopes de Souza (2014, p.148) defende a necessidade de evitar considerar unicamente a sociedade e seus espaços a partir de uma “visão de sobrevoo”, típica do aparelho de Estado. Mesmo a tradição da geografia crítica tende a enfatizar excessivamente “as estruturas em detrimento dos agentes, a economia e o trabalho em detrimento do imaginário e até mesmo, em grande medida, do poder” (ibid., p. 149). Já o geógrafo inglês Tom Slater (2015, p.3, tradução nossa) aponta questões semelhantes ao denunciar que “os estudos urbanos são dominados pelas tradições da ecologia humana da Escola de Chicago e das análises político-econômicas marxistas ou weberianas”, afirmando que estas desprivilegiam a dimensão simbólica de processos urbanos, impedindo, por exemplo, que a pobreza ou a marginalização possam ser entendidas via “escrutínio intenso da difamação simbólica de particulares lugares urbanos”.

Existem, entretanto, possibilidades diversas de resposta a esses anseios teórico-metodológicos. Esse repertório de possibilidades certamente pode ser enriquecido por articulações entre os estudos em comunicação e consumo e os estudos urbanos de forma a tentar compreender a transformação socioespacial da cidade sem perder de vista nem sua dimensão simbólica, nem sua dimensão espacial e econômica. A cultura, afinal, como observa Sharon Zukin (1995), também é um eficiente meio de configuração da cidade a partir de linguagens de exclusão e pertencimento a determinados sítios.

Se compreendemos que o domínio da cultura contemporânea é profundamente influenciado pela difusão e enraizamento das mídias nas relações sociais, que o acesso ativo aos meios de comunicação de massa é um recurso desigualmente apropriado socioespacialmente e que estes são eficientes modeladores das representações do espaço que antecedem e influenciam a experiência urbana, podemos refletir sobre como a ampliação das possibilidades de exercício de poder simbólico –que Pierre Bourdieu (2001) define como o poder de impor sentidos compartilhados ao mundo por meio da linguagem – se relaciona com a reprodução de capital econômico a partir da produção do espaço urbano. Ademais, podemos estender a reflexão sobre como essa tríplice relação atravessa a fabricação discursiva de lugares, reconfigurando em favor da mercantilização da cidade a complexa colcha de retalhos de identidades socioespaciais que cobre o espaço urbano socialmente fragmentado.

Refletiremos sobre a gentrificação, portanto, como um fenômeno mobilizador não apenas de capital e populações urbanas, mas também de sentidos atribuídos ao espaço. Comecemos por algumas questões fundamentais: o que é a gentrificação, quais são as principais abordagens teóricas desse fenômeno no âmbito dos estudos urbanos e como são colocadas podem ser colocados em um diálogo proveitoso.

 

2.Oferta ou demanda: as principais abordagens da gentrificação e suas possibilidades de diálogo

 

O conceito de gentrificação foi cunhado em 1964 pela socióloga Ruth Glass na introdução da coletânea London: aspects of change, na qual a autora registrou a observação de alterações do perfil demográfico de áreas residenciais operárias em Londres:

 


Uma a uma, muitas das vizinhanças operárias de Londres têm sido invadidas pelas classes médias – altas e baixas. Gastos e modestos casebres e chalés – dois cômodos por andar – foram tomados, quando seus contratos de aluguel terminaram, e se tornaram elegantes e caras residências. Grandes casas vitorianas, adaptadas em períodos anteriores ou recentes – utilizadas como pensões ou com múltiplas ocupações – foram renovadas novamente. (...) Uma vez que esse processo de ‘gentrificação’ começa em um distrito, ele procede rapidamente até que toda ou a maior parte dos ocupantes de classe operária originais sejam deslocados e toda a feição social do distrito se altere. (GLASS, 1964, p. xviii, tradução nossa)

 

De maneira geral, o termo se refere à transformação de áreas ocupadas por classes trabalhadoras em áreas de uso destinado às classes médias ou altas, resultando no deslocamento gradativo ou súbito dos ocupantes originais como consequência do aumento de preços de alugueis e custo de vida ou da violência estatal sob forma de despejos, remoções ou realocações coercitivas.

Contrariando modelos de crescimento vigentes em meados do século XX – que presumiam a expansão da cidade para fora de seus limites por meio da suburbanização – Glass começava a perceber o desenvolvimento urbano sobre o próprio tecido consolidado da cidade.  Esse processo se desenvolve, frequentemente, por meio da valorização de áreas via projetos de revitalização, requalificação ou regeneração urbanas, que engendram a associação entre poder público e iniciativa privada na reprodução de capital por meio da reconfiguração da cidade em detrimento das necessidades de comunidades residentes nas áreas-alvo dessas intervenções. Slater (2011, p. 572, tradução nossa) enfatiza que o conceito de gentrificação “captura as desigualdades de classes e injustiças criadas pelos mercados e políticas públicas de terras urbanas” e enfatiza os arranjos institucionais da propriedade privada e do livre mercado como fatores que favorecem “a criação de ambientes urbanos que servem às necessidades de acumulação do capital em detrimento das necessidades sociais de moradia, comunidade e família”.

Embora a mediação entre terra e sociedade pelo binômio Capital/Estado seja uma dimensão imprescindível para a compreensão das reconfigurações socioespaciais das cidades, as teorizações acerca da gentrificação não são consensuais em relação aonde residem seus mecanismos fundamentais. A diversidade de estudos de caso ao redor do globo testa os limites explicativos do conceito, reduzindo sua capacidade analítica geral ao reforçar reiteradamente a importância dos contextos sociais, econômicos, legais, políticos e culturais particulares na explicação de cada caso. Por outro lado, Lees et al. (2015) ressaltam a importância do papel de guarda-chuva conceitual da gentrificação, que opera como agrupador e articulador de regularidades empíricas que compõem o conjunto de reestruturações urbanas baseadas em diferenças de classes sociais no contexto global capitalista. No Brasil, por exemplo, embora o termo tenha sido incorporado há relativamente pouco tempo na literatura acadêmica e na esfera pública, especialmente com os debates em torno das obras para realizações de megaeventos nas grandes cidades nacionais, os processos de pressão socioespacial pelo mercado e poder público, de abusos de poder político e econômico, de deslocamentos de comunidades já eram observados e concebidos segundo categorias locais, tais como enobrecimento urbano, remoções brancas, higienização social, entre outros (CUMMINGS, 2015). Adotar as lentes conceituais da gentrificação permite que a realidade contextualizada das cidades brasileiras se situe e busque no debate global categorias para a sua própria compreensão ao mesmo tempo em que oferece subsídios similares para outros contextos.

Estando a par das limitações e dissensos conceituais, apresentaremos duas perspectivas teóricas que Slater (2011) propõe como pedras angulares no debate em torno da gentrificação[1]: a teoria do diferencial de renda[2], do geógrafo crítico Neil Smith (1982; 1996) e o trabalho do geógrafo cultural David Ley (1986; 2003).

Neil Smith (1996) argumenta que a gentrificação está associada a uma estratégia de mercado para capturar o que ele define como diferencial de renda:

 


O diferencial de renda é a disparidade entre o nível potencial da renda da terra e a atual renda da terra capitalizada sob o presente uso do solo (...) O diferencial de renda é produzido principalmente pela desvalorização de capital (que diminui a proporção da renda da terra passível de ser capitalizada) e também pelo contínuo redesenvolvimento e expansão urbana (que tem historicamente aumentado a renda da terra potencial nas centralidades da cidade) (SMITH, 1996, p.65, tradução nossa)

 

No momento em que a captura dessa renda potencial se torna mais atraente economicamente que o investimento na produção da cidade para classes mais abastadas em áreas livres (os subúrbios americanos, nos casos estudados por Smith), antigas centralidades urbanas – desvalorizadas pela ausência de investimentos públicos e pela ocupação de classes trabalhadoras e/ou grupos vulneráveis – se tornam a nova fronteira urbana a ser explorada pelo mercado imobiliário que busca se apropriar do potencial produtivo latente na área, resultando no deslocamento de comunidades residentes e na ocupação do espaço por um novo grupo social com maior poder econômico.

            David Ley (1986), por sua vez, parte de uma abordagem culturalista. O autor demonstra que a gentrificação é deflagrada a partir das demandas de uma nova classe média – desenvolvida com o crescimento da economia de serviços nas cidades – por áreas urbanas centrais. A sua explicação se baseia nos padrões de consumo e estilos de vida de um grupo social específico que é atraído pelo capital simbólico incorporado a determinadas áreas. Em Artists, aestheticisation and the field of gentrification (2003), por exemplo, Ley observa que o mercado se apropria do capital cultural e simbólico associado às áreas centrais empobrecidas e estruturalmente degradadas que passaram a ser ocupadas por artistas e diletantes, estetizadas material e simbolicamente e, então, gradativamente desejadas, adquiridas e ocupadas pelas novas classes médias urbanas com maior poder de consumo.

Em resumo, essas abordagens disputam se a origem dos processos de gentrificação está radicada no âmbito da produção capitalista do espaço através de estratégias de transformação de preços imobiliários ou no comportamento de consumo da terra mercantilizada das classes médias urbanas. É proveitoso, entretanto, buscar a complementaridade e simultaneidade dos mecanismos observados nas duas abordagens. O diálogo entre uma abordagem marxista econômica e uma culturalista é imprescindível para a articulação que propomos aqui. Uma reflexão conciliadora no mesmo sentido, encontrado no trabalho de revisão teórica de Álvaro Pereira (2014), nos oferece um proveitoso ponto de partida.

Ao avaliar as limitações e críticas às teorias de Smith e Ley, Pereira (2014) aponta que, por um lado, a teoria do diferencial de renda não explica a origem do aumento da renda potencial de áreas desvalorizadas e, por outro lado, Ley não cria conexões que conectem processos de gentrificação com transformações estruturais na dinâmica da esfera econômica urbana. O autor observa que uma resposta para os limites da teoria do diferencial de renda estaria na relação entre as duas dimensões, cultural e econômica, apontando “a atribuição de conteúdo econômico a elementos simbólicos presentes em determinados fragmentos urbanos como fundamento da ativação de rendas potenciais latentes” (ibid., p. 309).

Desdobraremos esse argumento de Pereira refletindo sobre a relação entre as noções de poder simbólico, da midiatização da experiência e das relações socais, da produção social do espaço e do consumo como uma prática social mobilizadora de sentidos. Para tanto, dois temas se colocam como questões norteadoras. Primeiramente, é necessário pensar a produção e circulação de sentidos na e sobre a cidade pelas instituições de comunicação enquanto agentes produtores da realidade social urbana, uma vez que, como observa John Thompson (2014) em sua obra A Mídia e a Modernidade, as mídias ampliaram as possibilidades de exercício do poder simbólico graças ao avanço das mediações das relações sociais ao longo da modernidade. Portanto: como os meios de comunicação influenciam os processos de produção social do espaço urbano capitalista? E como atuam ou podem atuar discursivamente em processos de gentrificação? Segundo, é preciso pensar a mobilização de sentidos nos processos de (re)apropriação de fragmentos do espaço urbano, compreendendo que representações produzidas pela experiência cotidiana do espaço enquanto lugar e aquelas produzidas midiaticamente podem ser conflituosas. Uma vez que o capitalismo transmuta o espaço em mercadoria, essa condição também o sujeita à economia simbólica do consumo, que se vale da manipulação estratégica de signos no processo de tradução da esfera da produção em representações compreensíveis e persuasivas. Então: como disputas entre insiders e outsiders pela apropriação material e simbólica de fragmentos do espaço comoditizado são influenciadas por estratégias simbólicas que incidem sobre a fabricação discursiva dos lugares? E como processos de gentrificação mobilizam estratégias simbólicas estruturadas pela cultura de consumo? Prosseguiremos refletindo sobre essas questões em tópicos distintos apenas por razões de clareza textual, uma vez que não se tratam de forma alguma de fenômenos apartados, mas sim de desdobramentos da midiatização das relações sociais agindo sobre diferentes escalas socioespaciais – da polis ao lugar – da cidade mercantilizada.

 

3.A produção social do espaço urbano midiatizado: o poder simbólico sobre os espaços concebidos

 

Pensar os meios de comunicação imbricados no seio da relação sociedade/cidade exige a compreensão da noção de produção social do espaço, desenvolvida com o paradigma da geografia crítica para superar a postura positivista descritiva e funcionalista da geografia humana que vigorava hegemônica até a década de 1970. Incorporando o marxismo ao pensamento geográfico, alguns pesquisadores se afastaram da concepção utilitária de organização do espaço e buscaram compreender como este é produzido socialmente através da articulação com os sujeitos sociais por meio de suas práticas historicamente situadas.

A obra do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre está entre os mais influentes marcos teóricos dessa abordagem. Sua teoria da produção do espaço tenta contemplar a relação entre as dimensões social, simbólica e espacial. A partir de uma revisão do marxismo e da fenomenologia francesa, Lefebvre observa que diferentes modos de produção engendram diferentes formas de espacialização e argumenta que o espaço é um fenômeno inevitavelmente sociocultural. Mais que o condicionamento da organização do espaço a partir de processos e relações de produção historicamente específicos, isso quer dizer que cada formação social concebe e significa diferentemente seus espaços. Sua teoria estabelece um quadro analítico para o estudo do desenvolvimento histórico de espacializações a partir de três dimensões que se inter-relacionam dialeticamente: as práticas espaciais ou o espaço percebido; as representações do espaço ou o espaço concebido; e o espaço de representações ou o espaço vivido.

Segundo síntese de Christian Schmid (2012), intérprete da teoria lefebvreana, o espaço percebido engloba aspectos perceptivos que são passíveis de ser apreendidos pelos sentidos e se relaciona com a dimensão material da atividade social dos processos produtivos, interações, fluxos físicos, processos materiais que asseguram a reprodução social. O espaço concebido se refere às representações do espaço, que o imaginam e o definem, pois este só pode ser percebido se formulado enquanto pensamento, representações estas que emergem discursivamente como conhecimento, teorizações, mapas, plantas. Este é o espaço ordenado conforme as relações de produção. O espaço vivido, por sua vez, se refere aos espaços de representação, à sua dimensão simbólica, o espaço “diretamente vivido através de suas imagens e símbolos associados (...), que a imaginação procura mudar e apropriar” (LEFEBVRE, 2007, p. 39), é o espaço enquanto referência a outra coisa que não a si mesmo. Schmid (2012) define o espaço vivido como a dimensão em que se dá a experiência humana do espaço, o mundo experimentado na prática da vida cotidiana.

A realidade social espacializada -  produzida a partir da dialética (ou “trialética”, segundo alguns comentadores) entre as dimensões acima expostas - que surge com o desenvolvimento da industrialização capitalista se concretiza historicamente como um processo desigualmente operado no qual as classes dirigentes possuidoras dos meios de produção “geram não apenas o emprego econômico do capital e os investimentos produtivos, como também a sociedade inteira, com emprego de uma parte das riquezas produzidas na cultura, na arte, no conhecimento, na ideologia” (LEFEBVRE, 2001, p. 21). Dessa forma, o pensamento lefebvreano ilumina a relação entre a produção social do espaço e a reprodução material e cultural das sociedades capitalistas condicionada por uma classe hegemônica, evidenciando como o espaço é ao mesmo tempo meio de reprodução de capital e meio de dominação social.

Essa ambivalência do espaço socialmente produzido é um ponto fundamental para nossa reflexão. Servindo à reprodução de capital enquanto mercadoria, o espaço torna-se sujeito à contradição marxiana entre valor de uso e valor de troca. Para Lefebvre, a cidade depende do valor de uso (a cidade como obra), mas se subordinam ao valor de troca (a cidade como produto). Essa inversão do valor de uso pelo valor de troca é o sustentáculo da comoditização do espaço urbano que orienta o que Carlos et al. (2015) definem como urbanização como negócio. Além disso, concebendo uma noção de representação como mediação entre sujeito e objeto, ideal e real, ser e pensamento, a teoria lefebvreana estabelece outra dicotomia entre a cidade como produto e a cidade como obra que sustenta a fetichização do espaço-mercadoria e subjaz à sua condição de instrumento de dominação. Como explica o geógrafo Ângelo Serpa (2011, p.59):

 

 


Se o produto depende das representações para “existirem”, muitas vezes sendo substituídos pelas próprias representações em seu percurso que vai da produção ao consumo, as obras, por não serem “consumíveis”, têm as representações como parte constituinte, mas não dependeriam destas últimas para “existir”. Ou seja, o produto é representação e se confunde com ela, a obra é também representação, mas a atualiza constantemente, permitindo, inclusive, sua superação/transformação. A obra é e conta uma história, o produto a omite, e, por isso, o produto permite mais facilmente a manipulação através das representações. A representação substitui o produto, tornando-se concreta – o próprio produto -, enquanto a obra jamais é substituída na realidade pela representação.

 

Dessa forma, o espaço urbano sujeito ao valor de troca é manipulado por um lado como força produtiva, mercadoria e matéria-prima para o Capital, definindo em última instância o acesso e os usos do solo de forma a articular a divisão socioespacial da cidade em uma hierarquia socioeconômica; por outro lado, é manipulado como produto-representação fetichizado, articulando simbolicamente os territórios e seus usuários nessa divisão, legitimando as apropriações e desapropriações do espaço conforme a hierarquia baseada em classe engendrada pela comoditização do espaço.

A partir dessa relação entre espaço, acumulação de capital e dominação podemos refletir sobre o papel dos meios de comunicação em processos de gentrificação, levando em conta a associação entre a urbanização como negócio e processos de reconfiguração da cidade via estratégias simbólicas hegemônicas que se desdobram em dimensões específicas do quadro analítico lefebvreano: o espaço concebido (representações do espaço) e o espaço vivido (espaços de representação), ou seja, nos discursos sobre o espaço e na estrutura da experiência do/com o espaço.

Tais dimensões do espaço socialmente produzido não são configuradas unilateralmente por um grupo hegemônico, mas no seio conflituoso do corpo social urbano como resultado da dialética entre estratégias hegemônicas e táticas contra-hegemônicas (CERTEAU, 1994) que se manifestam em múltiplas narrativas socioespaciais reproduzidas por indivíduos, grupos, comunidades, tecnocratas, instituições, meios de comunicação, aparelhos de Estado, empresas privadas etc. Essas narrativas e os conflitos que as produzem alcançam a esfera pública e influenciam os processos de deliberação, governança, ocupação, concepção, enfim, de produção do espaço urbano orientados por agentes politicamente organizados em torno desse objetivo. Processos envolvendo a regulamentação de legislações urbanísticas que definem as políticas urbanas nas cidades brasileiras servem como um exemplo: a obrigatoriedade de participação da sociedade civil nas produções de planos diretores urbanos fomenta uma intensa disputa no âmbito das sociedades municipais envolvendo agentes que vão de prefeituras, órgãos municipais e sindicatos empresariais a associações profissionais e de moradores e instituições do terceiro setor. Os resultados de tal disputa culminam no aparato legal (representações do espaço em forma de leis, zoneamentos, planos diretores, diretrizes e aprovações de projetos) que atuará como importante elemento no incentivo ou contenção de processos de gentrificação. Esses resultados, entretanto, não estão dissociados da atuação discursiva da imprensa, das estratégias de comunicação e marketing empresariais, da reprodução de estigmas, da posse desigual de poder simbólico entre esses agentes em disputa política e discursiva pelo espaço. A esfera pública, afinal, não se restringe à concepção racional deliberativa idealizada por Habermas (2003), mas também possui, segundo Louis Queré (1992) uma dimensão dramatúrgica – onde não há a suspensão dos status sociais dos participantes – e não se limita, de acordo com Nancy Fraser (2005), aos espaços políticos institucionais, englobando também a micropolítica, o cotidiano e as relações de poder e de identidade entre os agentes.

É crucial, portanto, pesar a influência dos meios de comunicação, das representações socioespaciais que constroem e circulam, dos discursos que reproduzem, como um importante elemento contextual particular de exercício de poder simbólico ao analisar processos de gentrificação. Loïc Wacquant (2006, p.30), ao versar sobre a estigmatização territorial na cidade do Porto, em Portugal, exemplifica:


 


Os efeitos da estigmatização territorial também se fazem sentir ao nível das políticas públicas. A partir do momento em que um lugar é publicamente etiquetado como uma zona de ‘não-direito’ ou uma ‘cité fora da lei’ e fora da norma, é fácil para as autoridades justificar medidas especiais, derrogatórias face ao direito e aos costumes, que podem ter como efeito – quando não por objectivo [sic] – desestabilizar e marginalizar mais ainda os seus habitantes, submetê-los aos ditames do mercado de trabalho desregulado, torná-los invisíveis ou escorraçá-los de um espaço cobiçado. Assim, na sequência de uma série de reportagens sensacionalistas na televisão, o bairro de São João de Deus, um sector [sic] “abarracado” do norte do Porto com forte presença de ciganos e de originários de Cabo Verde, é hoje conhecido, por Portugal inteiro, como a incarnação [sic] infernal do ‘bairro social degradado’. A câmara municipal do Porto serviu-se da ignóbil reputação do bairro de ‘hipermercado de droga’ para lançar uma operação de ‘renovação urbana’ que, graças à multiplicação de violentas rusgas policiais, visa essencialmente a expulsão e dispersão dos drogados, ocupas, desempregados e outros destroços locais, a fim de reinserir o dito cujo bairro no mercado imobiliário da cidade – sem a menor preocupação quanto ao destino dos milhares de habitantes assim deslocados. (grifos do autor)

 

Como mostra a observação de Wacquant no contexto lusitano, as transformações urbanas se concretizam antes discursivamente – como espaços concebidos, como projetos inseridos na agenda pública a partir de discursos legitimadores – do que materialmente. Serpa (2011), por outro lado, em Lugar e Mídia, mostra como a simples apropriação de técnicas de comunicação (como rádios comunitárias e o acesso à internet) por parte de comunidades/lugares permitem novas táticas de resistência política e empoderamentos identitários no âmbito da esfera pública urbana, permitindo aos grupos subalternos maiores possibilidades táticas para de subversão da ordem imposta discursivamente e maior autonomia sobre as representações de seus espaços e, portanto, de poder sobre a produção social da cidade.

No entanto, apesar de possibilidades emancipatórias abertas pelas novas tecnologias de comunicação, o exercício do poder simbólico encontra terreno fértil no contexto geográfico das cidades marcadas pela fragmentação socioespacial. Cercados por enormes extensões de tecido urbano, inapreensíveis em sua totalidade pela experiência humana, os indivíduos se encontram cada vez mais sujeitos dentro das cidades ao fenômeno moderno que Thompson (2014) define como mundanidade e historicidade mediadas. Para o autor, “a crescente disponibilidade de formas simbólicas mediadas foi gradualmente alterando as maneiras nas quais as pessoas iam compreendendo o passado e o mundo além de seus contextos imediatos” (2014, p. 60). Essa configuração da experiência midiatizada empresta aos meios de comunicação e aos grupos que os instrumentalizam uma forte influência sobre o processo de espacialização da sociedade, pois não agem apenas sobre as representações do espaço (o espaço concebido), como vimos até aqui, mas também sobre os espaços de representação (o espaço vivido). Como observa Serpa (2011, p. 23), o enredo capitalista da metrópole “parece negar os lugares, sobrepondo valores e conteúdos hegemônicos às experiências enraizadas na vida cotidiana de cada lugar”. O exercício do poder simbólico na produção do espaço, portanto, capilariza-se e entranha-se nos processos subjetivos de apropriação do espaço que subjazem à experiência de lugares. 

 

 

4.A experiência mediada e os lugares da cidade: o poder simbólico sobre os espaços vividos

 

Enquanto a geografia crítica superou a tradição positivista incorporando o marxismo ao pensamento geográfico, o movimento que se formalizou como geografia humanista buscou compreender não só a relação material, mas emocional, espiritual e subjetiva entre indivíduo, cultura e seu meio ambiente, estabelecendo a categoria de lugar como objeto central de estudo.  Pensar a partir dessa categoria nos permite refletir mais extensamente sobre a dimensão da relação sociedade-espaço que a concepção lefebvreana similar de espaço vivido tenta dar conta. O geógrafo Yi-Fu Tuan, por exemplo, influenciado pela fenomenologia e pela filosofia existencialista, também compreende o lugar como o espaço vivenciado pelos seres humanos, ou seja, como


 


uma entidade única, um conjunto ‘especial’, que tem história e significado. O lugar encarna as experiências e aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhe dão significado. (TUAN, 1979, p.387 apud HOLZER, 1999, p. 70).


 


 

Os lugares constituem conjuntos espaço-experiência-significado sujeitos a um jogo relacional identitário que se desdobra nas práticas, representações e discursos que permeiam o processo de vivência, conhecimento e reconhecimento da “porção do espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos passos dos moradores" (CARLOS, 2007, p.17). É a experiência da apropriação cotidiana e imediata do espaço, portanto, que produz um lugar, definindo uma relação entre interior e exterior, entre insiders e outsiders, a partir de um espaço referencial tornado relacional, histórico e identitário. A ausência desses atributos em um espaço configuraria o que Marc Augé (1995) definiu como um não-lugar. Tais tipologias espaciais, entretanto, nunca se concretizam de forma pura e fixa, pois lugares e não-lugares “são como palimpsestos nos quais o embaralhado jogo de identidade e relações são incessantemente reescritos” (AUGÉ, 1995, p. 78-79).  No contexto das metrópoles socioespacialmente fragmentadas, sujeitas ao fluxo contínuo de acumulação de capital, esse jogo incessante de enredos identitários é sempre tensionado pela coexistência de estratégias hegemônicas e táticas contra-hegemônicas que atravessam tanto as relações imediatas dos homens com o espaço quanto as mediações dos meios de comunicação no processo de reprodução do espaço urbano.

Se para autores que desenvolveram uma concepção neurológica da modernidade no início do século XX, como Simmel, Kracauer e Benjamin, os choques perceptivos produzidos pela difusão das tecnologias de comunicação e dos novos e frenéticos ambientes urbanos modernos acarretaram mudanças nas estruturas da experiência subjetiva (SINGER, 2004); para nossa reflexão, torna-se necessário inverter os fatores dessa relação e ponderar a influência da difusão dos meios de comunicação e da consolidação das mudanças da experiência subjetiva modernas na produção e apropriação dos espaços urbanos contemporâneos. Para Serpa (2011, p.23),

 


se o cinema vai provocar transformações importantes na estrutura perceptiva da sociedade, a revolução contemporânea dos meios de comunicação vai acelerar ainda mais esses processos, fazendo desaparecer a compartimentação que caracterizava os espaços no passado, em benefício de uma transparência que torna cada lugar visível a todos os outros. A revolução dos meios de comunicação unifica a tal ponto o espaço das atividades humanas, que não parece exagero [...] afirmar que uma recomposição total dos sistemas de poder e coabitação entre as culturas (e as diferentes ideias de cultura) está definitivamente em curso.

 

Essa unificação espacial e cultural tecnicamente mediada não está isenta da apropriação desigual dos meios de produção desse processo e tampouco das novas formas de exercício de poder simbólico que a midiatização das relações sociais possibilita. Entender que grupos detentores de poder possuem a capacidade de mediar a experiência da cidade para os seus habitantes não supõe a manipulação inelutável dos homens, mas a influência sobre a fixação dos sentidos. O processo de representação do espaço semantiza seus fragmentos valendo-se da ausência da experiência imediata daqueles que não os habitam – da mundanidade e historicidade mediadas – e da natureza do poder simbólico, que usa a capacidade de integração social dos símbolos para construir sensos do mundo através de consensos impostos pelas classes dominantes, mantendo assim um conformismo lógico entre sujeitos que ao mesmo tempo garante e torna invisível a ordem social. Dessa forma, no contexto de metrópoles que se espalham pelo espaço como leviatãs de concreto e signos para muito além da possibilidade da experiência humana imediata, a flanêrie benjaminiana perde seu apelo de fascínio: perdemo-nos na cidade material, mas já não escapamos das suas representações que antecedem a experiência fora do nosso alcance imediato. Mesmo que por simples associações e paralelismos feitos pelos próprios indivíduos, frequentemente nos antecedem, por exemplo, representações lúdicas de áreas turísticas ou estigmas violentos de áreas periféricas marginalizadas. O indivíduo constrói mapas mentais e conceituais da cidade a partir da perspectiva e experiência da sua posição socioespacial, impossibilitado de evitar a refração do que está além do seu contexto imediato por representações que não foram produzidas pela sua própria experiência de vida e circulam em discursos enunciados por meios de comunicação, instituições ou no domínio das interações cotidianas entre os homens. Assim, os lugares da cidade são transmutados simbolicamente para os outsiders – e, até certo ponto, como uma antítese que influencia a percepção dos insiders – em espécies de lugares virtuais: representações de porções do espaço não produzidas pela experiência de apropriação imediata que, todavia, compõem a experiência da cidade e atualizam-se ao fincarem-se firmemente nas subjetividades como operadores discursivos modeladores de usos e fluxos de pessoas, recursos e mercadorias.

Percebe-se, portanto, que não é possível conceber um fenômeno de reconfiguração socioespacial da cidade consolidada como a gentrificação sem conceber também seu desenvolvimento como uma reconfiguração semântica do espaço intraurbano, dos mapas mentais e conceituais da cidade, escrevendo e reescrevendo identidades de lugares conforme estratégias sempre em mutação de mercantilização do espaço. O espaço-mercadoria fetichizado está intimamente conectado ao sistema de organização simbólica da cidade por meio de discursos que costuram, relacionam, contrapõem e hierarquizam o espaço urbano e seus usuários. Este é um traço da cidade como produto que se confunde e se deixa manipular por suas representações.  Nesse sentido, refletiremos sobre a manifestação no domínio cultural das dinâmicas de mercantilização da terra urbana pela ótica da cultura de consumo, buscando iluminar como, por meio da linguagem de exclusão e pertencimento do consumo, os espaços concebidos colonizam os espaços vividos em processos de gentrificação.

 

5.A linguagem do consumo e a reconfiguração simbólica do espaço urbano

 

É insuficiente conceber as práticas de consumo segundo o modelo utilitário economicista, atribuindo a tomadas de decisões racionais de custo e benefício o motor subjetivo que move o indivíduo nas trocas comerciais e completa o ciclo necessário para a acumulação de capital. Na obra seminal O Mundo dos Bens, publicada em 1979, a antropóloga Mary Douglas e o economista Baron Isherwood problematizaram a noção econômica de demanda para compreender os usos sociais ritualísticos dos bens, mostrando que estes atuam simbolicamente como indicadores sociais, como signos que sustentam relações de classificação, pertencimento e exclusão social, iluminando melhor os processos que subjazem à motivação do consumo. No mesmo ano o sociólogo Pierre Bourdieu publicou A Distinção, obra que se tornou um marco na sociologia da cultura e do consumo. Ao realizar uma análise crítica do gosto e do julgamento estético, Bourdieu demonstra como estilos de vida que se manifestam por meio de práticas culturais e de consumo são relacionados a uma estrutura relacional de classes. Os próprios gostos e os hábitos de consumo classificam e distinguem, ou seja, aproximam indivíduos que compartilham das mesmas disposições produzidas por condições objetivas e materiais de existência semelhantes, e ao mesmo tempo demarcam diferenças traçando fronteiras simbólicas entre classes, atuando como indicadores de posições no campo social hierarquizado.

Apropriar-se do espaço-mercadoria via uso ou propriedade, portanto, proporciona mais que o acesso aos seus recursos (i.e., os benefícios da cidade), permite também sua apropriação enquanto signo marcador de pertencimento a uma determinada posição da hierarquia social. As estratégias de mercantilização do espaço atuam sobre essa relação, uma vez que, como observa Bourdieu (2001), as diferentes formas de capitais são convertíveis entre si, ou seja, o capital simbólico objetificado no espaço (e.g., o status social de residir no bairro do Leblon, na orla da zona sul carioca) é convertível em capital econômico (e.g., o alto valor de troca expresso em monetariamente de um apartamento localizado no Leblon) e vice-versa. A renda da terra urbana, então, é garantida tanto pela apropriação privada do trabalho coletivo historicamente acumulado no solo urbano quanto pela capitalização sobre sua contraparte simbólica. O mecanismo da renda da forma identificado por Arantes (2010), por exemplo, manifesta essa relação de convertibilidade entre capitais no nível do projeto e objeto arquitetônico e evidencia as estratégias de acumulação de capital por meio da exploração de tal relação. A mesma relação é percebida na crítica ao urbanismo pós-moderno de David Harvey (2004). Observando que as práticas de projeto urbano pós-modernas são orientadas para o mercado por ser esta “a linguagem primária de comunicação da nossa sociedade” (ibid., p.78), Harvey percebe a influência da cultura de consumo no processo de produção do espaço capitalista quando descreve como “culturas de gosto” orientam as práticas de projeto:


Ao explorarem os domínios dos gostos e preferências estéticas diferenciadas (fazendo tudo que podiam para estimular essa tendência), os arquitetos e planejadores urbanos reenfatizaram um forte aspecto da acumulação do capital: a produção e consumo do que Bourdieu (...) chama de “capital simbólico” (...). Esse capital se transforma, com efeito, em capital-dinheiro, que “produz seu efeito próprio quando, e somente quando, oculta o fato de se originar em formas “materiais” de capital”. O fetichismo (a preocupação com aparências superficiais que ocultam significados subjacentes) é evidente, mas serve aqui para ocultar deliberadamente, através de domínios da cultura e gosto, a base das distinções econômicas.  (Ibid., p.80)


 

Por trás da atribuição de conteúdo econômico a elementos simbólicos que ativam rendas potenciais latentes na terra urbana, mecanismo apontado por Pereira (2014) como um gatilho para a produção do diferencial de renda, efetivamente reside a convertibilidade entre capitais. Dessa forma, tornar consumíveis áreas da cidade para grupos privilegiados engendra processos de transformação urbana que acessam tanto o âmbito da utilidade quanto da linguagem de exclusão e pertencimento da cultura de consumo que traduz em indicadores as mercadorias. A acessibilidade das classes médias e altas a territórios fora do seu repertório espacial, portanto, demanda a reorganização simbólica da cidade de forma a confeccionar lugares consumíveis, ou seja, que atendam aos requisitos de gostos estruturados sobre a distinção de classes destes grupos consumidores.  

Esses lugares ressignificados são produzidos se valendo das possibilidades de apropriação cultural abertas pelas transformações pós-modernas dos critérios tradicionais de julgamento do gosto. Para Featherstone (1995) essas transformações produziram critérios culturais mais plurais de julgamento de gosto, de forma que o que era anteriormente excluído passa a ser aceito na construção de estilos de vida de consumidores. Processos de apropriação cultural sistemáticos no âmbito da indústria cultural são sintomas dessa flexibilização dos gostos dialeticamente relacionada à capacidade do Capital de incorporar novos signos e discursos necessários para a criação e exploração econômica de novas necessidades. Isso significa que, apesar de áreas degradadas possuírem baixo capital cultural e simbólico objetificados, elas passam a ser permitidas e inseridas no repertório espacial das classes médias por meio da criação de “novos ambientes recriados e simulados que acolhem algumas das formas culturais mais populares e pós-modernas [...] (parques temáticos, shopping centers, museus, além de espaços culturais e populares), percebidos como atraentes e vendáveis” (Ibid., p.19, grifo original), da (re)construção de cenários e espaços de entretenimento e consumo programado que Baptista (2005) define como territórios lúdicos, da valorização estética de lugares marginalizados como signos de autenticidade, tais como, a título de exemplos, o fenômeno do favela chic na cidade do Rio de Janeiro (CUMMINGS, 2015) ou os casos de turistificação em pequenas cidades litorâneas no estado do Ceará.  Reconfigurações espaciais dessa espécie frequentemente são produzidas em associação com estratégias de gerenciamento simbólico de sentidos atribuídos ao espaço que são catalisadas midiaticamente, tais como o marketing territorial, o city branding ou mesmo estratégias publicitárias pontuais adotadas pela iniciativa privada, que vão de campanhas midiáticas que valorizam uma região com vistas a vender um empreendimento imobiliário até políticas de adoções e reformas de logradouros públicos com o mesmo objetivo.

Tais estratégias se concretizam muitas vezes às custas do que Haesbaert (2004) define como desterritrialização in situ, processos em que a concepção e representação do espaço atendem a interesses alheios àqueles dos que habitam um território, exercendo uma forma de violência simbólica sobre os habitantes ao remover destes o controle simbólico do seu espaço, desvinculando-os de seus símbolos, causando a perda de referências espaciais, de autonomia, de identidade, enfim, da apropriação do espaço vivido, de modo que sobre ela se impõe a dominação do espaço concebido por outsiders. Do mesmo modo que os estigmas territoriais (WACQUANT, 2006), os espaços (re)concebidos para consumo, vindos de fora e muitas vezes legitimados como a panaceia para as máculas espaciais localizadas, também geram a dissolução dos lugares, desfazendo as configurações culturalmente familiares e socialmente filtradas, as relações de vizinhança e de identidade, entre as quais comunidades e indivíduos sentem-se familiarizadas e entre si.

Se uma forma mais integrada de analisar processos de gentrificação é considerar o diferencial entre capital simbólico e econômico como fator de ativação das rendas potenciais latentes, considerar a reconfiguração do espaço urbano mercantilizado pela perspectiva da sociologia do consumo nos permite construir uma interface entre os fenômenos da midiatização da experiência urbana, a cultura como dimensão de estratificação da cidade e a reprodução de capital através da produção do espaço urbano. A partir do que foi exposto até aqui, percebemos como o enredo da metrópole, da urbanização como negócio e do espaço como mercadoria, impõe-se sobre os enredos dos lugares por múltiplas vias – valendo-se, como vimos, da midiatização da experiência e da natureza do poder simbólico – sob a forma fetichizada de espaços concebidos como imagens-territorialidades construídas com base na linguagem de exclusão e distinção do consumo.

 

6.Conclusão

 

Como afirmamos anteriormente, nosso exercício pretende propor uma problematização a partir da aproximação entre os estudos em comunicação e consumo e os estudos urbanos. A exposição aqui realizada, portanto, é um esforço de estreitamento de laços teóricos que visa explicitar aos olhos desses campos questões que podem se perder nos interstícios das divisões disciplinares. Esse esforço, evidentemente, não é inédito e já se configura em outras formas no âmbito da Geografia Cultural e, inclusive, no âmbito da comunicação social no recente programa de pesquisa das Geografias da Comunicação. A justificativa deste trabalho, portanto, jaz menos na proposta de interdisciplinaridade e mais no direcionamento dessa aproximação em torno do tema específico da gentrificação.   

A partir da teoria da produção social do espaço de Henri Lefebvre, da teoria do poder simbólico de Pierre Bourdieu, da teoria social da mídia de John B. Thompson e da midiatização, assim como de teorias sociológicas da cultura de consumo, articulamos uma reflexão de forma a conceber uma possibilidade de quadro teórico que permita enxergar processos de gentrificação como fenômenos simbólicos sem perder de vista suas relações com suas dimensões socioespacial e econômica. Argumentamos que, sendo a gentrificação um fenômeno de reestruturação socioespacial urbana movido pela mercantilização do espaço, estratégias hegemônicas de urbanização como negócio se manifestam discursivamente no âmbito da produção e do consumo. A configuração territorial fragmentada das cidades, a visibilidade dos fragmentos urbanos possibilitada pelos meios de comunicação e a midiatização das experiências criam condições férteis para a manipulação de representações e identidades de lugares via exercício de poder simbólico.  A partir dos autores aqui articulados, observamos que a produção capitalista do espaço engloba dialeticamente o material e o simbólico, alterando a forma e as representações da cidade ao conceber estetizações e reestruturações urbanas que se manifestam em estratégias discursivas que se capilarizam na apropriação e na experiência do espaço urbano. O poder simbólico age tanto no âmbito da esfera pública deliberativa urbana legitimando interesses hegemônicos sobre a produção social do espaço, assim como na esfera do consumo e apropriação da cidade, classificando e reclassificando os fragmentos do espaço urbano em uma ordem simbólica de pertencimento e distinção social. Essas instâncias de estratégias discursivas se associam em processos de gentrificação, reescrevendo a configuração simbólica da cidade com o intuito de produzir novas identidades espaciais adequadas ao consumo, etapa necessária para a concretização do ciclo de acumulação de capital, de forma a ativar potenciais produtivos latentes em áreas da cidade. Nesse processo, são destruídos os sentidos e relações de lugar construídos por comunidades que ocupam espaços cobiçados.

A partir dessa reflexão, esperamos contribuir oferecendo, se não subsídios conceituais para pesquisas futuras, algum enriquecimento teórico ao convocar aqueles que se dedicam à problemática da gentrificação a confrontarem questões sobre seus objetos de análise apartadas apenas institucionalmente. Tal desafio teórico e metodológico se justifica pela necessidade de contrapor uma visão crítica a práticas que podem ser consideradas noções urbanísticas de gerenciamento de formas simbólicas que ganham corpo no âmbito de gestões empreendedoras e de grandes empresas privadas, tal como o marketing urbano e o city ou place branding. Pesquisas que se debruçam sobre esses fenômenos mostram que é possível desvelar estratégias que acessam a lógica do consumo como forma de legitimação e concretização da reprodução de capital através da produção das cidades.

Dessa forma, além do desafio de aproximação interdisciplinar, incentivar a construção da gentrificação como objeto viável para ciências da comunicação e da cultura se impõe como uma urgência social e política. Analisando como objeto cultural o fenômeno da gentrificação, ilumina-se mais as estratégias discursivas hegemônicas de produção capitalista do espaço. Considerando o potencial emancipatório que a progressiva democratização das tecnologias de comunicação de massa e de suas linguagens possui em comparação com outras esferas da vida social (a economia, o direito ou a política institucional, por exemplo), reside na sua operacionalização a possibilidade de fomento de formas de resistência orientadas para as disputas discursivas que subjazem à formulação de políticas urbanas essencialmente segregatórias que concretizam a cidade como produto.

Referências

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Data de Recebimento:11/11/2019
Data de Aprovação: 19/12/2019

 

[1] Ambas desenvolvidas, é preciso ressalvar, a partir de observações da realidade urbana norte-americana, especificamente nos Estados Unidos e no Canadá.

[2] No original: rent gap theory (SMITH, 1986). Na literatura brasileira, encontra-se as traduções “teoria do deslocamento de renda” e “teoria do diferencial de renda”.