A palavra ruão está presente em dicionários de língua portuguesa para significar um sujeito citadino. Em Bluteau (1712-1728), ruão surge com uma significação antiga de “cidadão”. Atualmente, a palavra aparece no dicionário Aulete (2015) na acepção de "homem do povo, da rua; plebeu" e também na acepção secundária de "habitante da cidade".
É uma palavra que atualmente quase não se usa, no entanto ela permite que observemos transformações lexicais pertinentes para compreendermos historicamente a conjuntura atual. Se ruão, na época de Bluteau, ou anteriormente, significava “cidadão”, mais tarde esse sentido foi distanciado e ruão passou a significar o sujeito “plebeu”, o “homem do povo”.
Paralelamente, outros derivados da palavra rua surgiram, indicando sujeitos urbanos ou acontecimentos desordeiros: arruaceiro, rueiro, arruaça, como se vê no dicionário de L. Freire (1939-44). Em ambos os casos (plebeu e arruaceiro), o espaço público, a rua, deixou de ser predominantemente lugar do cidadão, de modo que o sentido de cidadão relacionado ao sujeito da rua só permanece hoje enquanto uma memória que deixa seus traços no dicionário.
Observe-se que os derivados de rua (arruaceiro, rueiro, arruaça) surgiram em conjunturas marcadas pelo declínio do espaço público (SENNET, 1989), que passou a ser visto como lugar perigoso, decadente, violento, frequentado por sujeitos moralmente desqualificados, e no Brasil isso se dá fortemente na primeira metade do século XX, quando ocorre uma ascensão das camadas populares, que começam a ser mais amplamente significadas nos dicionários, por vezes de forma pejorativa em palavras como plebe, patuscada e outras (NUNES, 2013, p. 16-161).
O ruão, então, surge hoje como um traço de memória, de uma situação em que estar na rua era ser sinônimo de ser “cidadão”, e daí o sentido de “habitante da cidade” que aparece atualmente em acepções secundárias ou marcadas como de sentido “antigo”.
Bibliografia
AULETE DIGITAL – O DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: http://www.aulete.com.br/ru%C3%A3o#ixzz3UbUoZwXK. Acesso em 17 de março de 2015.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa: Colégio das Artes da Companhia de Jesus. 1712-1728.
FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: A Noite, 1939-44.
NUNES, J. H. . A invenção do dicionário brasileiro: transferência tecnológica, discurso literário e sociedade. Revista Argentina de Historiografia Linguistica, v. 5, p. 159-172, 2013.
SENNETT Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.