Revista Rua


Resenha

ORLANDI, Eni (org.) Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação do consenso. Campinas, SP: Editora RG, 2010. 160 p.

 

Angela de Aguiar Araújo
(Doutoranda em Linguística - Unicamp / CNPq)

 

Ao promover a discussão teórica sobre o funcionamento discursivo de instrumentos (públicos) que dão contornos de significação à cidade, o livro Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação do consenso[1]também oferece elementos para a reflexão acerca das consequências do reconhecimento da relação entre o simbólico e o político nos estudos (brasileiros) da linguagem (do / no Brasil). A coletânea de artigos mostra os efeitos do imaginário da administração da diferença pela condução consensual dos conflitos nos processos de discursivização / institucionalização de políticas públicas urbanas nas sociedades capitalistas, ditas democráticas.

Integrando o conjunto de pesquisas promovidas desde a criação, em 1992, do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp, a obra põe em relevo o entrelaçamento do jurídico e do administrativo, destacando-os como lugares de observação da relação entre sujeito, linguagem e história nas práticas discursivas das / nas cidades. O diálogo já consolidado no Brasil entre pesquisadores da Análise de Discurso, da Semântica e da História das Idéias Linguísticas[2] conduz, neste livro, a um questionamento específico acerca da institucionalização de instrumentos para administração (controle e cálculo) do espaço público na contemporaneidade: o trabalho de construção da unidade pela lógica consensual resulta no “apagamento do político” nessas práticas (urbanas), tão amplamente difundidas nas sociedades contemporâneas?

O questionamento da evidência do consenso sustenta-se no pressuposto do político como a diferença que divide o social em decorrência das disputas de poder. Considerando que essa divisão do / no social se mostra pela materialidade contraditória do discurso, ou seja, pela divisão dos sentidos e dos sujeitos, as análises se pautam, como destaca Orlandi, na hipótese de que o consenso é sustentado por uma concepção de vínculo social que conduz à segregação. Tendo em vista as “dis-posições diferentes” do / no espaço urbano, a segregação é o que se representa como o estar dentro ou fora das formas atuais de sociabilidade.

O viés teórico materialista é, portanto, a perspectiva traçada para o estudo discursivo de um importante fato político da contemporaneidade: a cidade. Um arquivo[3] composto, sobretudo, por documentos jurídicos e administrativos, destaca os instrumentos de políticas (públicas) como objetos simbólicos a partir dos quais é feita a análise dos processos de produção da contraditória materialidade discursiva que significa o urbano, em sobreposição à cidade. O gesto teórico de interpretação, que contrapõe a materialidade linguística à materialidade histórica, faz ver o processo sócio-histórico pelo qual o urbano significa a cidade como um espaço administrado, ou seja, institucionalizado e calculado.

Não somente pela composição dos arquivos, mas também pelos encaminhamentos das análises, é possível perceber o entrelaçamento jurídico / administrativo. Tem-se aí uma importante perspectiva para a compreensão, como salienta Orlandi, das sociabilidades constituídas nas cidades. Uma constatação relevante se considerados os desdobramentos teóricos, no Brasil, da “teoria materialista dos processos discursivos” ou “teoria não subjetiva da subjetividade”[4] proposta pelo filósofo francês Michel Pêcheux (1975 / 2009). É o caso, por exemplo, das formulações de Orlandi a respeito do papel do Estado de “articulador simbólico” dos vínculos sociais (nas sociedades capitalistas). Como descreve a autora, na modernidade, uma vez tendo sido interpelado o indivíduo em sujeito (“forma-sujeito-histórica”) pela ideologia, haverá o processo pelo qual o Estado, através de instituições e discursos, será responsável pela individuação do sujeito jurídico.

Nesse sentido, um importante ponto destacado por Orlandi é que na sociedade de Mercado a função atribuída ao Estado de articulador simbólico dos vínculos sociais se especifica pela função de “administrador” daquilo que se apresenta como “novas tendências” nas relações sociais. O Estado é responsável, dessa forma, por fazer incluir (participar) o sujeito (jurídico) no (do) espaço urbano através de políticas, o que será afetado pelo imaginário (democrático) do pertencimento a um espaço coletivo ideal: homogêneo e simétrico, onde a cada um é assegurada – pelos instrumentos de fabricação do consenso - a condição de equivalência a cada um outro.

Considerando o processo de individuação como uma formulação que pensa o papel do Estado e o (vínculo) social, o administrativo, lugar onde o sujeito moderno (o sujeito jurídico) produz sentido(s), funciona como uma espécie de controle da subjetividade nas cidades. Desse modo, não por acaso, as análises, que contemplam textos de natureza variada, se detêm, sobretudo, em documentos jurídicos e administrativos. Os artigos também contemplam espaços onde o Estado está ausente, mostrando como se significam tais espaços, que não são regulados pelas discursividades resultantes dos trabalhos no campo da política ou da ciência.

Mas o que a afirmação da lógica consensual faz esquecer ao sustentar um espaço administrado / institucionalizado / calculado, sobrepondo cidade / urbano, bem como político / administrativo? É impossível falar de simetria quando estão em jogo as relações sociais. Essa é a divisão apagada quando as políticas públicas se afirmam afetadas pelo imaginário da unidade consensual. E, como as análises mostram, o lugar onde o imaginário de unidade fundamenta a construção de uma agenda de ações políticas públicas corresponde ao lugar de produção da diferença: a segregação.

DELINQUÊNCIA - Abre a coletânea de artigos, a análise de Eni Orlandi que busca compreender como, na falta do Estado, acontecem os processos de individuação dos sujeitos, femininos, nas favelas. Ao recortar os exemplos de uma chefe do tráfico e de uma boqueteira[5], a autora mostra como outras posições-sujeito sustentam sentidos do feminino que são “invisíveis” para as “boas intenções” das políticas que pretendem o consenso pela inclusão das minorias.

TECNOLOGIA - Cristiane Dias, através dos Telecentros de São Paulo, descreve como o discurso da inclusão digital / tecnológica, que sustenta o projeto da sociedade da informação e da comunicação, reproduz a lógica concorrencial, bem como das necessárias desigualdades, do sistema neoliberal. O efeito de ilusão de pertencimento ao “todos” dessa sociedade, marcada pela inovação, silencia, no entanto, aquilo que se reproduz: o jogo de diferenciações próprio a todo mecanismo de concorrência.

JUSTIÇA- Os processos do Juizado Especial Civil são objeto de análise por Suzy Lagazzi. O artigo mostra como a promoção do “bem comum” a todos transforma o cidadão / a cidadania na promessa pacificadora da sociedade capitalista. A “conciliação”, ainda que não alcançada na maioria dos processos do juizado de “pequenas causas”, faz com que os sujeitos se signifiquem pela lógica da “equivalência jurídica”. Lagazzi aponta que o discurso jurídico funciona instaurando a ilusão de que as classes – e, portanto, a contradição – estariam anuladas pela afirmação do “bem comum”.

EDUCAÇÃO- Claudia Pfeiffer apresenta análises sobre o processo pelo qual políticas públicas de educação configuram o consenso no espaço urbano pautado pela escrita. O deslizamento da memória da falta do/no/ao sujeito se dá na articulação entre as políticas públicas e as teorias baseadas na pedagogia que postula a possibilidade de adaptação do indivíduo pelo ensino. Tomando como objeto a discursividade jurídica, Pfeiffer mostra como se dá a administração dos sujeitos e das práticas discursivas a partir dos sentidos da benevolência e da necessidade de adequação tendo em vista as (in)capacidades e (in)habilidades dos indivíduos.

MÍDIA - Através da análise de panfletos publicitários e de cartas de leitores de jornais, Eduardo Guimarães descreve como a temporalidade do acontecimento enunciativo é apagada pela temporalidade do urbano, esta marcada pela ênfase no presente.

ESPORTE – Eliana Ferreira foca as políticas de esportes para pessoas deficientes. O artigo questiona como, numa sociedade pautada pela eficiência (o que colabora para a ênfase no esporte de alto rendimento), as ações de promoção do paradesporto repõem numa escala menor, a comunidade, a concepção do vínculo social como homogeneidade. Entretanto, como aponta Ferreira, a representação indireta, por meio de entidades internacionais, indica que o discurso de respeito à diferença tem por contraponto a exclusão.

LÍNGUA - Trazendo o conceito de “consenso etnocultural” para a discussão de políticas de língua(s), Carolina Rodriguez-Alcalá destaca a tensão entre o monolinguísmo (unidade), este determinado pelo aparelho jurídico-administrativo do Estado, e a diversidade linguística (dispersão). Partindo das contradições do conceito de etnicidade, que sustenta as políticas de línguas no contexto democrático, Rodriguez-Alcalá descreve como os instrumentos de políticas de língua(s) acabam por impedir o reconhecimento da diferença.

A coletânea de artigos integra o percurso de quase três décadas de pesquisas brasileiras que destacam a relação entre o simbólico e o político como perspectiva de análise do funcionamento do discurso, em sua materialidade contraditória. A posição materialista legitimou-se, no Brasil, com objeto(s) e gesto(s) teórico(s) próprio(s). Foi aberto um espaço para a reflexão acerca de acontecimentos discursivos que, por se constituírem em outras formações sociais, portanto, afetados por outras condições de produção, se filiam a outras memórias. Ao fazer ver outras redes de filiação de sentidos - que implicam em outros processos sócio-históricos de “recobrimento-reprodução-reinscrição” dos sentidos – dá visibilidade à diferença.

Discurso e políticas públicas está inserido nesse percurso empreendido por pesquisadores que apostam no político, pela relação língua – história, como perspectiva para compreender as formas de sociabilidade no espaço urbano. Desconstruindo evidências em torno do par temático consenso – políticas públicas, os autores descrevem o incontornável nos trajetos sócio-históricos de constituição dos sentidos e dos sujeitos: a divisão. Dessa forma, a leitura do livro permite ver a diferença por um arquivo próprio constituído por um gesto teórico próprio que contribui para consolidar a posição materialista dos estudos da linguagem, no Brasil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

HAROCHE, Claudine. Fazer Dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, 1992.

PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: Gestos de Leitura: a história no discurso.
Campinas, SP: Editora do Unicamp, 1997. p. 55-64. Trad. Maria das Graças Amaral.

_______. Semântica e discurso, uma crítica a afirmação do óbvio. Campinas, SP: Unicamp, 2009[1975]. Trad. de Eni Orlandi et. al.



[1]  O livro resulta do projeto A Produção do Consenso nas Políticas Públicas Urbanas: Entre o Administrativo e o Jurídico (http://www.labeurb.unicamp.br/portal/pages/projetos/verProjeto.lab?id=1). Desenvolvido de 2004 a 2008 por pesquisadores do Labeurb, o projeto foi coordenado pela analista de discurso Eni Orlandi e financiado pela Fapesp.

[2]O diálogo multidisciplinar desenvolvido pelos pesquisadores do Labeurb não se restringe a essas três aéreas, embora esses campos se destaquem no contexto de produção teórica. O diálogo multidisciplinar  promove o intercâmbio entre pesquisadores do Brasil e de outros países.

[3] Pêcheux (1997, 57) descreve o arquivo como “campo de documentos pertinentes disponíveis sobre uma questão”. Um conceito importante para a compreensão do gesto que constitui o corpus e o dispositivo teórico-analítico em Análise de Discurso.

[4] A interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia resulta no que Pêcheux (1975; 2009) chama de “forma-sujeito-histórica”. Não se pode compreendê-la como o indivíduo, em sua instância biopsíquica, mas se trata da forma-sujeito-histórica nas sociedades capitalistas. Assim, como a forma-histórica sujeito jurídico está, atualmente, determinada por condições históricas marcadas pelo capitalismo, a forma-sujeito religiosa, antes da modernidade, foi marcada por condições onde o religioso a determinava (HAROCHE, 1992).

[5]As boqueteiras são especialistas na prática do sexo oral nos Falcões, enquanto estes são responsáveis pelo tráfico de drogas nas favelas.


Número 16 - Novembro 2010
ISSN 1413-2109/e-ISSN 2179-9911

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